Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .
Em Hitler’s Monsters, um novo livro sobre nazismo e o sobrenatural, o acadêmico Eric Kurlander examina como a ascensão de Hitler explorou a fixação do público com o oculto e o paganismo. Mais que um registro de como, digamos, alguns seguidores do Terceiro Reich seguiram seus mapas astrais rumo ao desastre, o livro retrata uma cultura que rejeitava a ciência natural em favor de “ciências limítrofes” baseadas em fé, que permitiam que os líderes mitificassem suas crenças em superioridade racial. Ciências limítrofes, diferente de pseudociência, foi um termo adotado por ocultistas nos anos 30 para cobrir campos como a parapsicologia ou astrologia, que de repente se viram nas graças do governo avesso aos fatos de Hitler.
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Kurlander cita o escritor pró-nazismo Gottfried Benn, que observou: “Tende a haver uma regressão dos avanços intelectuais enquanto aqueles que buscam o poder… se voltam para o passado na busca por continuidade mítica”. Na Alemanha Nazista, isso significava lobisomens, uma preferência por mágica em vez de ciência e uma influente Sociedade Thule, que rastreou a raça ariana até um continente perdido, o que Kurlander se refere coletivamente como “o imaginário sobrenatural”.
Hitler’s Monsters, que será publicado em 18 de julho pela Yale University Press, é a história de um movimento romântico — o movimento populista völkish — que deu muito errado, com grupos paramilitares cooptando pessoas com ajuda da mágica e religião ao invés de dados reais. O grupo, conta o livro, resolveu abraçar “fantasias de fé racial” como a Teoria do Mundo de Gelo de Hanns Hörbiger, cuja ideia central era a de que grandes blocos de gelo celestial eram a raiz de toda a ciência natural e explicavam a história humana. Kurlander também registra as tentativas de líderes como Reinhard Heinrich de expulsar ocultistas do partido, o que se mostrou impossível dado que a religião nazista avessa à ciência dependia da superstição para se justificar.
Longe dos retratos pintados por Hollywood dos magos nazistas (Indiana Jones, Wolfenstein 3D, e a Hydra da Marvel) ou a Aurora Dourada britânica (inofensiva em comparação), a mágica e o misticismo nazistas eram algo mais insidioso: uma ideologia imune a contradições lógicas e capaz de moldar um populismo baseado numa fé enraizada na ideia de um mito em comum e um destino compartilhado. Quando falei recentemente com Kurlander por telefone, ficou claro que seu projeto não é mais uma história misteriosa que enche as livrarias de ocultismo, mas um documento que mostra como uma nação em crise preferiu seu próprio mito à realidade, e colheu as consequências disso.
VICE: Quanto Hitler e os nazistas realmente acreditavam em lobisomens e vampiros?
Eric Kurlander: Há provas de que muitos alemães e certamente alguns líderes nazistas acreditavam em seres e forças sobrenaturais, especialmente num passado distante. Não que todo mundo no partido realmente acreditasse em vampiros e lobisomens, não estou dizendo isso, só que há uma razão para eles terem escolhido esses tropos e os britânicos e norte-americanos, pelo menos na época, não fazerem a mesma escolha. Você consegue imaginar Roosevelt ou Churchill batizando uma grande operação militar de Projeto Lobisomem?
Verdade.
Para nós, monstros são puramente um fenômeno pop. Gente que anda por aí com maquiagem gótica não acredita realmente que vampiros representam as raças eslavas e judias “degeneradas”, que vieram do Leste para sugar a Alemanha e contaminar o sangue ariano. Mas para os nazistas, havia monstros bons como os lobisomens — monstros folclóricos de sangue e solo que protegem a nação em tempos de stress — e há monstros ruins, como os vampiros, que nunca eram meramente metafóricos.
“Mesmo o ministro da propaganda do Reich [Joseph] Goebbels juntou uma equipe de astrólogos para criar propaganda baseada em Nostradamus para usar em relações internacionais.”
Temos uma ideia de como essas práticas ocultas floresceram na Alemanha em particular?
Há uma tendência geral para o espiritualismo pós-tradicional ou transcendentalismo na França e Inglaterra na época (e há muitos livros bons sobre esses movimentos em paralelo com a Alemanha). A diferença, acho, é que isso era mais privatizado e apolítico. O tipo de teosofia popular nos EUA por volta dessa época normalmente aconteceria numa sala de desenho, numa floresta ou numa comunidade artística. A [filosofia espiritual] antroposofia do ocultista Rudolf Steiner, por exemplo — que chegou a penetrar na Grã-Bretanha e EUA — não se tornou tão politizada ou racializada como na Alemanha e Áustria.
Você pode falar sobre como os gigantes de gelo e a Teoria do Mundo de Gelo se encaixam em tudo isso?
O mais fascinante no imaginário sobrenatural do Centro Europeu é que aquele interesse universal em coisas como Atlântida ou a busca pelos Santo Graal foram racializadas e hierarquizadas, em ideias como a existência do continente perdido de Ultima Thule, ou Hiperbórea, que se introduzem nas grandes narrativas históricas da pureza da raça ariana. Tradições nórdicas como os gigantes de gelo entraram na Teoria do Mundo de Gelo, que Hitler e Himmler queriam adotar como a cosmologia oficial da Alemanha, e que alguns contemporâneos sugeriam que levou Hitler a não equipar apropriadamente seus soldados no fronte do norte, já que povos nórdicos são ostensivamente mais imunes ao frio.
