O German Lorca fotografou o desvairamento da Pauliceia
Foto: German Lorca

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O German Lorca fotografou o desvairamento da Pauliceia

Aos 93 anos de idade, o German é um dos caras que modernizou a fotografia brasileira enquanto testemunhava a modernização da maior metrópole da América Latina.

German Lorca conta que estava no Centro de São Paulo quando viu uma nuvem densa de fumaça subir pelo ar. Enquanto as pessoas fugiam do incidente, ele corria na direção contrária. "Por sorte, eu estava com a máquina fotográfica, uma bem fraquinha que comprei de um amigo da escola. Quando cheguei lá, vi o transporte público todo queimado. A foto ficou conhecida como 'A Revolta dos Passageiros'", diz ele enquanto beberica calmamente uma xícara de café em seu espaçoso estúdio no bairro da Vila Mariana.

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O caso, que bem podia fazer parte do noticiário recente, aconteceu em 1947 devido ao aumento das passagens do bonde de 300 para 500 réis. Foi quando São Paulo ainda se acostumava a ser "a pauliceia desvairada", o que foi devidamente registrado por Lorca ao dar seus primeiros cliques rumo a uma promissora e diversificada carreira como fotógrafo.

A Revolta dos Passageiros, 1947. Foto: German Lorca

Hoje, aos 93 anos de idade, esse senhor de baixa estatura, mas com grande vitalidade nos gestos e na fala, é uma das principais testemunhas dos avanços e retrocessos da São Paulo do século XX, acumulando diversos livros de fotografia e exposições ao redor do mundo. Com um olhar que une o poético ao documental, suas imagens tiveram importante papel em introduzir a estética modernista na fotografia brasileira. E, para entrar nesse assunto, impossível não falar do Foto Cine Clube Bandeirante, fundado pela elite paulistana em 1939 no Edifício Martinelli, símbolo do progresso e, até então, o primeiro e maior arranha-céu do país.

"Se aventurar na fotografia ainda era muito caro, e o pessoal do Foto Clube Bandeirante tinha acesso aos equipamentos, revistas e livros que ficaram mais escassos no período da Segunda Guerra Mundial. Eles traziam de fora muita coisa de vanguarda e transmitiam tudo isso para o clube. Alguns eram verdadeiros artesões da fotografia", explica Lorca, que, apesar de não gozar da riqueza dos colegas, logo conquistou destaque com seu olhar diferenciado, vencendo diversos concursos temáticos que rolavam ali.

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Fumante, 1954. Foto: German Lorca

No clube, além da fotografia tradicional, havia bastante interesse pela experimentação. E o Modernismo fotográfico vinha exatamente para isto: expandir a percepção do artista visual e as possibilidades dos equipamentos, que seriam capazes de dar novos sentidos à realidade — o que caía muito bem no registro de uma cidade que passava por um período de intensas transformações nos planos urbanístico e social.

"Muito antes de existirem os computadores e a fotografia digital, nós fazíamos coisas bem interessantes para a época. Não víamos limites para a criatividade, então produzíamos fotos solarizadas, duplas exposições e até impressões com viragem a ouro, que é uma técnica que faz a fotografia durar para sempre – mas isso [era] só pra quem era bom de dinheiro, é claro", ele frisa com seu riso constante. "Aqui no Brasil, o negócio começou a ficar mais democrático só depois, com a popularização dos filmes de 35 milímetros da Kodak".

São Paulo Crescendo, 1965. Foto: German Lorca

Satisfeito com o aprendizado adquirido no clube ao lado de outros importantes nomes do Modernismo, como Thomaz Farkas, Geraldo de Barros e Eduardo Salvatore, German Lorca deixou o Foto Bandeirante em 1952. Contra a vontade dos pais, imigrantes espanhóis instalados no bairro operário do Brás e preocupados com a estabilidade financeira do filho, ele largou a vida de engravatado em um escritório de contabilidade para tentar a sorte como fotógrafo profissional. "Eu já era dono do meu nariz e pensava em fotografia noite e dia; então achei que era a coisa certa a se fazer", afirma Lorca, com sua câmera Leica sempre ao alcance da mão.

