Drogas

Como o tráfico de drogas transformou um pacífico país tropical num narcoestado

A Guiné-Bissau parece mais um destino de férias que algum tipo de zona de guerra às drogas.
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Foto: Antony Loewenstein.

Foi a maior apreensão de drogas da história do país. Em setembro, 1,8 tonelada da droga foi descoberta em sacos de farinha num barco na costa do Atlântico da Guiné-Bissau, África Ocidental. Em duas semanas, quatro guineenses, três colombianos e um maliano foram presos. A apreensão veio depois de outra grande no país no começo do ano, quando 789 quilos de cocaína foram descobertos no fundo falso de um caminhão transportando peixe congelado.

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Apesar da turbulência em seu governo e instituições nas últimas décadas, a Guiné-Bissau não se encaixa no estereótipo do que a ONU e o DEA rotulam como um “narcoestado”, definido pelo Fundo Monetário Internacional como “onde as instituições legítimas são penetradas pelo poder e dinheiro do comércio ilegal de drogas”.

Cubro o que acontece no país há cinco anos e é um lugar relativamente seguro comparado com outros países que são paraísos para tráfico de drogas. Apesar de pequenos crimes estarem aumentando e a taxa de violência contra civis esteja piorando, elas são bem mais baixas comparando com nações consumidas por drogas, como México e Afeganistão.

O desemprego é alto, mas o país tem uma pletora de ilhas tropicais remotas e pacíficas, que lembram mais um destino de férias com palmeiras e água do mar morna que alguém tipo de zona de guerra às drogas. Em comparação, Honduras – o país de trânsito de cocaína da América Central com as maiores taxas de violência no mundo fora de uma zona de guerra, e onde também estive para escrever meu livro sobre a guerra às drogas – todo dia parecia perigoso.

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Ansumana Keita, 87 anos, mora no vilarejo Kassumba perto da fronteira com a Guiné.

Conheci Ansumana Keita, um homem de 87 anos que fala francamente sobre sua comunidade ser explorada por autoridades guineenses corruptas e cartéis de drogas estrangeiros. O vilarejo de Keita, Kassumba, que não tem serviços básicos como eletricidade e água encanada, não ganhou nada com o crescimento do mercado de drogas, nem do governo. Ele disse que já viu tijolos de cocaínas à prova d'água aparecerem na praia, jogados de barcos. Mas eles são inúteis para sua comunidade. “Não nos beneficiamos da praia”, ele disse, “precisamos de água potável e escolas melhores”.

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Apesar da relativa calma das cidades e vilarejos da Guiné-Bissau, os cartéis de drogas basicamente cooptaram o país.

Mas o que está acontecendo lá? Por que essa ex-colônia portuguesa, um país não muito maior que Maryland, se tornou um ponto de passagem da cocaína cultivada na América do Sul e contrabandeada para a Europa?

A Guiné-Bissau é assolada por instabilidade política desde que declarou independência em 1974. O presidente atual, José Mário Vaz, já indicou e tirou oito primeiros-ministros desde que tomou posse em 2014, e corrupção nos sucessivos governos e nas forças armadas é endêmica. O país realizou eleições presidenciais de maneira pacífica mês passado, mas disputas políticas e um suposto golpe recente complicaram o segundo turno que acontece no final de dezembro.

Essa corrupção já se infiltrou na sociedade. Desde a independência, foram centenas de assassinatos políticos. Dez anos atrás, uma comissão da verdade e reconciliação foi estabelecida, mas nenhum assassinato foi investigado ainda. Muitos cidadãos me disseram que não confiam na polícia ou nos tribunais. Em vez disso, as pessoas relatam seus problemas para jornalistas, que acabam encarando assédio sério. Ano passado, Augusto da Silva, presidente da Liga de Direitos Humanos guineense, disse à agência de notícias portuguesa Lusa que por causa da brutalidade policial, corrupção, serviços ruins do governo e falta de responsabilização do estado pela violência, a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau é “precária e preocupante”.

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Os cidadãos enfrentam uma falta de opções insana para responsabilizar as autoridades. “A história deste país é marcada por episódios sérios de violações que continuam sem punição, fazendo a impunidade ser a marca registrada do país, o que consequentemente gera um senso de ódio, vingança e retaliação”, Silva disse em 2017.

Quando os civis protestam, como em novembro de 2019, quando dois jovens foram baleados e mortos num funeral na capital Bissau depois de marchas contra o governo, eles arriscam serem mortos no meio da rua com pouca esperança de justiça.

