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Curtindo Com Um Dos Maiores Exércitos Rebeldes de Myanmar

Fomos à cidade de Loi Tai Leng, o quartel-general nas montanhas do EES-S, um dos maiores entre uma variedade de exércitos étnicos que vêm enfrentando o governo mianmarense há mais de 65 anos — a mais longa guerra civil do mundo.

Estamos dirigindo por uma estrada de terra sinuosa entre as montanhas Daen Lao, Tailândia, há duas horas. O motorista acelera, tentando evitar os seis postos de controle do Exército Real Tailandês espalhados entre o vilarejo tailandês de Pang Mapha e a fronteira com Myanmar. Para evitar problemas diplomáticos, os soldados tailandeses — segundo nos disseram — recebem ordens para parar qualquer jornalista estrangeiro que tente passar pela fronteira.

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Um pouco depois de cruzarmos para Myanmar, um guarda acena com a cabeça para atravessarmos um posto de controle com a bandeira do estado de Shan, uma região parcialmente autônoma no leste do país. Abaixo, está a cidade de Loi Tai Leng, o quartel-general nas montanhas do Exército do Estado de Shan — Sul (EES-S), um dos maiores entre uma variedade de exércitos étnicos que vêm enfrentando o governo myanmarense há mais de 65 anos — a mais longa guerra civil do mundo.

Tropas da EES-S.

Nós nos aproximamos da base e nossos guias se animam, a estrada estreita para lugar nenhum rapidamente se enche de soldados em formação, sentinelas, dançarinos fantasiados e monges. Guerrilheiros bebem em barraquinhas de lona, moradores locais atiram dardos em balões e mulheres ostentam mercadorias com o logo dos rebeldes. Perto da entrada da base, crianças pulam num castelo inflável enquanto música ao vivo reverbera pelas cercanias escuras das montanhas.

Vestindo camuflagem digital americana, o tenente-coronel Yawd Muang — chefe do departamento de Relações Exteriores do exército rebelde — nos recebe, hospedando-nos na noite anterior ao Dia Nacional de Shan. "O nome deste lugar", disse ele, "significa 'Montanha da Luz de Shan'".

Comandando uma força de cerca de seis mil homens, o EES-S e seu ramo político, o Conselho de Restauração do Estado de Shan (CRES), representam os shans, um grupo étnico falante de tailandês relacionado aos povos do Laos e Tailândia. Chegando a quase cinco milhões em Myanmar, a maioria vive no estado homônimo, uma área principalmente rural rica em madeira, ouro, pedras preciosas e ópio.

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Os shans começaram a lutar por sua autonomia um pouco depois do golpe de Estado de 1962, em Myanmar, um episódio que deu início a uma era de governo militar brutal e que só agora começa a declinar.

O governo myanmarense ainda controla muitas das grandes cidades de Shan, mas as fronteiras e a floresta pertencem ao EES-S e ao Exército do Estado de Shan — Norte (EES-N), um grupo isolado e separado. O EES-S e o EES-N assinaram um cessar-fogo com o novo governo pós-junta de Myanmar em dezembro de 2011 e janeiro de 2012, mas confrontos mortais entre os shans e as forças myanmarenses ainda acontecem.

No dia 7 de fevereiro — o Dia Nacional de Shan — o desfile em Loi Tai Leng está cheio de pessoas em fantasias coloridas, hábitos monásticos e uniformes camuflados. Essa gente veio de toda a Tailândia e Myanmar para a festa de quatro dias do EES-S, a segunda organizada pelo exército.

A celebração começa com exercícios militares; recrutas de rosto pintado e moicano carregam toras, comandos descem de rapel por uma torre e se espalham pelo local, e há uma missão de resgate simulada com disparos reais e explosões. O exercício se transforma num desfile militar, com marchas e discursos. Parados e enfileirados, alguns soldados desmaiam sob o sol ofuscante.

Usando óculos escuros e um terno laranja chamativo, o líder do EES-S, o tenente-general Yawd Serk, se dirige a seus homens.

"Estamos acorrentados pelos governantes deste país", diz ele do palanque, cheio de dignatários de Shan e outros líderes de exércitos étnicos. "Se quisermos direitos e democracia, teremos que tomá-los!"

