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Foto: Divulgação/ Arquitetura na Periferia

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reportagem

Essas mulheres ensinam outras a erguerem suas próprias casas em BH

O Arquitetura na Periferia quer acabar com as construções de gênero no espaço doméstico.

Em um sábado de manhã Cely Cristina da Costa Silva, 44, estendia a roupa do seu filho, marido e sogros na casa em que viviam, no bairro de Barreiro, em Belo Horizonte. Na época, ela, uma auxiliar administrativa, estava infeliz com o casamento e era provedora de seu lar. Morava de aluguel e, muitas vezes, tinha que pagar tudo sozinha.

Enquanto esticava as roupas no varal, viu pela janela uma turma de jovens com um megafone chamando todas as pessoas que viviam de aluguel ou de favor para uma reunião naquele mesmo fim de tarde. Curiosa, ela desceu e pegou mais informações. Pouco depois, entendeu a verdadeira intenção do convite: formar uma nova ocupação de moradia na cidade.

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O pessoal de megafone se apresentou como parte do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. O grupo não demorou a chamar Cely para participar. Ela, por sua vez, não tardou em aceitar.

Depois de atrair essas pessoas, em abril de 2012, o movimento ocupou um terreno privado, que foi empossado novamente pela empresa após alguns meses. O grupo precisou ocupar outro local. Sem conhecimentos técnicos, a equipe de organização pediu ajuda de arquitetos e engenheiros voltados para a assessoria de obras para mulheres nas periferias. Foi aí que tudo mudou na vida de Cely e de muitas outras. “Consigo ver o quanto apliquei tudo que ouvi das arquitetas e engenheiros”, conta.

Já divorciada e com um filho pra criar, Cely teve que, para conquistar de fato sua independência, ingressar de cabeça no projeto.

Toda terça-feira e aos finais de semana, ela e mais três mulheres da ocupação se encontravam para aprender sobre arquitetura, construção e cálculos. Com o projeto, ela conseguiu reformar toda sua casa. “Mudei minha caixinha de gordura, fiz uma instalação de torneira provisória pra máquina de lavar na garagem e vou terminar minha lavanderia no fundo que tanto quero.”

Cely conseguiu administrar todo o levante a partir dos ensinamentos que conquistou com a ajuda do Arquitetura na Periferia. “Hoje tenho coragem, graças ao curso, de pegar algo na área da construção para melhorar minha residência e ajudar quando tem mutirão.”

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O projeto, criado por quatro mulheres arquitetas, ativistas e engenheiras, foi baseado em uma lei federal que garante o direito de assessoria técnica gratuita para construir ou reformar suas casas. Sancionada em 2001, a lei visa ampliar o direito à cidade e moradia famílias com renda mensal de até três salários mínimos.

Ciente dessa possibilidade, Carina Guedes fez um mestrado sobre o tema na área de arquitetura na UFMG em 2014. Depois da aprovação no curso, a arquiteta deu continuidade ao processo fora da universidade de forma autônoma. Segundo as quatro organizadoras que toparam ajudar a administrar o projeto, 33 mulheres passaram pela construção. “A gente tá com a expectativa de formar quatro novos grupos pra atender mais 20 mulheres”, conta Mariana Borel, arquiteta e co-fundadora do Arquitetura na Periferia. Ao todo, são dez colaboradoras voluntárias da área de arquitetura, engenharia e psicologia.

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Foto: Divulgação/ Arquitetura na Periferia

Mariana conta que o processo de assessoria técnica se dá todo começo de ano com aulas teóricas e práticas de construção cívil. “Elas aprendem em planejamento algumas coisas que são da área de arquitetura, desenham alvenaria e aprendem a transferir medidas em uma escada reduzida.”

Para as organizadoras, a construção civil é um ambiente em que a mulher é pouco respeitada e tem pouco acesso para trabalhar e gerenciar as próprias obras que faz na casa. Ao mesmo tempo, existe muita responsabilidade atrelada a mulher enquanto chefe de família. “Elas que utilizam esse espaço no dia a dia, então na nossa concepção, elas já fazem toda a manutenção do espaço”, opinam.

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“Geralmente nas construções a palavra da mulher nunca é ouvida e, quando ela tem essa noção, tudo muda.”

Além disso, a pauta feminista abordada pelo projeto traz a autoestima e empoderamento para embater situações de vulnerabilidade. Para Cheyenne Pereira Miguel, 30, “geralmente nas construções, a palavra da mulher nunca é ouvida, e quando ela tem essa noção, tudo muda.”

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Cheyenne alinhando tijolos durante oficina. Foto: Divulgação/ Arquitetura na Periferia

Cheyenne também fez parte de uma turma do projeto. Assim como Cely, ela também é mãe solo. Há quatro anos, a autônoma ficou sabendo da assessoria e foi procurar mais informações. “Teve oficina de assentamento na minha casa e eu mesma pus a cerâmica. Eu morava num madeirite e estava planejando pra poder construir os dois cômodos em que moro hoje.”

Ela conta que aprendeu algumas coisas básicas de construção que foram responsáveis por cuidar da própria casa. De serviços de manutenção de chuveiro até a diferença entre um tijolo ou bloco, ela fala que hoje conquistou uma independência que vai além da relação de ser mãe solo.

De acordo com dados do IBGE, 38,7% das casas brasileiras são chefiadas por mães que criam sozinhas seus filhos. Nas ocupações, essa situação é ainda mais rotineira. Para as organizadoras, esse projeto é sobre questionar padrões culturais.

“Melhor ainda é eu ter a condição de fazer com minhas próprias mãos cada cantinho da minha casa com meu filho. Me dá mais orgulho de onde eu venho e de todo pedacinho da minha casa que foi concluído pelas minhas mãos”, diz Cheyenne.

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