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Desporto

O que acontece quando uma atleta trans faz a transição?

Como é a vida da atacante de futebol feminino Natalie Washington, ex-craque das divisões inferiores da liga inglesa masculina da mesma modalidade.

Natalie Washington, atacante do Rushmoor FC, um time feminino da sétima divisão inglesa, recentemente marcou seu primeiro gol da competição em três anos. Ainda assim, não ficou entusiasmada. "Foi um dos piores gols da minha vida!", diz a atleta de 33 anos. "Deixei a goleira sob pressão depois de um passe, a defesa se meteu no meio, a goleira abriu espaço na defesa, a bola bateu em mim e entrou! Nem tive vontade de ficar feliz porque foi uma droga."

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O time acabou perdendo a partida por 7 a 3, mas, para Natalie, que é uma mulher transgênero, o fato de voltar ao gramado após a transição foi uma vitória.

Até pouco tempo, atletas transgênero enfrentavam o banimento quase total dos esportes competitivos. Incentivados pelo receio de homens grandes e corpulentos disfarçados de mulheres para obter vantagens atléticas, órgãos administrativos, como o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Associação Internacional da Federação dos Atletas criaram testes de sexo ridículos e humilhantes que permaneceram por décadas apesar do pouco embasamento científico. Foi somente em 2004 que o COI permitiu que atletas trans competissem nas Olimpíadas (sob restrições extensivas revisadas somente em 2015) e outras organizações seguiram esse caminho.

Mesmo que o mundo dos esportes se torne, aos poucos, cada vez mais inclusivo, seus críticos ainda questionam se as mulheres trans devem participar das competições ao lado das mulheres cis. Muitos fãs de esportes e mesmo atletas reclamam que as desvantagens físicas e o politicamente correto saíram de controle. Para Joanna Harper, médica que aconselhou o COI em sua política para indivíduos trans, isso mostra uma falta de compreensão fundamental da relação entre hormônios e desempenho atlético.

"Toda a discussão sobre a suposta vantagem ou desvantagem das mulheres trans perde o ponto mais importante", afirma Harper, que publicou o primeiro estudo de desempenho de atletas transgênero em 2015. "A questão crucial é: as mulheres trans e cis devem competir na mesma categoria? Toda a pesquisa disponível afirma que sim, assumindo que as mulheres trans passaram pelo curso apropriado de terapia de reposição hormonal."

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O medo de que mulheres trans substituam as cis nos esportes femininos simplesmente não condiz com a realidade, especialmente levando em consideração os efeitos que a transição e a terapia hormonal têm no corpo da atleta. Ninguém sabe melhor disso que Natalie.

Natalie, de camisa amarela, em uma partida recente. Cortesia de Natalie Washington.

Natalie começou a levar o futebol a sério depois da faculdade, aos 22 anos, e logo descobriu uma liga dominical na lanterna do futebol inglês – "um misto de homens acima do peso, dos pubs locais, que queriam bater numas pessoas, antigos ex-profissionais que nunca tiveram atitude, homens jovens atrás de alguma coisa para fazer e todo tipo de indivíduo", contou. "Sempre tive bom condicionamento físico, então isso nunca foi um problema. Sempre fui colocada na posição de meio-campista defensiva. Eu corria bastante, podia passar a bola bastante bem, e tinha um conhecimento bom de posicionamento e táticas."

Quando Natalie planejou a transição há quatro anos, ela tinha muitas dúvidas sobre seu futuro no esporte. "Para ser honesta, pensei que as coisas estivessem superadas competitivamente. Não tinha certeza se as regras me permitiriam [pertencer a um time de mulheres após a transição]", diz. Ela lembra de ler um artigo no Daily Mail sobre Aeris Houlihan, uma mulher trans que foi banida do futebol feminino pela Associação de Futebol Inglês por dois anos após ter se submetido à cirurgia de redesignação genital (CRG).

Natalie tem 29 anos e percebeu que não teria mais muitos anos pela frente se quisesse jogar competitivamente. "Parei de jogar no fim da temporada antes de fazer a transição [em 2013-2014] como preparação. Não contei o motivo para a maioria dos meus colegas, embora, com o tempo, eles descobrissem o motivo. Então, comecei a correr e esperei que fosse o suficiente."