Você escreveu sobre como o pensamento völkisch, ou mito e cultura tradicionais alemãs, vem dos Irmãos Grimm, essa ideia das florestas cheias de mágica e demônios.
Não quero sugerir que há uma linha reta em se tratando de mitologia völkisch e o pensamento sobrenatural que levou ao nazismo, mas os dois se cruzam. A pergunta é: “Como o pensamento völkisch se tornou apropriado para alguns pensadores sobrenaturais?” Quando você entra por esse caminho de depender de ciência limítrofe e esoterismo para resolver questões complicadas de raça e origem etno-histórica, há uma apropriação consciente dos princípios do pensamento sobrenatural. Porque você pode usá-los para racionalizar ou “provar”, por assim dizer, seu pensamento racial. E assim toda uma mistura de pensamentos racistas e imperialistas são unidos por uma epistemologia científica limítrofe ou esotérica.
Então foi simplesmente o caso de líderes nazistas se apropriando de uma ideologia conveniente?
Sim, em muitos aspectos. O conteúdo real dessas doutrinas se tornou amplamente popular na Alemanha e Áustria, e muito foi tolerado ou até adotado pelo Terceiro Reich: a crença parapsicológica em telepatia, astrologia e radiestesia, por exemplo. Porque agora você está no reino do pensamento esotérico, onde o materialismo “judeu” e racionalismo de “mente fechada” não importa, você está mais aberto a ideias sobre um Reich de mil anos, uma ciência “racial” e assim por diante. Não é como se Einstein, Freud ou Heisenberg estivessem argumentando que o júri ainda se baseava em “ciência limítrofe”. Cientistas mainstream naquele ponto já estavam dizendo “Gente, não há evidências disso”, especialmente fora da Alemanha. Mas isso só permitia que líderes nazistas como Himmler dissessem “Você está sendo intolerante a visões alternativas”.
“Alguns contemporâneos sugeriam que [a tradição nórdica dos gigantes de gelo e Teoria da Terra de Gelo] levou Hitler a não equipar apropriadamente seus soldados no fronte do norte, já que povos nórdicos são ostensivamente mais imunes ao frio.”
Isso significa que devemos ver a astrologia como mais que uma superstição inocente?
Essa é uma boa pergunta. Em 1941, você via muitas brigas internas no partido nazistas sobre astrologia envolvendo exatamente essa questão. Não foi apenas o vice de Hitler, Rudolf Hess, que voou para a Escócia para negociar a paz com o Reino Unido porque seu astrólogo disse. O [líder nazista Heinrich] Himmler alistou os serviços de um astrólogo chamado William Wulf, um artista fracassado que se tornou astrólogo profissional porque leu o diário de da Vinci e acho que conseguiria fazer algum dinheiro. Mesmo o ministro da propaganda do Reich [Joseph] Goebbels, que deveria ser um dos líderes nazistas mais sóbrios, viu valor nesses esforços e colocou a astrologia trabalhando para propósitos políticos, formando uma equipe de astrólogos para criar propaganda baseada em Nostradamus para usar em relações internacionais.
Que equívoco no retrato da ligação entre nazismo e o oculto você gostaria de esclarecer?
O problema das pessoas que falam sobre o Holocausto, que fetichizam isso como algum tipo de evento poético que transcende toda a história, é que nesse caso você não pode tirar nenhuma lição, não pode comparar com outros genocídios e prevenir isso no futuro, porque isso está fora da história. E criando uma caricatura do ocultismo nazista que está fora da realidade, não podemos aprender lições que nos ajudariam a antecipar os mesmos tipos de problemas hoje.
“Há muitas similaridades entre os argumentos que estamos vendo da direita alternativa e de fundamentalistas religiosos e as doutrinas que ajudaram a facilitar o nazismo um século atrás.”
Que lição você gostaria que as pessoas tirassem do jeito como os nazistas usaram a mitologia como ferramenta de propaganda?
Acho que isso mostra que, em tempos de crise, pensamento no sobrenatural e baseado em fé mascarado como soluções “científicas” para problemas reais ajuda a facilitar o pior tipo de política. Não estou tentando dizer que esse é exclusivamente um fenômeno de direita — fascismo, afinal de contas, tem elementos do pensamento de esquerda também — apenas que conservadores e liberais fazem bem em reconhecer como os tipos de argumentos feitos pela “direita alternativa”, ou entre as pessoas que querem tomar decisões sociopolíticas baseadas em fé em vez de evidência empírica, podem acabar em projetos cada vez mais radicais e totalitários contra uma etnia ou religião. Há muitas similaridades entre os argumentos que estamos vendo da direita alternativa e de fundamentalistas religiosos e as doutrinas que ajudaram a facilitar o nazismo um século atrás.
Hitler’s Monsters: A Supernatural History of the Third Reich de Eric Kurlander sai pela Yale University Press em 18 de julho.
Tradução: Marina Schnoor