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A gestação externa está mais próxima do que você imagina

Ectogênese – o ato de gestar um bebê em um útero artificial – soa como coisa de ficção científica, mas pode muito bem ser realidade caso você tenha grana.
Seth Laupus

Ponha-se no lugar da personalidade norte-americana Kylie Jenner por alguns minutos. Antes de começar a contar quanta grana você poderia estar ganhando com o Instagram, pare e pense nisso: se pudesse ter um filho, ou vários, e todo o seu dinheiro pudesse ser empregado de forma a eliminar todos os riscos associados à gravidez que poderiam afetar sua saúde, corpo e carreira, sem quaisquer ameaças ao seu filho ou você, você o faria?

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Em caso positivo, sua resposta se manteria a mesma se estivéssemos falando de “cultivar” o bebê em um útero artificial?

Ectogênese, o processo de gestação de um feto fora do útero soa como fruto da ficção científica, mas fato é que esta tecnologia pode sim, em algum momento, sair de Matrix e tornar-se realidade. No ano passado, pesquisadores do Hospital Infantil da Filadélfia, nos EUA, mantiveram fetos prematuros de cordeiro vivos em invólucros biológicos cheios de fluidos ao longo de quatro semanas e, em 2016, cientistas da Universidade de Cambridge mantiveram um embrião vivo em uma placa de petri por 13 dias (um dia a menos que o permitido por lei).

Com o tempo, tais tecnologias podem evoluir a ponto de alcançarem um meio-termo, afirma Scott Gelfand, professor de fiolosofia e diretor do Centro de Ética da Universidade de Oklahoma. Isso significa que um bebê poderia ser gestado fora do corpo. “Podemos chegar a esta tecnologia meio que esbarrando nela sem querer”, comentou Gelfand. “Podemos nos encontrar numa situação em que estas tecnologias acabem se encontrando.”

Carlo Bulletti, professor associado do departamento de obstetrícia, ginecologia e ciência reprodutiva da Universidade de Yale, nos EUA, acredita que um útero artificial 100% funcional poderia ser criado em até uma década, a depender do investimento feito. Bulletti, especialista em fertilidade, comenta ainda que o sistema proposto seria uma espécie de “cabine de vidro com proteção UV”, contendo uma substância proteica gelatinosa. O feto seria mantido com suprimentos de sangue materno, oxigenado por um pulmão artificial, circulando com o auxílio de um coração artificial, sendo ainda filtrado por rins artificiais. A máquina teria que passar por testes com animais que apresentam fetos de tamanho semelhante aos humanos primeiramente, complementa.

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A visão de um mundo em que a ectogênese se popularizou sugerida por Bulletti indicaria maior facilidade em casais do mesmo sexo a terem filhos com características biológicas suas, para mulheres com más-formações uterinas ou sem útero a terem filhos, além de maior igualdade entre gêneros por “um novo equilíbrio parental em que homens e mulheres não terão mais papéis primários e secundários”, disse.

Porém, como é o caso com qualquer nova tecnologia, a ectogênese deve dar as caras primeiramente como artigo de luxo. E numa situação em que uma a cada 11 pessoas não tem nem mesmo seguro de saúde, parece que, ao menos em um primeiro momento, o serviço seria usado apenas por casais ricos que teriam condições de bancar a terceirização de uma gestação.

Seria então o útero artificial uma versão mecânica da barriga de aluguel? Nestes casos, a gravidez poderia ser considerada indicativo de classe como quem depende de auxílio governamental ou mora em habitações públicas?

“Há o risco de que a ectogênese esteja disponível somente para os ricos a não ser que um sistema de acesso público seja criado logo no início”, afirma Evie Kendal, professora de bioética e saúde da Universidade de Deakin na Austrália, autora de Equal Opportunity and the Case for State Sponsored Ectogenesis. “Grande parte das demais tecnologias reprodutivas, como a fertilização in-vitro, estavam disponíveis inicialmente apenas para clientes ricos, mas com as melhorias na tecnologia, ela acabou se tornando mais próxima da realidade de muitos outros cidadãos”.

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Gravidez? Tô de boa

Gelfand teme, porém, que com o advento da ectogênese e seu consequente barateamento, possam surgir outros riscos. Ele comenta que a tecnologia do útero artificial pode ficar mais econômica ao longo do tempo e o uso do aparelho descartaria gastos com internações para lidar com complicações da gravidez, tratamento de possíveis síndromes alcoólicas fetais ou os gastos exorbitantes de partos prematuros. Por mais que destaque que tudo não passa do campo das hipóteses neste momento, ele questiona a possibilidade das seguradoras considerarem a gravidez como não-essencial e suspenderem a cobertura desta como um todo.

