Um cemitério de navios repousa nas profundezas do Brasil
O mergulhador Maurício Carvalho em ação no litoral do Brasil. Crédito: Acervo pessoal

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Um cemitério de navios repousa nas profundezas do Brasil

Entre transatlânticos, caravelas e galeões, 2128 embarcações naufragaram na costa brasileira. Dessas, apenas 155 foram localizadas.

Quando o Príncipe de Astúrias zarpou de Barcelona em 17 de fevereiro de 1916, seu capitão, José Sánchez Lotina, não fazia a menor ideia do que ia encontrar pela frente. Com destino a Buenos Aires, o paquete espanhol — nome dado aos navios movidos a vapor — faria escala em Cádiz, Las Palmas, Ilhas Canárias, Rio, Santos e Montevidéu. A poucos quilômetros do Porto de Santos, as condições meteorológicas eram péssimas: chovia muito e a visibilidade era baixa. Por volta das 4h20 do dia 5 de março, um domingo de Carnaval, os poucos foliões que dançavam marchinha no luxuoso salão de festas do transatlântico ouviram um estrondo que abafou o som da orquestra. O clarão de trovão iluminou a neblina e, na cabine de comando, Lotina avistou os rochedos da Ponta da Pirabura, em Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. "É terra!", gritou.

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Desesperado, o capitão ainda ordenou aos seus homens: "Toda força a ré! Todo o leme à boreste!". Era tarde demais. A colisão abriu um buraco de 40 metros no casco do navio. Em inacreditáveis cinco minutos, o orgulho da Marinha espanhola, com mais de 150 metros de comprimento e capacidade para transportar 1.890 passageiros, desapareceu nas águas do Atlântico. "O naufrágio do Príncipe de Astúrias é o maior desastre marítimo de todos os tempos no Brasil", afirma o jornalista e escritor José Carlos Silvares. "Oficialmente, o número de mortos é 447. Mas, se contabilizarmos os imigrantes que viajavam clandestinamente nos porões do navio, fugindo da Primeira Guerra Mundial, as vítimas fatais podem chegar a mil."

Camarote do Astúrias. Crédito: Acervo de José Carlos Silvares

Silvares é autor do livro Príncipe de Astúrias – O Mistério das Profundezas. Para escrevê-lo, dedicou 25 anos de sua vida a pesquisar sobre o naufrágio daquele que é considerado o "Titanic Brasileiro" — o badalado navio inglês que naufragou quatro anos antes, em 1912, e totalizou 1.517 mortos, entre passageiros e tripulantes. Incansável, Silvares viajou incontáveis vezes para Espanha e Argentina, consultou arquivos e documentos oficiais e, de quebra, entrevistou parentes das vítimas. Das 621 pessoas a bordo, apenas 144 sobreviveram. Uma delas é o estudante de engenharia José Martins Vianna, então com 20 anos, o único brasileiro a bordo do Príncipe de Astúrias naquela travessia.

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"Quando saí da cabine e cheguei ao convés, o navio já estava sendo engolido pelas ondas. O telegrafista não teve tempo sequer de transmitir o S.O.S. Eu me salvei, mas jamais esquecerei os gritos das pessoas morrendo afogadas", declarou o rapaz, na ocasião, ao extinto jornal carioca A Noite. Segundo os sobreviventes, a água gelada invadiu a casa das máquinas e provocou uma pane em duas caldeiras. Com a explosão, passageiros e tripulantes foram arremessados longe. Muitos corpos foram recolhidos em praias próximas, como Ilhabela e Ubatuba, a 40 quilômetros do local do naufrágio. Reza a lenda que, ao ver seu navio ir a pique, o capitão José Lotina deu cabo da própria vida, com um tiro na cabeça. Até hoje, seu corpo não foi encontrado.

Príncipe de Astúrias visto em alto mar. Crédito: Acervo de José Carlos Silvares

Um século depois, o Príncipe de Astúrias continua a despertar o fascínio de jornalistas, aventureiros e mergulhadores. Nos últimos anos, virou romance pelas mãos de Isabel Vieira, O Príncipe de Astúrias – O Titanic Brasileiro, e documentário pelas lentes de Edu Sallouti e Mauro Lima, Naufrágio – Mistério e Morte na Catástrofe do Príncipe de Astúrias. O local do naufrágio é também um dos mais disputados pontos de mergulho do país. "Há relatos, nunca confirmados, de que o navio transportava um grande carregamento de ouro", diz Silvares.

Marcello de Ferrari é dos muitos que já visitaram os destroços do Príncipe de Astúrias. Tantas vezes que até perdeu as contas. Com 1.500 horas de mergulho – 450 delas em naufrágios –,avisa que a prática não é recomendada para iniciantes. Um dos maiores perigos, explica, é aventurar-se pelo interior do navio e, por falta de lanterna, bússola ou carretilha, entre outros, ficar perdido lá dentro. "Muitos já morreram tentando encontrar a saída", alerta.

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Naufrágios como o do Príncipe de Astúrias, em 1916, conferiram à Ilhabela o macabro apelido de "Cemitério de Navios". Em suas águas jazem, segundo o Sistema de Informações de Naufrágios (SINAU), banco de dados criado pelo biólogo e mergulhador Maurício Carvalho em 1995, os escombros de pelo menos 23 embarcações, como Aymoré, Velásquez e Teresina. "Há quem diga que, no Brasil, o número de naufrágios chega a 5 mil. Mas ninguém apresenta base documental ou prova testemunhal para chegar a tal conclusão", observa Maurício.