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Mais tarde, numa entrevista particular em sua casa simples, porém, arejada, no alto de uma montanha, Yawd Serk diz confiar na agenda reformista do novo governo. "O cessar-fogo foi assinado entre o CRES e o governo, mas os combates acontecem entre nossas tropas e os militares myanmarenses", ele conta. "Acreditamos que existem problemas entre o governo de Myanmar e os militares."

Diante da continuação da luta, no entanto, o governo de Myanmar está pressionando por um novo cessar-fogo nacional, abrangendo todos os grupos étnicos armados do país.

Pergunto a alguns shans de Loi Tai Leng o que eles acham disso. "O presidente Thein Sein continua sendo uma cobra", diz um oficial. Anteriormente, um general da junta militar, Thein Sein, trocou seu uniforme lotado de medalhas por ternos elegantes quando Myanmar criou um governo "civil" em 2011. O oficial continua: "A cobra só trocou de pele".

Um monge benze os soldados do EES-S.

Entre a multidão de shans, alguns estrangeiros se destacam em Loi Tai Leng: um fotojornalista canadense, um escritor francês mais velho, alguns trabalhadores de uma ONG cristã, um repórter norte-americano trabalhando para o Myanmar Times, um cara aleatório de camiseta tie-dye, o fotógrafo desta matéria e eu.

Próximo ao palco, vejo outro estrangeiro. Ele assiste aos exercícios e aos discursos com os braços cruzados sobre o peito. Alto, rígido e magro, ele usa preto da cabeça os pés: botas de combate, calça cargo, jaqueta, óculos escuros e um boné cobrindo o cabelo grisalho cortado rente. Vamos chamá-lo de Frank.

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Pergunto ao Frank o que ele faz. "Ah, ajudo esses caras de vez em quando", ele diz, misterioso.

Frank acaba me contando que treinava comandos especiais na Tailândia nos anos 1970, moleques saídos das favelas de Banguecoque, depois os entregava uniformes e Ms16. Ele diz que lutou ao lado deles na guerra secreta norte-americana no Laos. "Bons tempos aqueles", ele diz. "Erguíamos o moral em bares e puteiros. Na época, ninguém se preocupava com AIDS."

Os discursos acabam e, ao som de tambores, os soldados continuam sua marcha. Eles carregam AKs-47, carabinas antigas, Ms16 e metralhadoras M60. Enquanto eles passam, um monge os benze com água benta.

Durante a tarde, exploramos a base. Postos de vigilância nas montanhas que cercam Loi Tai Leng observam o território controlado por tailandeses, myanmarenses e traficantes de anfetamina e heroína do Exército Unido do Estado de Wa, o maior grupo armado do país. Dentro da base, as moradias dos oficiais contam com vistas deslumbrantes dos arredores. As famílias dos militares e outros deslocados da diáspora shan, que fugiram de vilarejos marcados pela guerra em outros lugares, escalaram as costas e fizeram seus ninhos sob o vale verdejante.

Os deslocados com quem conversei contaram histórias de assassinatos, estupros, aldeias arrasadas, apreensão de terras e prisões arbitrárias. Visitantes de Myanmar falaram sobre a longa jornada para chegar à base shan e como tiveram que mentir para os soldados nos postos de controle myanmarenses.

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Apesar de Myanmar ter supostamente se tornado uma democracia, muitos dizem que pouco mudou em suas comunidades. Se forem pegas na volta de Loi Tai Leng, essas pessoas podem ser multadas ou presas de acordo com a severa Lei de Associações Ilícitas de Myanmar.

"O risco vale a pena", me diz uma mulher, referindo-se à viagem de quatro dias. "Aqui, eu me sinto livre."

Loi Tai Leng tem uma clínica médica, um armazém geral, uma cadeia, algumas barraquinhas de macarrão e um internato. A clínica e o internato recebem ajuda de ONGs, e o internato — que abriga centenas de estudantes de todo Shan — é um dos poucos lugares em Myanmar onde a língua e a cultura shan podem ser ensinadas livremente. Muitos dos suprimentos para a base vêm de cidades próximas na Tailândia, destacando a relação profunda (mas não comentada) entre os shans e seus vizinhos.

