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Como a Rússia de Putin se tornou um paraíso da máfia

Por dentro da longa e estranha história do crime organizado da antiga União Soviética — e como a Rússia o usou contra o Ocidente.
Foto: VICE.

Mark Galeotti sempre se interessou por tudo que fosse russo. O autor e especialista em crime internacional nascido na Grã-Bretanha, que escreve regularmente pro Moscou Times e atualmente mora em Praga, é formado em História. Seu interesse no submundo russo data de 1988 — logo depois da queda da Cortina de Ferro — quando ele estava fazendo seu doutorado sobre a União Soviética.

Em sua pesquisa, Galeotti se encontrou com veteranos da guerra soviética no Afeganistão assim que eles voltaram do front — aí os visitou um ano depois para ver como eles tinham se aclimatado à vida normal. Enquanto alguns se adaptaram, ele notou que um número alarmante deles pareciam ter se voltado pro submundo do crime, trabalhando para empresários que desviavam recursos do estado. A ideia de que o crime organizado pudesse se proliferar no que, na época, continuava sendo um estado policial fascinava Galeotti. A situação tinha uma trivialidade que se aplicava tanto a Nova Jersey quanto a Moscou: só porque você não vê a máfia na rua, não quer dizer que ela não exista.

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Graças a seus contatos na Rússia, Galeotti — que já escreveu pra VICE — embarcou num projeto de 30 anos. The Vory: Russia's Super Mafia, lançado pela Yale University Press, é o resultado. Galeotti desenterra as origens dos notórios vor-v-zakone (ladrões na lei) russos, explora sua ascensão com o colapso da URSS, investiga como seus valores e práticas influenciaram a Rússia de hoje, sonda como Putin os manteve sob controle, e toca nas ligações, se é que existem, entre Donald Trump e esse vasto submundo.

Liguei para ele para falar sobre uma história que, mesmo para um ex-presidiário obcecado pela Cosa Nostra como eu, tem muitos episódios bizarros e surpreendentes.

VICE: Uma coisa que me fascinou foi a extensão do arco dessa história. Você pode falar como os gulags de Stalin moldaram homens que se tornariam ladrões na lei, e cimentaram a estrutura que se tornaria a Máfia Russa?
Mark Galeotti: Já havia uma cultura de submundo antes, o chamado Vorovskoy Mir, o Mundo dos Ladrões. Eles tinham tatuagens e gírias próprias, mas foi a experiência de serem arrastados por esse vórtex de horror que era o sistema de campos de trabalhos forçados conhecidos como gulags [que desencadeou tudo]. Stalin queria comandar esses campos sem gastar muito e ofereceu um acordo aos Vory: aqueles dispostos a colaborar com o estado teriam uma vida muito mais fácil [dentro dos brutais gulags].

Stalin já tinha trabalhado com gangsteres antes da revolução, organizando assaltos a bancos e até pirataria para levantar dinheiro pros revolucionários bolcheviques. Eles basicamente se tornaram seguranças e capatazes que mantinham a população carcerária — os prisioneiros políticos — trabalhando. Agora, isso ia contra um dos elementos fundamentais do velho código Vory, que é nunca, nunca cooperar com as autoridades.

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Mas muitos deles acharam que era um bom negócio e se tornaram os chamados “sukas”, [ou] “vadias” aos olhos dos tradicionalistas. Durante os anos 1930 até a primeira metade de 1940, esses dois grupos criminosos não interagiam muito. Os colaboradores sabiam que não era uma boa mexer com os tradicionalistas, e os tradicionalistas sabiam que se mexessem com os colaboradores, o estado viria atrás deles.

Já estive preso e essa parece uma situação prestes a explodir. Que foi exatamente o que aconteceu, certo?
Depois da Segunda Guerra Mundial houve uma mudança repentina no equilíbrio de poder. Você tinha mais prisioneiros chegando, e basicamente essa guerra fria que existia entre os dois grupos não podia continuar. Houve essa explosão de violência, basicamente uma guerra civil dentro do Vory no sistema gulag no final dos anos 40, começo dos 50 — uma guerra sangrenta de linchamentos e pessoas transformando qualquer objeto pontiagudo em armas. No final, os colaboradores venceram, em grande parte porque foram apoiados pelo estado, que deu a eles a oportunidade de vencer.

