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Os Guaranis Não Vão Ceder aos Fazendeiros

Doenças, privações e suicídio caracterizam a tribo Apy Ka'y, que vive agora numa favela de frente para sua antiga terra. Mesmo assim, eles não vão parar de lutar.

Damiana em frente ao túmulo do marido. (Foto cortesia de Patrick Borhaug/Survival)

Como esposa do chefe da comunidade Apy Ka'y — uma tribo do povo guarani — a família de Damiana é um dos principais alvos dos matadores contratados por pecuaristas que tomaram a terra de seus ancestrais no Mato Grosso do Sul. Ela perdeu recentemente o marido e três filhos numa “colisão de beira da estrada”, o que, por um breve período, deixou os Apy Ka'y sem um líder na luta contra os fazendeiros.

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Embora o acidente pareça ecoar outros assassinatos de chefes tribais que ousaram lutar por seus direitos na região, Sarah Shenker, a especialista brasileira da Survival International, diz: “As mortes são suspeitas, mas há poucas evidências de que se trate de um assassinato”. Depois da morte dos membros de sua família, Damiana tomou para si o posto de chefe e está liderando sua comunidade na reocupação de sua terra ancestral — uma tentativa desesperada de tomar de volta o que é deles por direito.

Damiana aponta para uma plantação particular de cana-de-açúcar. O território costumava ser terra guarani. (Foto cortesia de Paul Patrick Borhaug/Survival)

A questão dos territórios indígenas não é assunto novo. Durante os anos 1950 e 1960, pecuaristas se apossaram de áreas tribais para atender à demanda internacional de carne e, mais tarde, fazendeiros chegaram ali para fazer fortuna com plantações de soja. A Constituição Brasileira de 1988 deveria acabar com a exploração dos fazendeiros, estipulando o direito das tribos às suas terras. Para a sorte dos fazendeiros e de políticos corruptos, as fronteiras desses territórios não estavam mapeadas pela lei e, nas últimas décadas, advogados e antropólogos tiveram que pressionar o governo sem descanso para conseguir o reconhecimento das terras ancestrais. O progresso tem sido lento — ano passado, por exemplo, dos 600 planos de demarcação pendentes, apenas sete territórios foram mapeados.

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“Os atrasos são causados por políticos que contestam os pedidos tribais a cada um dos cinco estágios requeridos para a propriedade legal”, diz Shenker. E sem surpresa — muito dinheiro está em jogo para os donos de terras e investidores particulares na economia agrícola brasileira. A demanda por cana-de-açúcar cresceu de modo dramático, juntamente com a sede internacional por biocombustíveis. Anunciado como uma alternativa mais ecológica do que outros combustíveis líquidos, o etanol feito nas plantações de cana em terras guaranis levou a um desmatamento ainda maior da Amazônia. Uma ironia que continua a forçar os grupos indígenas locais para acampamentos esquálidos de beira de estrada. Mas a situação parece algo do qual as autoridades locais gostam de se gabar. Em 2008, o governo do Mato Grosso do Sul declarou que, até 2015, o estado seria “o maior produtor de etanol do mundo”.

Damiana em frente a um dos barracos queimados por pistoleiros em 2009. (Foto cortesia da CIMI/Survival)

Enquanto o tempo passa, nada muda para o povo de Damiana, que vive com medo dos pistoleiros que patrulham as fronteiras das fazendas. Em setembro de 2009, seu acampamento foi atacado e incendiado por “pessoas não identificadas”, que deixaram o modesto lar dos Apy Ka'y em ruínas. Os líderes tribais têm sido alvos de várias tentativas de assassinato e a taxa de homicídio entre os guarani é de 210 por 100 mil — 20 vezes maior do que a do estado de São Paulo. A grande maioria dos povos indígenas não têm armas de fogo para se defender dos pistoleiros, e não há relatórios oficiais sobre qualquer violência dos guarani contra os fazendeiros. “Quando eles têm armas, são geralmente arcos, flechas e lanças de madeira”, diz Shenker.

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Uma menina de 9 anos em frente ao seu barraco no acampamento Apu Ka'y. (Foto cortesia de Paul Patrick Borhaung/Survival)

Doenças, privações e suicídio caracterizam a tribo de Damiana, que vive agora numa favela de frente para sua antiga terra ancestral. Pesquisadores do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) indicam que entre 2004 e 2008, 80 crianças indígenas morreram de desnutrição no Mato Grosso do Sul, e que a pouca comida e água disponíveis estão com frequência contaminadas com pesticidas e fertilizantes industriais. A tia de Damiana, por exemplo, morreu este ano, depois de ser envenenada com químicos pesados usados no cultivo de sua antiga terra. A falta de esperança e oportunidades fizeram os guaranis famosos por sua taxa de suicídio, 34 vezes maior do que a média nacional — uma das maiores do mundo. Ano passado, um grupo guarani ameaçou fazer um suicídio coletivo caso a terra fosse tirada deles. Parece que o suicídio é um dos únicos atos de desafio restantes para comunidades como os Apy Ka'y.

Mas as terríveis condições de vida dos guaranis não passaram despercebidas. No passado, companhias de energia internacionais, como a Shell, compravam o biocombustível colhido nas terras indígenas, mas em 2012, depois de perceber os efeitos desse comércio, várias empresas tomaram a decisão histórica de cancelar seus contratos com esses produtores de cana. “Milícias Privadas” foram desmanteladas depois de oito ataques brutais, que mataram dois líderes da comunidade guarani, e algumas terras tribais foram designadas de uso exclusivo das comunidades indígenas nos últimos meses.

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Apesar de algumas batalhas vencidas, Shenker diz que a guerra está longe de acabar: “Companhias como a Bunge [uma gigante da alimentação] continuam comprando cana-de-açúcar de terras guaranis”, ela diz, “e outras corporações internacionais podem estar comprando dessas plantações inconscientemente, devido à natureza complicada das cadeias de abastecimento”. Impunidade é outro problema enfrentado pelos índios guaranis isolados em reservas e favelas de beira de estrada, que podem nunca chegar a ver a justiça ser feita pelos assassinatos e ataques orquestrados pelos fazendeiros. Damiana continua a viver em acomodações improvisadas dentro do território ancestral, sem proteção legal alguma e à mercê dos pistoleiros.

Mulher guarani. (Foto cortesia de Sarah Shenker/Survival)

No século XVI, a população guarani era estimada em 1,5 milhões de pessoas. No entanto, depois de serem os primeiros a entrar em contato com os poderes coloniais, hoje os índios guaranis são apenas 43 mil — apesar de serem o maior grupo indígena na Amazônia, eles continuam numa “posição extremamente vulnerável”, segundo Shenker. “Se o governo brasileiro não começar a ouvir agora, podemos ver todo um modo de vida desaparecer.”

Outra ironia é que a terra tomada pelos rancheiros é conhecida como “Tehoka” na língua da tribo de Damiana, o que se traduz como “um lugar sem mal”. Apesar de toda a destruição da última metade de século, a identidade deles continua entrelaçada à terra, onde gerações de suas famílias viveram e morreram. Damiana sempre visita os túmulos de seu marido e filhos, atravessando uma cerca de arame farpado e arriscando a vida para prestar suas homenagens. Com o marido morto, Chefe Damiana se tornou o alvo principal, mas ela não tem medo: “Estou aqui há muitos anos e já atiraram em mim muitas vezes — não vou a lugar nenhum. Vou ficar aqui”.

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