A base tem até dois museus; um deles conta a história do povo shan e o outro a história do ópio. O primeiro é cheio de retratos de guerreiros míticos e generais do século XX. O outro tem as paredes decoradas com fotos de campos de papoula em flor e imagens de viciados decadentes baixadas da internet.

O EES-S, no entanto, quer superar isso. O grupo surgiu das cinzas do Exército Mong Tai (EMT) — que, por décadas, foi um dos maiores produtores de ópio e heroína do mundo — até que seu barão da droga se rendeu ao governo myanmarense em 1996. O EES-S diz que tem se dedicado a erradicar a droga no estado de Shan e até formou uma parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime — apesar do cultivo de papoula ter aumentado em Shan nos últimos seis anos.

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Freedom's Way.

A noite cai em Loi Tai Leng e o Freedom's Way sobe ao palanque. A banda de generais, coronéis e majores toca um catálogo de música ocidentais reescritas como hinos nacionalistas. Eles vão de "Like a Hurricane", de Neil Young, até reedições de rock, como "Mine Eyes Seen the Glory". Os soldados sabem todas as letras de cor.

Vestindo uniforme preto e boina, o presidente Yawd Serk prepara a multidão, passando garrafas de vinho de arroz destilado localmente. Os soldados enlouquecem, bebendo e dançando num grande borrão camuflado. Civis e dançarinos tradicionais rodopiam nos cantos da multidão enquanto guardas armados observam. Um vento gelado levanta poeira do chão, alguns soldados desmaiam de tanto beber e são arrastados para um canto escuro para se recuperar.

"Não tenho medo dos myanmarenses!", grita um recruta do EES-S, cambaleando. Ele parece uma criança — muitos parecem — mas jura ter 18 anos. "Eu me alistei porque os myanmarenses invadiram nossa terra!"

Um grupo de monges budistas permanece afastado, observando tudo. "Isso é bom", diz um deles, sorrindo. "Queremos paz e amamos nossa nação shan."

"Você acha que as festas do Exército de Myanmar são assim?", pergunto ao tenente-coronel Yawd Muang enquanto ele roda com um grupo de dançarinos tradicionais. Ele balança a cabeça: "Não!"

Na manhã seguinte, a base está silenciosa. Vendedores desmontam suas barraquinhas de macarrão, cerveja e camisetas, enquanto cachorros de rua fuçam as pilhas de lixo. Pequenos noviços budistas correm pelo lugar, brincado de guerra com rifles de brinquedo, enquanto soldados cansados pegam a estrada de volta para as montanhas. No posto de guarda em frente à casa do presidente Yawd Serk, um sentinela armado mostra sinais de ressaca da noite anterior.

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Vamos até a casa de Yawd Muang, onde ele recebe um grupo de líderes shans em seu terraço. Eles bebem vinho de arroz e comem asas de frango. Do lado de fora, um soldado brinca com um filhote de macaco amarrado numa árvore. O macaco tem uma ereção; o soldado aponta para ela e ri.

Yawd Muang foi monge por 14 anos, largando o hábito para se juntar ao EES-S em 1998. "Minha casa e minha aldeia foram incendiadas, meu avô foi morto pelo exército myanmarense", ele diz. "Nós, como shans, temos a responsabilidade de defender nossa terra."

Yawd Muang.

Yawd Muang é articulado, porém conciso. Seu trabalho é reunir reconhecimento internacional e apoiar a causa shan, além de estar envolvido nas longas negociações de paz com o governo de Myanmar. Por causa disso, ele toma cuidado com o que diz. Resmungos, ligeiros acenos com a cabeça e olhares gelados respondem perguntas como: "Os tailandeses fornecem apoio militar?", "Quem financia vocês?", "Quantas tropas o EES-S tem?" e "Vocês confiam mesmo nas negociações de cessar-fogo com o governo de Myanmar?".

"Sabemos que o processo de paz é difícil", ele diz, finalmente, "mas estamos tentando fazer o que achamos melhor para nosso povo".

O fotógrafo pede que ele pose para uma última foto. Yaws Muang vai para trás de sua casa, sorri para alguns retratos, depois tira sua pistola do coldre e aponta para as montanhas.

"Agora aponte a arma para mim", diz o fotógrafo.

Yawd Muang franze a testa e coloca a Glock de volta no coldre. "Não me faça parecer um terrorista."

Siga o Daniel no Twitter: @dsotis

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