Harry OG Jumonji é um skatista inigualável. Maloqueiro e carismático em medidas equivalentes, ele conserva um tresloucado jeito de andar de skate que se integra ao fluxo de qualquer grande cidade. Foi essa inata desenvoltura que o tornou conhecido como lenda fundadora da modalidade street em Nova York. Nascido brasileiro, mudou-se com o pai para os Estados Unidos aos 14 anos, no começo dos anos 1980. Consigo, levou a ginga de marreteiro. Numa época em que tudo apontava para o vertical da Califórnia, fez das vias públicas da metrópole a sua skatepark.
Apesar da reputação histórica e da admiração de nomes como Mike Vallely e Christian Hosoi, sua vida não foi fácil. Viciou-se em heroína e, por conta disso, terminou preso algumas vezes. Vira e mexe, se gaba de ser o último de sua espécie. “Não é o que você faz, mas como e onde”, dá a letra.
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Um documentário recente – OG: The Harry Jumonji Story, dirigido por Erica Hill – descreve toda essa saga de ascensão, queda e redenção. Mas Harry agora está limpo. De volta ao Brasil, reveza pernoites entre Ubatuba, onde tudo começou, e São Paulo. Ele se apega muito a um terço de contas abençoado por Dalai Lama, à filha pequena e à amizade do também skatista Felipe Foguinho para se manter do lado luminoso da força.
Deu pra notar tudo isso quando nos encontramos com Harry, Foguinho e Felipe Humphreys no Centro de São Paulo para uma session e entrevista. Os manos colaram com câmera e Humphreys aproveitou pra gravar o rolê, que começou na Praça da República e terminou no Pátio do Colégio, passando pela 24 de maio e o Teatro Municipal, onde o Harry parou o comércio com um slide que deslizou por uns bons metros, em frente à Galeria do Rock.
Quando o cansaço bateu forte debaixo do sol a pino já era fim de tarde. Sentamos numa lanchonete à busca de açaí. Surgia finalmente o momento propício para ligar o gravador.
VICE Sports: Bem, Harry, vamos começar do começo. Você se lembra do momento-chave em que o skate te fisgou?
Harry OG Jumonji: Quando eu era ainda moleque, em Ubatuba, fui a uma loja de surfe e, lá, vi uma revista Skateboarder com o Jay Adams na capa. Nessa época eu já surfava, mas nunca tinha andado de skate. Ao ver aquela foto, pensei: “Uau!”. Sabe? Foi tipo descobrir o Spiderman ou o Superman. Na hora me deu aquela vontade de aprender a fazer aquilo. Minha mãe me ajudou, e comprei um skate. Ver o Jay Adams naquele momento foi decisivo. Foi a Bíblia, por meio dele me veio a revelação: “Eu quero voar!”
Quantos anos você tinha?
Eu tinha 7 anos [Harry nasceu em 31 de agosto de 1967]. Fiz parte da primeira geração do skate no Brasil, conheci os caras que começaram o skate por aqui. Eles eram meus ídolos, Kao Tai, Jun [Hashimoto]. Pergunte-me sobre a história do skate no Brasil, eu manjo. Mas, se quiser falar de Nova York, aí tem muita coisa também.
Com que idade você chegou em Nova York?
Saí do Brasil com 14 anos. Me pergunte sobre Ubatuba.
Qual é a pira de Ubatuba?
Ubatuba foi onde eu me defini como pessoa. Meu estilo, meu jeito de andar.
Mas você nasceu em São Paulo, não?
Minha mãe que me levou pra Ubatuba. Ela se separou de meu pai e me mudei com ela. Ao chegar lá, o lugar era tipo National Geographic pra mim. Eu estava na selva, e aquilo me alegrava. Acabei conhecendo o skate na praia, por ironia, mas quando ia pra casa do meu pai, havia as pistas de skate de São Paulo pra curtir.
Então você começou a arrebentar tudo já nessa época aqui no Brasil?
