Parem de violentar as grávidas brasileiras
Ilustração: Laura Loyola/VICE

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Mulheres

Parem de violentar as grávidas brasileiras

Práticas que deixaram de ser recomendadas há décadas ainda acontecem nas redes pública e privada de saúde do Brasil.

"Tira a mão do seu filho, você vai contaminá-lo, sua maluca." Os diálogos presentes no documentário O Renascimento do Parto 2, em cartaz nos cinemas brasileiros, são chocantes, mas tão comuns que infelizmente tornaram-se o retrato da rotina de partos violentos realizados em hospitais – sobretudo públicos, mas também privados – brasileiros. Trata-se de um dia a dia cercado de desrespeito contra a mulher, análogo ao estupro, dizem os especialistas presentes no filme.

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Além de humilhadas verbalmente, as grávidas são agredidas fisicamente, impedidas de comer ou beber água por horas, ou submetidas a práticas arcaicas que já não são recomendadas há décadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). E o pior: a maioria nem tem consciência disso. Para quem, como eu, começou a se interessar pelo assunto apenas durante a gravidez, foi um choque constatar essa rotina de maus-tratos que se arrasta há décadas no país.

"A violência é ainda mais evidente com mulheres negras, mais velhas, muito novas ou obesas"

Suzanne Miranda é doula [a palavra significa “mulher que serve” e é utilizada para referir-se à profissional que orienta e assiste a nova mãe no parto] há cerca de dois anos, e passou quatro meses trabalhando como voluntária numa maternidade pública do Rio de Janeiro, em uma das regiões com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade. Lá, percebeu que a violência é ainda mais evidente com mulheres negras, mais velhas, muito novas ou obesas.

A vida das mães solo

"Observamos situações em que algumas mulheres eram mais maltratadas. Alguns médicos eram realmente cruéis com grávidas muito mais velhas ou muito mais novas, negras, gordas", conta Suzanne. "Elas sofriam muita violência verbal. Por outro lado, as brancas que chegavam no hospital com um acompanhante, uma bolsinha da maternidade mais arrumada, não só tinham um tratamento melhor como ainda ganhavam 'um prêmio': a cesárea."

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A crença de que a cesariana é menos perigosa e, por isso, reservada à classe média, se espalhou nas últimas décadas no Brasil, que é hoje um dos campeões do mundo em cirurgias no parto. No país, o índice é de 55% graças ao sistema de saúde privado, onde o número de cesáreas chega a 85%.

"[Um profissional] ainda falava para a grávida: 'Seu filho te arrebentou toda'" – Suzanne Miranda, doula

Em fevereiro deste ano, a OMS emitiu novas diretrizes para estabelecer padrões de atendimento e reduzir intervenções médicas desnecessárias. Os riscos das cesáreas sem indicações reais são objeto de estudos recentes aqui e lá fora, e as evidências científicas indicam aumentos das chances de complicações como infecções e uma maior probabilidade de problemas em gravidezes futuras. Mesmo assim, a crença de que o parto normal é perigoso continua firme e forte.

O medo do parto normal também é reforçado pela alta violência obstétrica. Práticas absolutamente obsoletas continuam sendo feitas regularmente, tanto no sistema público de saúde como no privado. As mais recorrentes são a episiotomia, uma incisão feita na área entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto, e a manobra de Kristeller, onde a barriga da mulher é empurrada com força para baixo. Detalhe: a manobra foi criada pelo ginecologista alemão Samuel Kristeller em 1867. E, pasmem, 149 anos depois, continua em voga.

Suzanne afirma ter visto muitos profissionais fazendo episiotomia sem qualquer necessidade, além de colocar no prontuário médico que tinha ocorrido uma laceração natural. "[Um deles] ainda falava para a grávida: 'Seu filho te arrebentou toda'. O pior é que a pessoa, via de regra, sofria uma violência absurda e no fim ainda agradecia ao médico ou pedia desculpas por ter gritado", relembra.

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Esse tipo de violência também acontece na rede privada, onde a prática da cesariana desnecessária é recorrente. Ter um parto normal pelo plano de saúde é quase impossível – e quem insiste acaba correndo sérios riscos. Depois de mudar de médico para fugir de uma cirurgia, e tentar, sem sucesso, utilizar a equipe de plantão de uma maternidade particular carioca, serviço que o plano de saúde em teoria cobria, Raquel Correa achou que finalmente havia encontrado a médica ideal. A obstetra garantiu que faria parto normal, com a única condição de que a gestação não passasse das 40 semanas – a OMS, mais uma vez, indica que é possível esperar até 42 semanas em caso de gravidez saudável.

Mas, quando a equipe médica chegou ao hospital, por volta das 6h da manhã, Raquel descobriu que estava enganada: o "show de horrores" começou.

"Primeiro chegou o anestesista, para meu espanto", menciona Raquel, que ficou o tempo todo deitada – posição que é a mais desfavorável para a gestante, segundo estudos científicos. Mesmo com a dilatação bem avançada, começaram todas as intervenções possíveis: primeiro fizeram o rompimento artificial da bolsa, já que a médica queria agilizar o parto. "Sua primeira consulta começava às 8h", fala Raquel.

"Me senti muito incapaz" – Raquel Correa, atendida na rede privada de saúde

Depois, ela diz que a profissional lhe deu uma anestesia muito forte, sem consentimento. "Tive que ir para o soro, porque provavelmente as contrações, que estavam bem avançadas antes das intervenções, perderam a regularidade. Sem saber o que fazer, me senti muito incapaz. Tomei ocitocina sintética na veia [um hormônio natural que acelera as contrações], muitos toques e fiquei com edema de colo."

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O pior, no entanto, ainda estava por vir. Após a chegada de um médico auxiliar, que começou a discutir com a obstetra, os batimentos cardíacos do bebê se foram. "Começou a tensão. Para mim, era como se o tempo tivesse congelado. Não conseguiram me levantar por conta das anestesias, e a cama não saía do lugar", rememora.

A demora para chegar ao centro cirúrgico foi fatal.

"Eu nunca me oporia a uma cesárea necessária. Mas não fui consultada, meu marido não foi autorizado a entrar na sala. A médica nem sequer me explicou o que havia acontecido. Só me lembro de acordar já na enfermaria. Cheguei a conversar com uma advogada para processá-la, mas não tive a coragem de seguir adiante."

Desde 2011, graças ao projeto Rede Cegonha, no setor público, todas as boas práticas obstétricas tiveram uma melhora substantiva de acordo com Maria do Carmo Leal, coordenadora geral da pesquisa “Nascer no Brasil”. No setor privado, o Projeto Parto Adequado, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), também vem qualificando 140 hospitais particulares que desejam mudar a forma de atender o parto e aprimor suas práticas seguindo as recomendações da OMS. O resultado imediato foi a diminuição de 10% das cesarianas em um ano e meio. Um bom primeiro passo. Mas para quem perdeu um filho por conta das violências arraigadas na classe médica brasileira, ainda é muito pouco.

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