A barraca de acampar de Cícero Guilhermino de Lima tem vista para o prédio da Prefeitura de São Paulo . Dali de sua morada na Praça do Patriarca dá para ver ainda uma viatura da Guarda Civil Metropolitana com três oficiais batendo papo. O pernambucano da cidade de Gameleira é uma das 15.905 pessoas em situação de rua na capital paulista. Ele é também um dos moradores de rua que tiveram problemas recentes com os órgãos municipais. "Eles tavam levando cobertor, tavam levando até documentos. Eu tinha papel de documento e eles levaram. Eu não tenho documento mais, tô sofrendo com isso. Agora tenho que lutar pra poder arrumar outro registro", comenta.
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José Ribeiro, mineiro de Lavras que faz estudos bíblicos no Vale do Anhangabaú, com uma vista mais modesta para a Prefeitura, também comenta as ações recentes dos agentes municipais. "Há um tempo eles chegavam de madrugada. Acordavam a gente e falavam: 'Ó, nós só queremos o papelão'. Eles pegavam o papelão e iam embora. A gente tinha que se virar, se enrolar só com a coberta". José ainda relata o sadismo de alguns funcionários. "Eles jogavam as nossas coisas no caminhão já rindo. Quando você olha no rosto do cidadão e vai conversar, ele dá aquele sorriso na sua cara. Isso que deixa o peão no veneno, porque não tem diálogo. Aí quando você vai fazer alguma coisa já entra o guarda com a borracha."
Já para Nelson Bruzarosco Júnior, que afirma ser italiano e ter 69 anos, nada disso é problema. "Chama a GCM aí. Chama a ROTA, chama o que você quiser. Aí você vai saber quem eu sou", afirma ainda ter tomado três litros de cachaça e mais cinco corotinhos com o relógio ainda batendo 17h. Ele diz também: "Eu não peguei inverno na rua não. Eu tô na rua, o inverno tá no mundo". Nelson está na Praça da República e dorme onde dá. Ele reclama dos lugares disponíveis para dormir. "Tem um albergue na puta que pariu e outro na casa do caralho só que eu não aguento. Eu sou manguaça, mermão."Nelson Bruzarosco Júnior
Em junho deste ano cinco mortes foram registradas por causa das baixas temperaturas e a situação ficou ainda mais delicada depois de denúncias de ações arbitrárias e truculentas da GCM e outros agentes ligados à Prefeitura. Segundo relatos como o de Cícero, os funcionários do município estavam lhes tirando cobertores, papelões, mochilas e outros bens pessoais. Chamado oficialmente de operações de zeladorias, os rapas marcaram negativamente o último ano do mandato do prefeito Fernando Haddad.
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A Prefeitura de São Paulo, em parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e apoio do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua), publicou um decreto sobre o procedimento e o tratamento à população em situação de rua. O documento, publicado no Diário Oficial dia 18 de junho, diz: "É expressamente proibido retirar pertences pessoais e/ou ferramentas de trabalho usados pelo morador em situação de rua. Objetos que impeçam a livre circulação nos passeios e vias públicas durante o dia poderão ser removidos pelos agentes municipais, desde que o proprietário seja consultado. Caso o morador em situação de rua não tenha onde guardar o objeto ou móvel nesta situação, o pertence será guardado pela Prefeitura e poderá ser restituído em até 30 (trinta) dias, sem custo".
No mesmo documento fica explicado ainda que em "em caso de dúvida sobre a natureza do bem, os servidores responsáveis pela ação deverão consultar a pessoa em situação de rua". Os servidores municipais identificados nessas ações estão passando por processos administrativos e disciplinares.A treta entre pessoas em situação de rua e agentes municipais e estaduais não é uma novidade na cidade de São Paulo. Volta e meia há registros como o vídeo do ano passado em que uma mulher retirada à força da calçada em que morava ou da ação atabalhoada do governo do Estado na Cracolândia no começo de 2012."Eu tô na rua, o inverno tá no mundo."
Porém, após os conflitos de junho deste ano, os embates parecem ter dado uma trégua. "A Prefeitura agora passa aqui e só pega papelão se estiver jogado, alguma coisa largada. E eles ainda perguntam: 'Vem cá, isso aqui tem dono?'. Se não tem eles levam embora. Não tão mais mexendo com a gente", explica Cícero, que passa o dia fazendo artesanato em sua barraca. Segundo ele, ficou estabelecido que eles teriam de desarmar a barraca diariamente e que toda quarta-feira viria um caminhão lavar o local, coisa que não aconteceu. José também faz sua análise: "A população caiu de pau pra cima do Haddad e ele afrouxou". Ele ainda especula sobre as eleições municipais. "Eu tenho uma perspectiva de que as coisas vão piorar pra todos a partir do ano que vem", revela com pessimismo.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.