Andava bem, num nível bom. Daí eu fui pra Alva, descolei patrocínio e venci meu primeiro campeonato como semi pro de skate no Brasil aos 13 anos. E em Guará. Desbanquei os caras mais velhos. Eu mandava as manobras e os caras, “Uau!, o moleque tem estilo.” Porque eu vinha do surfe, acho que foi isso que agradou. Meu estilo veio da transição do surfe pro skate, mas bem no começo.
O que te levou a Nova York, afinal?
Meu pai não gostava que eu morasse em Ubatuba com minha mãe, tipo um caiçara, que não ia pra escola e tal… Aí ele me levou pra São Paulo pra frequentar boas escolas, achando que eu ia mudar, largar do skate, e não adiantou nada, continuei cabulando aula e andando de skate… Aí ele falou: “Vou te levar pra Nova York e você vai ter que estudar!”. Ao chegar em Nova York, tive vontade de ir pra Califórnia andar de skate. Aí ele: “Se você pensa em ir pra Califórnia, então vai ter que trabalhar, eu não vou te bancar.” Então eu trabalhei para ele, ele dobrou meu dinheiro, eu subi naquele skate, ele me ajudou, e foi isso. Nunca mais voltei atrás. Tudo o que eu queria da vida conquistei na Califórnia. Fui o primeiro cara a mostrar que você pode ser um skatista profissional saído de um ambiente urbano como este, sujo, áspero, onde não existem pistas. Hoje, Nova York tem tudo pra favorecer o skate.
Quem eram os caras mais embaçados da sua crew no Brasil, antes de você se mudar?
O Porque? [Álvaro Miranda], o [Wilson] Salada, Jun… Nossa… Você quer que eu fale todo mundo? Dos caras pro da época, Marcelinho Neiva, Gêmeos [Oscar e Omar Lattuca]… Aí tinha o [Mauro] Mureta, Daniel Kim, [Fábio] Bolota, Márcio Tanaka. Com certeza, esses caras fizeram a história no Brasil.
O vertical foi e voltou, mas o street sempre teve seu lugar, né?
Tudo volta, tudo volta. Até o no comply [manobra clássica dos anos 1980] voltou.
O que eu achei bem louco da session de hoje é que você vê obstáculos onde poucos veem…
Ele [apontando pro Foguinho] vê melhor do que eu. A visão dele é muito melhor.
Você, que é um cara mais de interagir com o tráfego da cidade, o que pensa dessa tendência do pessoal que busca o skate mais técnico, de alta performance?
Não é o que você faz, mas como faz e onde. Aí você vira um indivíduo. Porque se está todo mundo fazendo aquilo, eu não vou querer fazer. Eu vou ali fazer naquela parede, entende? Porque aquela parede é diferente, não é o que todo mundo já faz. Mas você tem que fazer a sua trilha no meio do mato. Não tem que seguir os outros. Skate é assim, é individual. Mas tem referências. O Mark Gonzales chega numa sessão e manda tudo diferente em qualquer lugar. Todo mundo fica de cara. Por quê? Porque ele vê o mundo diferente. O skatista é muito louco, ele tem uma mente que, pô, o Foguinho passa e fala: “Para o carro!”. Ele vê um bagulho que ninguém vai ver, que nem a prefeitura vê. E a prefeitura fez o bagulho. Mas a gente vai lá, e anda, e fechou! Num pico que nem foi feito pra andar de skate.
Como foi para você chegar na gringa e começar a ser admirado pelos caras que eram os heróis da época?
Mike Vallely. Tá ligado? Ele fez um post falando de mim. Foguinho! Me dá seu iPhone, deixa eu mostrar pra ele. Esse é pesado! Vai na história do dia do Instagram e bota o Mike Vallely. Ele tinha 19 anos nessa época. O que o Mike fala é tudo o que eu poderia falar, mas melhor [risos]. Tá vendo isso? Lê isso. Olha onde que está o seu amigo aqui.