De fato, os números apresentados pelo Vice-Almirante José Carlos Mathias, da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM), são bem mais conservadores. Pelos registros da Marinha, os 8.500 quilômetros do litoral brasileiro abrigam 2.128 naufrágios. Desses, apenas 155 foram localizados. O primeiro naufrágio de que se tem notícia em águas brasileiras aconteceu em 1503. A caravela de Gonçalo Coelho afundou no dia 10 de agosto depois de colidir contra recifes na altura de Fernando de Noronha. Felizmente, ninguém morreu.

Segundo especialistas, o tesouro do Santa Rosa valeria hoje a bagatela de 400 milhões de dólares

Os dados da DPHDM, porém, só vão até 1950. Deixam de fora, entre outros, o Bateau Mouche IV, que naufragou na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, na noite de 31 de dezembro de 1988. A embarcação seguia rumo à praia de Copacabana, onde os passageiros assistiriam à famosa queima de fogos do réveillon, quando, por volta das 23h50, foi a pique. Na tragédia, 55 pessoas morreram. Fatalidade? Nada disso. "Todos têm sua parcela de culpa: desde o mestre-arrais do barco, que se aventurou em mar aberto apesar das péssimas condições do mar, até os vistoriadores da Capitanias dos Portos, que aprovaram o barco para levar até 153 pessoas", afirma o escritor Ivan Sant'Anna, autor de Bateau Mouche – Uma Tragédia Brasileira.

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Bateau Mouche IV naufragou na noite de reveillon. Crédito: Arquivo JB

Sant'Anna começou a investigar o naufrágio do Bateau Mouche em 2000, logo após colocar o ponto final em Caixa-Preta, o primeiro de seus quatro livros-reportagem sobre desastres aéreos. Em 2004, o programa Linha Direta, da TV Globo, exibiu um episódio dedicado ao caso e Sant'Anna resolveu engavetar seu projeto. Publicado em 2015, Bateau Mouche já teve seus direitos vendidos para o cinema. O longa-metragem está sendo escrito pelo roteirista Newton Cannito e será rodado pelo cineasta Afonso Poyart, de 2 Coelhos (2012), Presságios de Um Crime (2015) e Mais Forte que o Mundo (2016). "Mais que a catástrofe em si, me interessa o encontro de pessoas tão diferentes num mesmo local e numa mesma noite tão fatídica", resume o diretor.

Os motivos que levam uma embarcação a submergir são os mais variados possíveis. Vão desde condições meteorológicas desfavoráveis, como chuva torrencial e denso nevoeiro, até acidentes geográficos letais, como bancos de areia e recifes submersos. Durante a Segunda Guerra, muitos navios submergiram em águas brasileiras depois de serem torpedeados por tropas inimigas. É o caso do Wakama. O cargueiro alemão sumiu do mapa sem deixar vestígios no dia 12 de fevereiro de 1940 depois de ser interceptado pelo cruzador inglês HMS Hawkins na altura de Cabo Frio, no litoral do Rio. "Por pouco, muito pouco mesmo, o Brasil não declarou guerra à Inglaterra por violação de seu território marítimo", afirma Carvalho.

Maurício Carvalho em ação na costa brasileira. Crédito: Acervo pessoal

Um dos mais experientes mergulhadores de naufrágio do Brasil, Maurício Carvalho calcula já ter visitado as ruínas de 200 e tantos navios. Pela importância histórica, cita três: a corveta Camaquã, em 1944, no Recife; o paquete Itapagé, em 1943, em Alagoas; e o já citado cargueiro Wakama, em 1940, no Rio. O fascínio por naufrágios, conta, vem de longe. "Quem nunca leu histórias de pirata quando criança?", pergunta. Hoje, Carvalho é editor do site Naufrágios do Brasil e instrutor de mergulho em diversos cursos, como o Aquadive, em São Paulo, e o InAcqua, no Rio. "Volta e meia, me deparo com uma correnteza mais forte ou com uma falha no equipamento, mas nada que coloque minha vida em risco", explica.

Antes de pendurar suas nadadeiras de mergulhador, Carvalho gostaria de, um dia, voltar aos destroços do encouraçado Aquidabã. "Um dos mais importantes navios da Marinha do Brasil, afundou duas vezes: a primeira em 16 de abril de 1894, durante a Revolta da Armada, e a segunda em 22 de janeiro de 1906, em Angra dos Reis, no litoral do Rio", conta. Até hoje, não se sabe ao certo o que teria provocado a explosão. Dos 296 tripulantes, 198 morreram.

Editor do site Naufrágios, Marcello de Ferrari também tem lá seus "sonhos de consumo". Um deles é o Andrea Doria, o transatlântico italiano que naufragou no dia 25 de julho de 1956 após se chocar com o navio sueco Stockholm no litoral americano. O outro é o Santa Rosa, o galeão português que desapareceu em 20 de março de 1726, provavelmente no litoral de Pernambuco, próximo ao Cabo de Santo Agostinho. Só três dos 700 tripulantes escaparam com vida. "Dos navios submersos em águas brasileiros, é um dos mais cobiçados. Não à toa, abriga uma fortuna em moedas de ouro", revela. Segundo especialistas, o tesouro do Santa Rosa valeria hoje a bagatela de 400 milhões de dólares. Alguém se habilita?