O Odair José contou pra gente tudo sobre seu disco clássico e proibidão ‘O Filho de José e Maria’

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Noisey

O Odair José contou pra gente tudo sobre seu disco clássico e proibidão ‘O Filho de José e Maria’

A obra de 1977 repercutiu de forma tão negativa na Igreja Católica, na imprensa e no país que o homem se tornou persona non grata em programas de rádio e televisão e os LPs empacaram nas prateleiras.

Quantas músicas você conhece que falam das prostitutas? Se pá “Candy”, do Iggy Pop, com a voz agudinha da Katie Pierson. Mas foi com uma letra sobre um homem apaixonado por uma mulher da vida que levou Odair José à fama, mesmo a contragosto dos mais conservadores. Em 1971, ele assumiu o posto de cantor dos tabus. Amou putas, empregadas domésticas e em 1977 fez uma obra que repercutiu de forma tão negativa na Igreja Católica, na imprensa e no país que o homem se tornou persona non grata em programas de rádio e televisão, não deu muitas entrevistas e os LPs empacaram nas prateleiras. Lembre-se, meninote. Vivíamos um período de ditadura militar. A foto de Odair sem camisa com um neon ao fundo escrito O Filho de José e Maria virou sinônimo de imoralidade. Em Campina Grande, na Paraíba, um padre ameaçou excomungá-lo e o Brasil não entendeu o cantor. “A única pessoa que achou que aquilo não era uma loucura fui eu”, conta Odair. 36 anos depois, ele lança Odair José: O Filho de José e Maria Ao Vivo em CD e DVD gravado no pomposo Theatro Municipal de São Paulo.

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Se você não manja o Odair José, se liga que o tio explica. O cara lançou seu primeiro álbum em 1970 e estourou de vender em 1972 com “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, a música da puta mais famosa do Brasil. No ano seguinte ele chega às lojas com outra bomba, “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, em que ele defende o fim do uso do anticoncepcional “porque ela não deixa o nosso filho nascer”. O disco foi vetado pelos militares e criticado até por parte da Igreja Católica, que normalmente é contra o uso de contraceptivos. Doido, né? Seu amor pela igreja não acabou aí. Em 1974 ele lançou numa coletânea a faixa “Jesus Cristo, Quem É Você?”, em que faz duras críticas ao catolicismo depois de uma viagem a Roma. “Eu estou cada vez mais convencido de que as pessoas com esse negócio de querer que Deus ajude numa doença física ou na prestação do carro diminuem muito a importância do Criador”, confessa. Em 1977, ele deixou de vez os beatos e freiras em polvorosa. A ópera-rock – termo que ele nunca usou – O Filho de José e Maria fala, em dez faixas, do nascimento, vida, casamento, viagens psicotrópicas, sexualidade e morte aos 33 anos de um cara que pode ser eu, você ou o filho do “hômi”, o Jesus Cristo mesmo.

Pensa aí. O personagem do disco afirma que José e Maria, os pais do menino Jesus da manjedoura, fizeram a criança antes do casamento e tiveram que se unir em matrimônio às pressas porque a boca pequena ia sair difamando a família. Tá achando loucura isso? Então péra. Na Bíblia, Maria engravida do Espírito Santo e não era casada com o carpinteiro. O cantor continua sua história com o divórcio do casal, aprovado no Brasil naquele ano, passa por outros tabus como uma possível inclinação homossexual, o uso de drogas e a ronda constante da morte. É um clássico da música brasileira e nós destrinchamos ele até o último pedacinho e ainda falamos de outras paradas. Odair, essa galera tava errada. Este disco é do caralho e merece toda honra e toda Glória. Agora e para sempre. Amém.

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Noisey: Você é filho de José e Maria?
Odair José: Não, o meu pai se chamava Conceição. Quer dizer, Conceição José de Araújo. Ele é descendente de espanhol e quando nasceu, independente de homem ou mulher, teria que ser Conceição por causa do dia da Santa. Aí me parece que o cara do registro não aceitou por ele ser homem a ideia do Conceição que era um nome feminino. Aí acrescentaram o José. A mãe é Antonia das Dores de Araújo. Eu costumo dizer que o filho de José e Maria sou eu mesmo, mas sem a Maria no nome da mãe.