[Harry lê o post]:
“Numa van em 86 com o grande Harry OG Jumonji. Acho que essa foi a primeira vez que andei com ele, e só estar em sua presença me fez um skatista melhor. Obrigado pela inspiração, Harry.“
Isso não se compra! Posso morrer amanhã e estarei feliz. Tá ligado nesse cara? EU sou fã dele em primeiro lugar.
Fala mais de Nova York, mano. Como foi o lance de gente hype tipo Basquiat, os caras do Beastie Boys, pirarem em você?
Quando cheguei em Nova York e conheci o Beastie Boys, não era porque eu era o “Harry Jumonji”, mas porque eu sabia dar ollie e os caras queriam aprender. Eu estava sempre transitando de skate, e em Nova York ninguém fazia isso. Eu me dava melhor andando nas ruas de Nova York do que em Los Angeles. Mesmo assim morei em San Diego por sete anos. Eu fazia o que o Foguinho faz em Florianópolis, andava em vert. Capacete e tudo. Era um pivetinho que ia na pista todo dia.
Você deve ter ficado de cara quando começou a fazer umas sessions junto com Tony Alva, Christian Hosoi…
Ah, o Hosoi me achou, foi lá e me catou e fechou. O melhor skatista do mundo chegou pra mim e falou: “Me dá o seu endereço.” Aí chegou dez madeiras ali, uau! No meu aniversário! Aí os caras da Dogtown, da Vision e da Powell falaram que se não desse certo com o Hosoi, era pra ligar pra eles. Fiquei surpreso porque tinha quatro companhias interessadas em mim e eu havia tirado o segundo lugar no campeonato. Os caras das marcas achavam que eu tinha andado melhor do que o cara que ganhou. E eu nem queria ganhar, na real, só queria mostrar pros caras o meu skate. Fui abençoado! Danny Way disse que eu andava melhor do que os campeões. Natas Kaupas competiu contra mim, ganhou de mim, mas veio falar que gostava de me ver andando. Só que eu parei de competir, porque o bagulho ficou feio.
Como assim, “ficou feio”? Virou entretenimento, você acha?
É. Mas o Mark Gonzales nunca foi feio. Vou fazer uma comparação que você não vai gostar, mas é realidade. Esses caras campeonateiros, eles chegam no evento e ficam naquelas de manobra, manobra, manobra… Isso não é o skate! Os caras viraram um monte de babacas, tipo uns macaquinhos de auditório. Já o Grant Taylor, não, ele chega e o rolê dele é natural, não é forçado. Aí te pergunto, você prefere ver o Tony Hawk dando um 900 graus na televisão ou o Hosoi dando um carve grind numa piscina? Todo mundo vai falar o Hosoi. Estilo é tudo.
Tem um cara que chama Eric Sanderson, que fica dando uns invert. Ele faz uns bagulhos dos anos 80, usa uns skates dos anos 80, e ele quebra! É muito louco! Esse é o espírito. Se o mercado do skate acaba amanhã, ele [aponta pro Foguinho] vai continuar andando, você vai continuar, eu vou… Pode ter uns cem carinhas tudo modinha que só quer posar com o skate debaixo do braço e os panos de marca, mas aí você vai ali na rua, na Praça Roosevelt, os moleques tão tudo quebrado, mandando… Aquilo é o skate. Skate é sujo, é da rua, é maloqueiragem, é puro.
Sobre o documentário que saiu recentemente. Como rolou o convite da Erica Hill?
A primeira vez que ela me propôs o documentário foi em 96, e eu falei: “Que isso, acabei de sair da cadeia. De jeito nenhum.” A mulher é dona de uma produtora de filmes, amiga do James da Supreme. Depois que eu limpei minha vida, tive uma vida bem limpa, andando de skate, surfando, saúde, namorada, ela me encontrou de novo e trouxe de volta a ideia. Na mesma época, morreu um camarada meu, e ele havia dito pra mim que eu devia deixar alguma coisa contando a minha história antes de morrer. Foi aí que decidi aceitar. Pelo medo de morrer e não deixar algo pra posteridade.
Quem te dá apoio atualmente?