Stalin morreu em 1953 e os gulags foram abertos. Todos esses criminosos saíram — esses novos colaboradores/criminosos — e basicamente colonizaram o resto do submundo soviético. Era toda uma nova cultura de Vorovskoy Mir. Basicamente “Somos gangsteres, somos durões, temos nossa própria cultura, nosso código e tudo mais. Como o estado é muito poderoso, vale a pena colaborar — quando é do nosso interesse”.

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Eles eram os juízes, os líderes comunitários, os altos sacerdotes do mundo criminal. Não necessariamente líderes de gangues, mas o tipo de pessoa que podia resolver disputas e fazer a lei, bem literalmente. Isso era essencial, porque todos os submundos funcionam resolvendo disputas. Seja as reuniões da Cosa Nostra ou qualquer coisa assim. Os russos fizeram isso com um elenco de criminosos altamente respeitados que podiam ser os juízes.

Por que o colapso da URSS alimentou esse crescimento de maneira tão astronômica?
De repente você tinha um novo país, criado com um golpe de caneta. A Rússia era um país dominado pelo Partido Comunista, com a economia planejada centralmente, e do nada era uma democracia — um sistema capitalista de livre mercado. Todas as antigas regras pareciam não se aplicar mais. As antigas estruturas de poder estavam em crise. Foi um período de caos total. Do ponto de vista do crime organizado, essa era uma gigantesca oportunidade.

As várias gangues que já existiam nas sombras, quando ainda se preocupavam com o estado e a KGB, agora podiam ascender. O que você quisesse, era só tomar: indústrias, recursos, propriedades, controle sobre territórios. Não havia um senso de linhas de território ou quem era mais poderoso que quem, e houve uma grande explosão de violência. Todas as gangues estavam tentando tomar o que podiam com as próprias mãos antes que outra pessoa tomasse. Foi meio que uma guerra de todos contra todos.

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Desse caos darwiniano, o que emergiu foi meia dúzia de grandes alianças. Não eram gangues formais — não como a família do crime de Nova York, com um único Chefão — mas alianças com várias gangues menores. Eram as gangues de Moscou contra o resto. Eles se consideravam a elite e tinham muito mais dinheiro e poder. No final dos anos 1990, começamos a ver uma divisão de territórios. Uma hierarquia foi estabelecida e a violência começou a cair, mesmo antes de Putin subir ao poder.

A diferença-chave, parece, entre o Vory e a máfia nos EUA — além de sua relativa força no momento atual — é sua influência sobre o resto do país. Os americanos adoram filmes de máfia e Sopranos, mas a Rússia parece estar em outro nível, onde valores, códigos e práticas do crime organizado meio que “mafializaram” o país. Como você explica isso?
O Vory estava entre as pessoas à frente de criar um novo sistema político e econômico nos anos 1990. Honestamente: a Rússia é comandada por pessoas que estão roubando por todos os lados. É uma cleptocracia. Eles não fazem isso do jeito usual das máfias, safanando pessoas numa esquina. Eles fazem isso através de contratos governamentais e acordo corruptos. Há uma sobreposição considerável entre como os gangsteres operam e como a elite opera. As fronteiras entre os dois grupos são bastante permeáveis.

O capitalismo surgiu no meio de uma guerra de gangues na Rússia e a ideia era: o fundamental é fazer dinheiro. Sabemos que o capitalismo funcional depende de instituições, leis, direitos de propriedade e confiança no sistema. Mas não era assim que a Rússia via isso. Eles só pensavam no dinheiro, e se você só está interessado nisso, vários métodos criminosos parecem atraentes. Fico impressionado com a extensão em que você vê coisas como chantagem e extorsão serem usadas como táticas de negócio na Rússia.