Quando você começou a tocar?
Desde os sete anos de idade eu comecei a mexer com música e ganhei um instrumento. Eu pedi um violão e ganhei um cavaquinho, que eu tenho até hoje, portanto ele tem 59 anos. Depois veio o violão. Na minha adolescência vieram as guitarras. Lá em Goiânia, com meus 14, 15 anos todo mundo tinha uma banda, toda rua tinha uma banda, todo bairro tinha uma banda, toda escola tinha uma banda. Eu sempre gostei muito de guitarra, sempre gostei muito de instrumentistas. O meu olhar pra música, pra eu aprender alguma coisa, sempre foi pra quem cantava e se acompanhava ou de quem tocava e cantava. Eu sempre via alguém com o instrumento na mão.

Quais eram as referências quando você começou a tocar?
Quando eu gravei meu primeiro disco, em 1970, tudo no Brasil se passava por aquele processo, de Roberto Carlos e Jovem Guarda, que era vitorioso. Era tudo muito em cima daquilo ali. Mas desde o meu primeiro disco você vai ver muita coisa de Beatles ali. De ideias de arranjos, ideias que a gente tirava ali.

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Você vendeu um milhão de cópias com o compacto Eu Vou Tirar Você Desse Lugar? Como rolou essa história?
O compacto foi me dado pelo produtor Rossini Pinto como uma chance, porque eu tinha feito dois discos que iam bem no mercado, mas nesses intervalos se gravava um intermediário que eles chamavam de compacto simples. Eu chego com a música “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, que o diretor não gosta, porque era de puta, de bordel e que aquilo saía dos padrões de Roberto Carlos e do amor certinho e tal. Eu digo: “mas eu tô falando de uma realidade”. O cara se apaixonar por uma prostituta, onde é que tá o erro nisso aí? O conceito da sociedade é errado. O disco estourou sozinho. Eu Vou Tirar Você Desse Lugar foi um disco que ninguém trabalhou. Então pra mim ficou provado que o que estoura é música. Não é gravadora, não é nada. Porque com uma música boa eu não precisei do sistema. Não precisei da gravadora nem da mídia. As pessoas começaram a dizer "eu quero essa música, eu quero essa música" e ela virou o que é até hoje. É um puta de um sucesso.

Como era para lançar um disco nos anos 70?
Naquela época se fazia sucesso no Brasil por portas únicas. Só tinha uma escada e uma porta: você tinha que estar numa grande gravadora e você tinha que estar na lista de trabalho da gravadora, senão você não tinha acesso ao rádio.

Então você nunca seria prioridade na gravadora do Roberto Carlos, né?
Eu fui até o diretor de marketing da CBS, o Othon Russo, e ele disse pra mim o que você acabou de dizer. “Você esquece que você não é prioridade. Você não será trabalhado”. Então na CBS eu nunca seria prioridade. Eu fui pra Polydor, porque naquele momento a minha intenção era fazer um som diferente. Eu queria fazer uma coisa mais próxima do Crosby, Stills & Nash, do Neil Yong. do Richie Havens. Eu já queria aquela coisa. A diferença do som da CBS para a Polydor é de 1000%.

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Que tipo de som você queria fazer?
Eu achava que no Brasil ia rolar de novo um cara tocando com uma guitarra no pescoço. Já tinha rolado isso com os Beatles, já tinha rolado isso com os Stones e já tinha rolado isso com o próprio Roberto Carlos. Quando ele era da Jovem Guarda ele se apresentava com uma guitarra pendurada no pescoço e mais três caras atrás dele. Ele não era um grande músico, mas ele usava uma guitarra mais pelo visual. Na minha opinião, inclusive, é esse o Roberto Carlos que o Brasil aprendeu a idolatrar. Talvez não o baladeiro de hoje. Não tô falando mal, mas não foi esse baladeiro que as pessoas chamaram de Rei. Eles chamaram de Rei aquele cara da guitarra.

Você queria ser esse cara da guitarra no pescoço então.
O Peter Frampton tinha saído do Humble Pie e já tava tocando guitarra pelos Estados Unidos e tinha vendido 20 milhões de um disco que ele fez ao vivo. Eu estava vendo aquilo e falei: “vou fazer essa parte musical no Brasil. Eu vou ser o o Peter Frampton brasileiro. Eu vou ser o pop do Brasil”. E fiz O Filho de José e Maria somando todas essas ideias.

Você fez a obra por causa do Tommy?
Não e sim. Eu sabia que existia o Tommy, já tinha assistido, mas aquele não era o meu foco. Eu sabia do Pete Townshend, sabia de tudo aquilo, mas não era o meu foco.