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Natalie perdeu duas temporadas e meia de jogos antes de retornar ao futebol da associação. Em novembro de 2014, quase um ano depois do caso de Houlihan ter aparecido nos jornais, a AF publicou uma nova "Política para Indivíduos Trans no Futebol". Nela, a associação afirma aprovar atletas adultos a jogar com o gênero informado em um esquema caso a caso, porém, os requisitos em si foram escritos sem especificidade, afirmando apenas que as mulheres trans devem se submeter à terapia de hormônios ou gonadectomia e demonstrar que seu nível de "testosterona no sangue está dentro da taxa natal para mulheres em um período de tempo apropriado a fim de minimizar possíveis vantagens".

Em contraste, o COI exige, especificamente, um nível de testosterona (ou nível T) de menos de 10 nanomols por litro (nmol/L) durante pelo menos um ano para poder competir nos eventos das mulheres. Em geral, a taxa de testosterona no sangue para mulheres (ou cisgêneros) é de 0,52 a 2,43 nmol/L. Níveis de hormônios variam de pessoa para pessoa, e algumas atletas mulheres cis podem ter níveis de hormônios acima da taxa típica para as mulheres cis.

Sem um padrão estabelecido na política, Natalie precisou ir atrás dos níveis de testosterona exigido pela AF. "Eles queriam um nível de testosterona no sangue de 1,5 nmol/L por pelo menos um ano antes que eu pudesse jogar", afirmou. "Esse tempo é padrão, porém, o nível que eles querem é muito baixo [em comparação com outros órgãos como o COI]."

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As transições médicas para mulheres trans começam com o TRH, um processo em duas etapas. A primeira consiste em uma prescrição de antiandrógeno, que bloqueia a produção natural de testosterona. A segunda é o uso de estrógeno sintético, como o estradiol, também prescrito para mulheres cis na menopausa. Depois que Natalie começou o tratamento hormonal, houve uma lacuna entre o nível de hormônios que os médicos queriam e o que a AF queria. "Esse era meu problema, meu nível de testosterona atingiu nível satisfatório para os médicos na época, mas não era baixo o suficiente para me permitir jogar", contou. Felizmente, há vários tipos de bloqueadores de testosterona, cada um com resultados diferentes. "Quando minha primeira submissão foi rejeitada, tive que trocar de medicamentos, o que, basicamente, aniquilou meus níveis de testosterona. Eles [a AF] disseram que era aceitável, então tive que esperar por mais um ano."

Além de cumprir as regras estritas da AF, o outro grande desafio de Natalie foi lidar com as mudanças corporais como atleta. Com 1,85 m e 82 kg antes da transição, ela já era, sem dúvida, grande para um jogador masculino, mas conforme ela prosseguia na transição com medicamentos, sentiu seu corpo perder força.

"Joguei futebol de cinco contra homens com bastante regularidade nos últimos anos, e me sinto menos capaz a competir fisicamente. Nunca fui forte, mas agora tenho menos força na parte superior do corpo", ela me escreveu em uma de nossas trocas de e-mails. "Fiz somente força com a parte inferior do corpo e, nos últimos anos, estava principalmente concentrada em perder menos músculos, em vez de ganhar (sem levar em consideração a quantidade de agachamentos para tentar ganhar um pouco de bunda)."

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Natalie não só foi menos capaz de competir em seu nível anterior, mas também precisou de maiores períodos de descanso entre os treinos. "A recuperação também é outra surpresa – não tanto em termos de lesão, mas em termos de habilidade de recuperação para prosseguir após um período de exercícios de alta intensidade."

A maioria das pessoas subestima ou não tem noção do quão significativamente os hormônios afetam o corpo humano. "Assim que uma mulher trans inicia os medicamentos antiandrógenos, como parte da TRH, seus níveis de testosterona caem rapidamente para os níveis femininos", explica Joanna Harpes. "Em seguida, há uma redução rápida na porcentagem de hemácias na circulação sanguínea, novamente, para os níveis femininos. Os baixos níveis de hematócritos têm efeito dramático em esportes de resistência, como corrida e pedalada. O baixo nível de testosterona também causa a atrofia da massa muscular. A perda de força não é tão rápida nem completa como a perda de resistência, mas mulheres trans perderão muita vantagem de força sobre as mulheres cis."