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O que é comportamento aceitável dentro das classes política e empresarial é claramente influenciado por táticas que dizem que as leis não importam — o que importa é fazer o trabalho. Quase posso dizer que todo empresário russo é um gângster. O Vory está entre os acionistas — os fundadores da Nova Rússia. Não é surpresa que seus valores tenham sido consagrados no país.

Ele é frequentemente descrito como envolvido com criminosos financeiros de todos os tipos, mas Vladimir Putin, apesar de sua história com gangsteres, manteve o Vory sob controle. Por quê?
Quando Vladimir Putin era vice-prefeito de São Petersburgo no meio dos anos 90, seu trabalho era ser a ligação entre todas as pessoas com quem era preciso falar: estrangeiros, empresários ou o crime organizado. Ele tinha que se certificar que tudo estava correndo tranquilamente na cidade. Havia alguma interação com Vladimir S. Barsukov, que era conhecido como Governador da Noite. A ideia era que de dia as autoridades estavam no comando, mas à noite Barsukov comandava São Petersburgo. Aí a carreira de Putin decolou, ele foi para Moscou, se tornou primeiro-ministro e depois presidente.

Isso não era necessariamente um problema desde que Barsukov soubesse seus limites, soubesse as regras do jogo. O problema é que depois de certo ponto, ele era visível demais e começou a ser um embaraço para Putin. Ele era meio que um esqueleto ambulante do armário de Putin. Em 2007, eles decidiram derrubá-lo. Eles vieram de helicóptero de Moscou. Foi basicamente uma operação militar para pegar Barsukov, aí eles o levaram direto para Moscou. Eles queriam mostrar que não importava quão grande você fosse, o estado estava de volta e podia te derrubar.

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Você descreve a Rússia como uma cleptocracia, onde não há distinção entre crime, política e forças da lei. O que isso significa para os EUA e para o mundo daqui para frente?
É um problema porque a Rússia é um grande jogador no mundo da política e economia global. A cleptocracia russa e as ligações entre Kremlin, negócios e crime organizado significam que a Rússia pode infestar outros países com suas próprias práticas. Putin já está envolvido com esse tipo de guerra política com o Ocidente — ele está tentando usar o crime organizado russo como uma arma.

Já vimos organizações criminosas russas usadas para matar inimigos deles, conseguir informação, mover espiões pelas fronteiras e levantar dinheiro para Putin, apoiando grupos ou meios de comunicação que ele gosta e que são bons em espalhar desinformação.

São problemas sérios, mas há alguma esperança. Acho que há essa pressão lentamente aumentando para algum tipo de mudança dentro da Rússia. Acho que temos uma população cada vez mais cansada de corrupção, e uma elite que superou os gangsteres e os acha uma vergonha. Não acho que vamos ver alguma coisa enquanto Putin estiver no Kremlin, mas depois que ele sair, pode ser em dois anos ou seis anos, ou mais, mas vamos ver algo acontecer. Há uma boa chance de ver uma luta contra o crime organizado na Rússia. Mas por enquanto, esse é claramente um problema para todos nós.

Você acha que a investigação sobre os supostos laços do presidente Trump com a Rússia vai descobrir algo em relação ao Vory? Trump tem um histórico de laços com a máfia italiana nos EUA e alguns de seus lacaios, como o consigliere Michal Cohen, seriam próximos de mafiosos russos.
De Donald Trump a Michael Cohen, o que vejo acontecendo nos EUA não é muito uma história sobre o crime organizado cotidiano na Rússia, mais uma história da típica ganância americana, de falta de moral e da crença deprimente de que qualquer negócio é um bom negócio, independente de quem o conduza. Não vi nenhuma prova séria de qualquer ligação explícita entre Trump e mafiosos russos. O que vejo é evidências de quão longe a Organização Trump está disposta a ir com investidores e compradores duvidosos — russos ou de outros lugares — com quem corporações mais respeitáveis não se meteriam. No processo, é provável que tenha havido lavagem de dinheiro de fontes questionáveis, mas isso não é o mesmo que laços diretos com mafiosos. Acima de tudo, essa é uma história sobre corrupção, enquadrada em termos morais e legais, e sobre uma horrível falta de ética e transparência.

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