Hoje em dia estou com a Supreme, Fuckin’ Awesome, Stussy… Mas o Foguinho me ajuda com Nike SB. Aqui no Brasil o pessoal baba ovo pra Supreme, fica aquela coisa, mas eles foram uma marca que me ajudou quando eu não tinha nada. Eles falaram que se não fosse por mim, não existiria nem Zoo York nem Supreme. Nos anos 80, pô, só tinha uns cinco caras que sabiam fazer street. A Supreme é skate mesmo, aquela identidade de Nova York é pesada, viu. É coisa de maloqueiro, fumar maconha no meio da rua, entende?
Os caras da Supreme te ajudaram a se levantar, então?
Na frente da Supreme, os moleques ficavam ali enrolando blunt, maconha, sem dinheiro pra comprar cerveja, maloqueiragem. Aí eu fiz um comercial da Levi’s e fui lá, nossa, dei dinheiro pra todo mundo. Dez anos depois, os caras viraram profissionais, e sabe o que eles fizeram? Eles lembraram. Então, é aquele cara que você dá o shape pra ele e o cara retribui. Não tem como pagar essas coisas. Em Nova York os caras me veem e pensam: “Esse cara já passou por várias. Já entrou lá no meio do gueto, e ele volta brilhando com o skate e o sorriso na cara.”
Até a geração do filme Kids o skate era sexo, drogas e rock’n’roll. Hoje a molecada parece que está mais careta, não? Começam a praticar já encarando como uma possível profissão.
Nada! Essa geração está usando droga pra caralho. Skatista sempre foi maconheiro, para. Mas maconha não é o problema. Todos os meus ídolos são maconheiros. Você é maconheiro [aponta pra mim] [risos]. Essa geração é pesada, doidera. Os caras adoram MDMA, mano.
Quais são os seus planos agora?
Minha filha é o meu plano. Mas a mãe dela não vai deixar ela vir, tenho que esperar. É tudo pra minha filha, já vivi minha vida em Nova York, fiz tudo. Quero mostrar pra minha filha de onde eu peguei aquela essência que tenho dentro da minha alma, que é Ubatuba.
Como se chama a sua filha e quantos anos ela tem?
Sofia Martinez Jumonji, ela tem 7 anos e mora em Washington DC, Virgínia, com a mãe, Mônica Martinez.
Mas então você prefere ficar no Brasil pra se manter longe da bad vibe de NY?
Não, porque aqui no Brasil também tem umas drogas pesadas, tem crack, tem tudo. O skate daqui me salva. É que o skate de lá tem muito mais balada do que skate. Você vira numa rua ali e já entrou no inferno.
Você está totalmente limpo e superou o vício em heroína?
É assim: amanhã, se eu quebrar o ombro, vou no médico, pego uns bagulhos pra passar a dor, e aí já era, em duas semanas vou querer buscar heroína. Isso é o que tenho medo, porque minha resistência é pesada. Torcilex, tenho que tomar logo quatro pra ficar normal. Já fui viciado em heroína, não gosto de falar disso, mas… Eu tenho problema com remédios de…
Opiáceos?
Essa parada. Se tomar um desses, acabou… Eu peguei um amor por esse bagulho que me custou sete anos.
Aqui não tem heroína. Ou tem?
No Brasil tem, os nigerianos, os africanos ali do centro da cidade descolam. Eu tenho muita sorte porque estar com Foguinho e a turma dele do skate é muito mais verdadeiro do que a droga, o vício. Se você não tem pessoas como essas ao seu lado na vida, você tá fodido! Mas aí, que mais?
De boa, acho que já rendeu. Só fiquei curioso a respeito desses terços que você carrega enrolados na mão. O que é isso? Você é um cara religioso?
Nasci católico e me tornei budista. Essas coisas na minha mão foram abençoadas pelo Dalai Lama, a encarnação do buda. Eu ia dar pra minha filha, mas ela é muito pequena, então mantenho comigo o tempo todo pra lembrar da minha filha e por proteção.
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