Além dessa instabilidade, a Guiné-Bissau é um dos países mais pobres do planeta. Quase 70% de seus cidadãos vivem abaixo da linha da pobreza, deixando a sociedade vulnerável para a atração dos dólares das drogas.

São essas fraquezas, além das fronteiras porosas do país e sua posição geográfica na costa africana do Atlântico, que desde o meio dos anos 2000 tornaram a Guiné-Bissau um ponto de trânsito de cocaína para grupos criminosos da América do Sul e África. Um oficial de alto escalão da ONU estimou que pelo menos 30 toneladas de cocaína – um quinto do consumo anual total de cocaína nos EUA – entram e saem da Guiné-Bissau todo ano.

Em 2013, antes do presidente atual assumir, o Departamento de Estado americano divulgou um relatório dizendo que “os oficiais do governo em todos os níveis são cúmplices” no tráfico de drogas. Ano passado, um oficial sênior da ONU na Guiné-Bissau confirmou para a Global Initiative que “o país ainda é um grande centro de tráfico. Os atores podem mudar, mas o jogo continua o mesmo”.

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É um círculo vicioso: quanto mais dinheiro de drogas entra nas instituições do país, mais aberto ele se torna para corrupção. Nem todos os oficiais do governo e do exército estão envolvidos com tráfico de drogas, mas anos de disfunção política deixaram o país sem instituições fortes ou responsáveis.

“Os narcotraficantes não estão no poder [na Guiné-Bissau], mas são extremamente próximos do centro do poder”, escreveu o historiador gambiano Hassoum Ceesay em 2017. “E enquanto as drogas não comandam o país, traficantes tiram proveito da fraqueza inerente do estado e exacerbam isso com sua presença.”

Antero Lopes, chefe do Rule of Law and Security Institutions da missão da ONU em Bissau, disse a Bloomberg no fim de 2018 que “a Guiné-Bissau é vítima de narcotráfico por causa da vulnerabilidade de suas instituições. O crime organizado também corrói a estabilidade e a democracia – é uma ardil 22”. O que isso significa na prática é que muitos políticos locais são financiados por dinheiro de drogas e se tornam dependentes dele quando são eleitos. Segundo a Transparency International, em 2018 a Guiné-Bissau tinha um dos setores públicos mais corruptos de qualquer nação da Terra.

Mesmo assim, o rótulo de narcoestado é simplista demais para os problemas encarados pela Guiné-Bissau. Rivalidades constantes entre o exército e o governo são uma vantagem para os traficantes. Generais muitas vezes pagam seus soldados com sacos de dinheiro, às vezes traficantes estão dispostos a participar disso se oficiais tornam seu trabalho mais fácil. Pagamentos diretos em dinheiro garantem lealdade e são impossíveis de rastrear, permitindo que generais corruptos e traficantes comprem amizades.

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Tentativas de lidar com o Calcanhar de Aquiles de drogas da África não costumam terminar bem. O DEA vem agindo na nação há anos, mas fora uma prisão que rendeu manchetes, mas acabou se mostrando infrutífera, em 2013 de Jose Americo Bubo Na Tchuto, um ex-chefe naval da Guiné-Bissau e supostamente barão das drogas da África Ocidental, a agência não conseguiu resolver o problema. As autoridades também estão perplexas. O presidente Vaz disse em março que “não temos aviões, não temos barcos, não temos radares para nos dar controle sobre nossa zona econômica”.

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Bubaque é uma das ilhas Bijagos onde traficantes depositam, armazenam e traficam drogas.

Um oficial do exército, Djibril Sanha, me disse na Ilha de Bubaque que ele “não tinha aparelhos de comunicação, só nossos celulares”, e ainda assim esperavam que ele perseguisse traficantes de drogas. “Não entendo o que estou fazendo aqui”, ele disse. “Você nos dá uma cabeça e estômago, mas não pernas.”

Que as autoridades sejam tão prejudicadas em sua luta contra os traficantes pode ser resultado da corrupção no topo. Umaro Sissoco Embaló, ex-primeiro-ministro da Guiné-Bissau e candidato presidencial no segundo turno de dezembro, me disse que acredita que o partido da situação do país, o Partido pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), está diretamente envolvido com tráfico de drogas, uma acusação que ouvi muito quando visitava a Guiné-Bissau para meu livro sobre a guerra às drogas global. Não é coincidência que Cabo Verde, com que o partido tem conexões profundas, também seja uma nação altamente emaranhada com o tráfico de cocaína.