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Com a técnica já bastante afiada e o carisma capaz de acumular uma boa rede de contatos, em pouco tempo ele deslanchou na carreira. Sua criatividade maleável o fez transitar por diversas áreas como o fotojornalismo, a fine art, a publicidade e o mundo da moda e das celebridades. Logo em seu primeiro ano como profissional, German era convidado para expor no Salão de Lyon, na França, e fazia sua primeira mostra individual no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Briga no Futebol, 1960. Foto: German Lorca

Embora Lorca tenha diversas frentes de atuação, sua predileção sempre foi por um tema em específico:

"São Paulo estava crescendo no ritmo das maiores metrópoles do mundo, tanto que um dos slogans da época era 'São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo'. Era o tempo das grandes construções e da verticalização da cidade. Não parava de chegar um monte de gente nova com vontade de pegar o embalo econômico. E foi essa evolução da cidade o que mais me espantava e, consequentemente, o que me motivava a fotografar pelas ruas".

Caipira no Bar, 1960. Foto: German Lorca

Sua fotografia autoral entre as décadas de 40 e 60 traz registros valiosos de São Paulo ao mostrar uma cidade que buscava se igualar aos principais centros urbanos como Paris e Nova York. As antigas zonas do meretrício e da boemia, assim como os cortiços e casebres em ruas de terra batida, ainda resistiam à expansão das largas avenidas e dos conjuntos de prédios; os caipiras e sua cavalaria surgiam com ar de resignação enquanto a indústria automobilística cravava seu espaço e os trajes e costumes seguiam as tendências internacionais.

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Mas, ao mesmo tempo em que voltava seu olhar para a simplicidade desses personagens e lugares incógnitos, German também registrou a construção de importantes marcos paulistanos, como o Parque do Ibirapuera, que integra seu trabalho como fotógrafo oficial do VI Centenário de São Paulo, comemorado com bastante pompa ao longo de 1954, e a Catedral da Sé, concluída em 1967.

Oca, 1954. Foto: German Lorca

Apesar de viver em constante estado de deslumbramento por sua cidade, a fotografia de Lorca mostra que ele também nunca deixou de estar atento para as mazelas do progresso. "Ainda não existe um acerto da humanidade perante o crescimento. São Paulo continua crescendo — e muito — mas precisamos melhorar. O fator humano deveria sempre ser levado em conta, mas neste quase um século de vida, ainda não vi isso acontecer", lamenta o fotógrafo.

German Lorca. Foto: Guilherme Santana

Ao longo dos mais de 60 anos de carreira, muita coisa mudou na São Paulo de German Lorca. Certos edifícios de onde ele fazia suas imagens panorâmicas já não existem mais. Ruas, personagens e lugares que deram graça ao passado, também não. A garoa, um tema tão presente em suas fotos, já não cai como antes. São Paulo, enfim, tornou-se a cidade da pressa, do barulho e das inquietações, embora também seja um lugar onde pessoas como Lorca ainda têm a chance de se reinventarem como ele fizera no passado.

Hoje, esse senhor continua fotografando e espreitando a cidade, porém ele destaca que trabalha para terminar os projetos que fez ao longo da vida. E o saudosismo também não faz parte de suas inquietações: para German, ainda há muito a ser visto. "Eu não sou tão romântico assim. A cidade mudou, e eu mudei com ela. Mas continuo olhando ao redor com a mesma atenção de sempre. Uso óculos só para ler. Já para ver paisagens, ruas, estradas e pessoas, eu não preciso da ajuda de nada. Minha visão ainda não foi ofuscada."

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Confira mais fotos abaixo:

A Procura de Emprego, 1948. Foto: German Lorca

Binóculos, 1966. Foto: German Lorca

Guarda-Chuvas, 1960. Foto: German Lorca

Demônios e o Padre, 1956. Foto: German Lorca

Chaveiro, 1954. Foto: German Lorca

Favela, 1970. Foto: German Lorca

Praça da Sé, 1953. Foto: German Lorca

Caipira com Cavalo, 1949. Foto: German Lorca

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