O que você queria contar?
Eu pensei em contar uma história da vida de uma pessoa. Cada música seguida ia contar a vida de um cara do seu nascimento aos 33 anos de idade. Eu queria chamar a atenção das pessoas para algumas coisas. Por exemplo, a Igreja Católica, que era muito forte naquele momento – e até hoje é. Para você batizar o filho de alguém você precisa ser casado lá. Você tem que seguir a cartilha deles. Eu fiquei me perguntando qual foi a Igreja em que o pai de Jesus Cristo foi casado.

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Isso é bem maluco, né?
Essa história é muito louca. A mulher engravidou pelo Espírito Santo, o que eu acho um absurdo, mas tudo bem. É uma coisa deles. Mas onde é que tá casado o José com a Maria? Todo mundo sabia que o José era um cara mais envelhecido e que a Maria era uma moça novinha. E que teve vários filhos depois. Não foi só Jesus. Essa história é muito mal contada e aquilo me incomodava profundamente.

E aí você divorciou José e Maria, né?
Se você for acompanhar a história do Jesus Cristo você vê ele sempre com a mãe. Você não vê ele com o pai. O que foi feito da porra do pai? Ficou pra lá? Como é que é, largou, separou, morreu? Eles não contam essas histórias. Aí eu pensei em começar a minha história casando os caras que não são casados, porque essa porra tá errada. Tá ilegal isso aí. Então vamos consertar o erro. Aí começa casando uma mulher grávida com o cara às pressas, porque o filho vai nascer. Ai eu interpretei. “Ué, separou”. O pobre menino sofreu sem ninguém.

O filho de José e Maria pode ser qualquer um?
O filho de José e Maria não é especificamente aquele cara lá da cruz, mas pode ser também.

Como o disco foi recebido na época?
A única pessoa que achou que aquilo não era uma loucura fui eu. Porque todo mundo me dizia: “vai fazer merda”.

Você queria chocar a sociedade?
Eu queria continuar me dando bem.

E nessa época você mudou de gravadora?
Isso, só que para eu me dar bem eu precisava do apoio deles. Eles tinham que convencer a mídia de que aquilo era bom. Eles se assustaram com aquilo e disseram: “não, isso a gente não faz”. E vieram com uma proposta que era assim: “tá, você faz o seu álbum, mas faz um disco comercial pra gente”. Eu podia até ter topado, talvez tenha sido um pouco radical. Falei: “então eu não faço”.

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Eles não acreditaram na proposta?
Eles queriam algo mais comercial, mas não era isso que eu queria. Isso aqui pra mim é comercial. “Não me Venda Grilos”, “O Casamento”, “Nunca Mais”, pra mim são as músicas fortes. É isso que o Odair José tinha que fazer. Essa mesmice não é o que vai me levar a ser o Peter Frampton, que vai me levar a ser o Eric Clapton e eu quero ir pra esse lado. Eu quero ser pop. Isso aqui (o que tinha sido gravado até então) foi bom, mas agora chegou a hora de mudar.

E como você se preparou para as gravações?
A RCA Victor me deu um adiantamento enorme, daqueles que você pode resolver a sua vida. Eu passei seis meses lá no Morro do Vidigal num estúdio, lá perto de onde morava o Tim Maia, pra ensaiar uma banda de garagem. Eu fiquei procurando músicos que tocassem aquilo que tocava o Eric Clapton, o Pete Towshend. Eu queria ser o cara pop que botava uma guitarra no pescoço e fazer o que o Frampton tinha feito na América.

E como você fechou a banda?
Eu testei muita gente. Tinha o Antonio Pedro, que depois foi da Blitz, até o Robertinho de Recife foi testar guitarra. Só que ele era muito Jimi Hendrix. Me lembro que chegou um cara, o Ricky, que toca muito guitarra com o Erasmo Carlos. Ele fazia exatamente o que o Peter Frampton fazia, mas disse que se fosse pra tocar aquilo ele não queria, porque era só escala. Eu fiquei um tempão até achar os caras certos.

E quanto tempo você ficou nessa vibe de praia e maconha?
Seis meses. Depois quando eu chego nos estúdios da RCA Victor na Barata Ribeiro tá lá o Durval Ferreira, que como todo o pessoal da bossa nova é muito educado, e me convence de que minha banda é uma merda. Eu levo o Azymuth de volta pro estúdio e faço o disco.