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“O governo atual está trabalhando com os cartéis de drogas”, disse Embaló, que é acusado de liderar uma tentativa de golpe contra o governo em outubro, o que ele nega. “Parece loucura, mas é verdade. Eles só se importam em continuar no poder. Eles não ligam para o povo da Guiné-Bissau. Muitos candidatos presidenciais apoiam cartéis de drogas, publicamente e no privado.”

A ONU acredita que o país está passando por uma guinada. Na verdade, a organização aconselha os traficantes de drogas a evitar a Guiné-Bissau porque agora é caro demais subornar oficiais. Depois de uma grande apreensão em setembro, o representante da África Ocidental e Central do Gabinete de Drogas e Crimes da ONU (UNODC), Antonio Mazzitelli, me disse: “A rota na Guiné-Bissau está completamente fechada depois da apreensão recente, pelo menos nos próximos seis meses”, ele disse. “Se fosse um traficante razoável, eu não passaria meu produto pela Guiné-Bissau. Eu procuraria outros pontos na região, e pontos fracos existem na África Ocidental, mas os custos de operação [para pagar oficiais corruptos] estão aumentando para os traficantes.”

Mazzitelli argumenta que muitas das apreensões de cocaína anteriores foram “por acaso”, mas que as interdições recentes são sinais de que há “um interesse em fazer cumprir a lei e dar sentenças firmes”.

Nos últimos anos, tráfico de drogas através da África Ocidental tem sido consistentemente ligado pelas agências da lei e a mídia ao Talibã e Al-Qaeda, que estariam lucrando com o tráfico. E Domingo Monteiro, vice-diretor da polícia judicial da Guiné-Bissau, disse em setembro que uma carga apreendida era destinada a militantes islâmicos. “As drogas pertencem a rede terrorista Al-Qaeda”, ele disse a Reuters.

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Quando a VICE pediu para ver evidências dessa alegação, Monteiro se recusou a comentar. Na verdade, as provas simplesmente não existem. A Global Initiative de Genebra, um grupo investigando crime organizado, não encontrou evidências este ano de qualquer ligação da Al-Qaeda com tráfico de cocaína, mesmo dizendo que é plausível que organizações extremistas que operam no Saara estejam envolvidas no tráfico.

Segundo a Global Initiative, as apreensões deste ano foram de cocaína traficada por contrabandistas africanos muito bem conectados que operam no comércio de cocaína trans-saariano, tendo o papel de interlocutores ligados a cartéis na América Latina, África e Europa. Com a demanda de cocaína subindo na Europa, e especialmente no Reino Unido, a África vai continuar tendo um papel vital no tráfico de drogas.

Mas a Guiné-Bissau não está sozinha nisso. Muitos estados africanos pobres, e portanto vulneráveis, são alvos dos cartéis de drogas, como Guiné, Togo, Mali, Níger e Costa do Marfim, como pontos de trânsito de cocaína para a Europa.

Enquanto isso, a África não é mais só um continente de trânsito para tráfico de drogas, mas uma coleção crescente de estados que produzem grandes quantidades de drogas como heroína e metanfetamina para consumo doméstico e internacional na Ásia.

Isso já está afetando o uso de drogas no continente. Segundo um relatório recente da Enact, uma coalizão de grupos de segurança incluindo a Interpol que é financiado pela União Europeia, a África verá o maior aumento de uso de drogas ilícitas do mundo nos próximos 30 anos. A Enact prevê que a África Ocidental e Oriental verão um grande aumento no uso de drogas até 2050.

Mas o tráfico de drogas é pernicioso. Mesmo partes do país onde a atração do dinheiro das drogas diminuiu, aqueles que se acostumaram a ganhar um bom dinheiro se voltaram para outras formas de crime. O mecânico e piloto de barcos Papis Djata me disse na Ilha de Bubaque nas Ilhas Bijagos – um arquipélago de cerca de 88 ilhas que são usadas por traficantes para armazenar e movimentar drogas – que nem o governo nem doadores estrangeiros têm fornecido oportunidades viáveis de emprego. “Os jovens que costumavam carregar drogas fazem pouco dinheiro agora”, ele disse. “Quando esses jovens trabalhavam para traficantes, você os via dirigindo carros caros. Mas quando esse trabalho acabou, o crime aumentou de repente.”

Enquanto oficiais corruptos e traficantes contam seu dinheiro, as pessoas da Guiné-Bissau continuam presas num círculo de pobreza. Até que a procura do Ocidente por cocaína e outras drogas ilícitas decline, ou as drogas sejam legalizadas nas maiores nações do Ocidente, a Guiné-Bissau continuará sendo vítima dos traficantes.

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