Os hormônios não alteram tudo, é claro – algo que os contrários às políticas de inclusão aos trangêneros costumam ressaltar – e, ao medir, 1,85 m, Natalie é mais alta do que a maioria das mulheres. Mas também existem muitas mulheres jogadoras de basquete, e ninguém questiona sua participação nos torneios. Isso sem mencionar que a altura não é uma vantagem universal. No futebol masculino, o melhor jogador do mundo, Lionel Messi, mede 1,73 m, e em alguns esportes, como a ginástica, a altura pode ser um impedimento. Atletas, como todos os seres humanos, diferem uns dos outros em muitos de maneiras, não somente em termos de aspectos físicos, mas também em aspectos socioeconômicos, como acesso a recursos de treino; alguns conferem vantagens competitivas, mas poucos são policiados em nome de um "campo igual", da mesma maneira que os hormônios, particularmente para as atletas femininas.

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Mesmo Natalie correndo por vários meses antes de sua transição, a fim de melhorar seu físico, ela não pôde superar todos os efeitos da TRH. Ela relatou conseguir finalizar 5 km em 21 minutos e 35 segundos, sem um treino sério antes de começar a tomar os hormônios, mas não superou os 22 minutos e 5 segundos desde então, mesmo treinando regularmente agora para competir em meias-maratonas. Isso afetou significativamente seu jogo em campo.

"Fiquei impressionada em ver como perdi o primeiro impulso em campo", ela contou. "Eu costumava passar a bola para um jogador e correr para chegar na frente e pegá-la de novo na maior parte do tempo. Agora não consigo mais fazer isso." (Considere também que ela fazia isso contra jogadores homens, e agora contra mulheres.)

"Ouvi relatos semelhantes ao de Natalie inúmeras vezes, de outras atletas trans", Harper afirmou. "É muito difícil quantificar a agilidade, mas restam poucas dúvidas de que muitas mulheres trans estão em desvantagem em comparação às mulheres cis. Como exemplo, Renée Richards [jogadora de tênis nos anos 1970] era uma excelente jogadora de tênis simples antes da transição, mas se tornou uma melhor em duplas após a transição. A redução de testosterona e hematócritos resultaram em motores menores em corpo maiores."

"Perdi o primeiro impulso em campo", Natalie afirmou. Cortesia de Natalie Washington.

E não foi somente o corpo que fez Natalie mudar seu modo de jogar futebol. Ela também tem consciência da percepção que os outros têm das atletas trans, o que pode ser um fator impeditivo para praticar os esportes. "Fico preocupada em parecer muito agressiva, e em como isso vai parecer aos outros. Tudo passa a ser regido pelo medo de como uma agressão física será julgada por eu ser trans. Também tento evitar chutes a distância muito fortes pelo mesmo motivo."

"Acho que é muito comum que as mulheres trans tenham receio em se destacar nos esportes fisicamente dominantes", Harper afirma. "As garotas jogam duro, mas as mulheres trans precisam ser cuidadosas. Sei de uma trans que sofreu uma concussão em uma partida de rugby feminino. A história não deu manchete, mas não é difícil imaginar o que aconteceria se a garota trans tivesse causado a concussão em uma oponente."

Para Natalie, retornar ao esporte competitivo é um longo caminho, e sua espera ainda não terminou. Ela jogou duas partidas com o Rushmoor este ano antes de realizar a cirurgia de redesignação de sexo e perdeu o restante da temporada 2016-2017. Ela espera se recuperar o suficiente para começar o treinamento apropriado com o clube novamente após as férias de verão em agosto.

A transição e a carreira esportiva de Natalie nos dão uma ideia do que as atletas femininas enfrentam se quiserem praticar os esportes de que amam. Apenas entre o corpo drasticamente modificado e o pesadelo burocrático, os obstáculos já são suficientes para afastar muitas atletas do esporte; só as mais persistentes conseguirão.

"Já faz 30 anos desde que o COI deixou as primeiras atletas trans competirem", afirmou Harper. "As mulheres trans ainda não invadiram os esportes femininos, e elas são, de fato, muito subrepresentadas no esporte. Eu me encontrei com representantes do rugby internacional em 2016. Naquela época, seis de 500.000 jogadoras de rugby em todo o mundo eram trans. Estatisticamente, deveria haver duas ou três mil. As mulheres trans não aparecerão nos esportes tão cedo!"