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E qual foi a banda que gravou O Filho de José e Maria?
Os meus músicos de estúdio eram o Hyldon de guitarra, eu fazia os violões e às vezes o Luiz Claudio que fazia umas guitarras, uns slides, uns George Harrison pra mim. Era o Zé Roberto (Bertrami) de piano, às vezes o Robson Jorge, o Mamão de bateria e o Alexandre Malheiros no baixo. Além disso, eu trouxe o Dom Charles (Erlon Chaves), que era o maestro que fazia o soul com os Tim Maia da vida para fazer os arranjos, que era um cara genial. Tem também o Jaime Além que também tocou guitarra e violão.

A ideia era ter 22 canções em um disco duplo, né?
Eu percebi que a coisa estava sendo mutilada e que não teria mais 22 canções, porque ficaria muito caro. É, as gravadoras são muito iguais e eles me convenceram a lançar em dois discos. Tanto é que o disco seguinte, que se chama Coisa Simples, tem umas cinco ou seis canções; nele tem “Forma de Sentir”, “Agora Eu Sei”, “Por Você Estou Louco”, tudo ali era do projeto.

Por que ele se chama Coisa Simples?
Foi proposital. Já que achavam que o anterior era tão complicado…

Eles não te entenderam?
A coisa não era pra ser entendida mesmo, mas o problema é que eles não aceitaram, não ouviram. Não quiseram olhar a coisa assim com um olhar sem preconceito. Esquece a palavra ópera, esquece esse negócio de rock, esquece o conceito religioso. Vamos ouvir as músicas e a ideia do cara? Eles não quiseram fazer isso. “Vamos boicotar a ideia do cara. A ideia do cara não presta. Acabou, não vamos deixar”. Eu costumo dizer que não deixaram o cantor da pílula ser pop quando nada era mais pop do que a pílula.

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Mas você já vinha falando de tabus há muito tempo, né? Já tava marcado por essas temas.
Acho que as pessoas não foram inteligentes o bastante. Eu já falava da empregada quando ninguém queria falar, era uma classe discriminada. Achavam que aquilo era feio. “Ah, o cantor da empregada”. Eu falei da prostituta. “Ah, o cantor da prostituta”. Ué, Jesus Cristo andava com uma prostituta do lado chamada Maria Madalena. Onde é que estão os erros? O que tá em O Filho de José e Maria era justamente o Odair José.

Você foi excomungado?
Até um padre, ou sei lá bispo, ameaçou de me excomungar pela Igreja. Acho que não fui. Já disseram que sim, mas mudou alguma coisa? Não, porra nenhuma.

Você ficou queimado com essa história?
Naquele momento eu não dei importância a essas acusações, mas aos poucos o inconsciente popular foi criando uma tese de que “esse cara brinca com a Igreja. Esse cara desrespeita isso”. De tanto a censura ficar proibindo as minhas músicas eu passei a ser um cantor não-legal. Por exemplo, a minha esposa conta uma história de que toda vez que eu tocava no rádio a mãe dela mandava desligar, porque eu era um cantor imoral. Até hoje quando você toca os negócios do disco as pessoas fecham a cara. Eles acham que eu estou brincando ou desrespeitando, quando na verdade eu estou dando um toque: “ô malandro, não é por aí. É pelo outro lado”. Eu só quero dar um alerta. O padre tá te enganando, o pastor tá te enganando.

Porra, mas é um puta disco.
Não é uma prepotência, não é uma arrogância, mas você me desculpe. O disco hoje é genial, imagina 36 anos atrás? Eu fiz uma coisa genial e não podia ser genial? Qual o problema, a minha genialidade assustou quem? As músicas de O Filho de José e Maria na verdade são o dia-a-dia do ser humano.

E quando voltou a se falar do disco?
Eu comecei a perceber de uns dez anos pra cá que apareciam uma jovem ou um jovem pedindo pra tocar uma música do disco. Vinha uma molecadinha e eu perguntava: “como é que você tem esse disco?”. E eles falavam: “ah, o meu pai tinha”. Tanto é que o meu vinil eu pedi pra um cara que levou para eu autografar. Eu falei pra ele: “cara eu não tenho. Você me dá?”. E ele me deu. Essa coisa começou a crescer. Eu fui tocar uma vez no Amapá e apareceram dois malucos lá. Sabe aqueles caras tipo “doidão”? Eles disseram pra mim que iam atravessar o país para estar com o Roger Waters e que iam dar O Filho de José e Maria pra ele.

E o que você acha de voltar a tocar isso hoje em dia?
Eu acho que o projeto é bom. Talvez por isso a gente está falando dele 36 anos depois.

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