“Considerando a atual cultura política dos EUA agora, acho difícil haver uma legislação nacional que proibiria seguradoras de coagirem seus pacientes a utilizarem a ectogênese – supondo, claro, que esta seria segura e eficaz”,explica. “Pense bem, se há um genérico disponível que custa menos que um medicamento de marca, a seguradora nunca que cobrirá o medicamento de marca”.

Claro que não ter que lidar com os possíveis problemas de saúde ligados a gravidez poderia ser um resultado desejado por muitos. Kendal comenta que “mulheres não mais teriam que tirar licença do trabalho por qualquer coisa ligada à gravidez”, o que poderia lhes deixar em melhor situação financeira. Ela comenta ainda que “isto implicações substanciais quando se fala de carreira, tendo em vista que muitas vezes mulheres não são consideradas para possíveis promoções pelo fato de que talvez não estejam presentes quando essa hora chegar”.

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Mas o tratamento de quem deseja ter filhos naturalmente por parte das seguradoras não é a única coisa que preocupa Gelfand quando se fala de ectogênese e do clima político atual. Bioeticistas vem apontando que os direitos ao aborto estabelecidos por Roe versus Wade nasceram do direito à privacidade da mãe, não seu direito de dar cabo do feto. Este precedente e todos os casos que vieram depois dele afirmam que os estados não podem impôre limites ao aborto antes da viabilidade fetal. Mas e se o feto pudesse sobreviver fora do útero da mãe a qualquer ponto da gestação, onde ficaria o direito da mulher ao aborto?

Gelfand alerta que legisladores poderiam muito bem decidir que “mulheres que querem interromper a gravidez podem fazê-lo, mas o feto seria colocado em útero artificial”. Neste caso, optar pelo aborto pois não seria possível ter um filho (por motivos financeiros, por exemplo) seria um processo ainda mais burocrático. Sendo assim, legisladores pró-vida poderiam tentar usar os úteros artificiais como ferramenta de convencimento para que estas mulheres criassem o bebê eventualmente.

“Caso você queira fazer um aborto em alguns estados agora, eles fazem com que você passe por um ultrasom e você tem que ver o feto”, comenta Gelfand. “Imagine que nos EUA você talvez tenha que ir ali todo mês ver o feto se desenvolvendo em um útero artificial, com a intenção de que os pais desenvolvam sentimentos que não querem sentir e se vejam obrigados a ter a criança”.

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Francesca Minerva, pós-doutoranda da Universidade de Ghent do departamento de filosofia e ciências morais, crê que por mais que o útero artificial deva ser “regulamentado de maneira cuidadosa”, seus riscos não superam seus potenciais benefícios àqueles que não podem ter filhos naturalmente.

“Seria um erro prevenir o desenvolvimento de uma tecnologia com enorme potencial de possibilitar que outras pessoas tenham famílias e vivam felizes porque tememos que em alguns locais e em alguns casos específicos, esta tecnologia poderia ser usada da maneira errada”, comenta. “É esta a história do progresso: com cada tecnologia, vem esse risco”.

Kendal sugere que a ectogênese poderia erradicar a por vezes exploratória prática da barriga de aluguel, em que um certo desequilíbrio de poder pode levar pais ricos a se aproveitarem de mulheres mais pobres que assumem este papel. “Um dos possíveis benefícios da ectogênese é que ela poderia terceirizar a gravidez por meio de uma máquina e não uma pessoa”, explica. “Como não é possível explorar ou desumanizar uma máquina, este deveria ser o método comercial de escolha”.

De forma a garantir que o útero artificial não reduza a autonomia reprodutiva das mulheres e expanda, em vez de reduzir suas opções, Gelfand afirma que precisamos ter um sério debate ético sobre o tema antes de tudo.

“Estamos em uma posição sem igual, em que vemos esta tecnologia já fronteiriça e ainda assim pudemos discutí-la e entendê-la melhor”, afirma. “Há coisas que nós enquanto sociedade precisamos fazer, em minha opinião, coisas a serem pensadas e discutidas, antes de podermos acordar e ler no jornal que ‘Cientista faz parto de bebê em útero artificial’ e pensemos ‘poxa e agora?’”

Artigo originalmente publicado na VICE US.

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