Em Shravasti, um distrito do estado indiano de Uttar Pradesh, marcas de vermilion (um pigmento vermelho) na testa de uma menina, ou açafrão em seu corpo, significam o fim de sua curta infância e começo de sua vida de casada. Empurrada para o casamento antes mesmo de chegar à puberdade, seus dias serão de trabalho doméstico pesado e maternidade.
Casamento infantil na Índia na verdade vem declinando na última década, mas o país ainda tem mais de 15 milhões de noivas menores de idade. A prática vem do período medieval e persiste como uma tradição cultural, apesar de ser tecnicamente ilegal casar meninas menores de 18 anos e meninos menores de 21. As razões para a persistência do casamento infantil na Índia são variadas e complexas, com fatores econômicos, políticos e socioculturais fazendo as pessoas decidirem casar suas crianças. Em áreas rurais, onde o casamento infantil é mais predominante, pobreza, analfabetismo feminino e falta de acesso a serviços de saúde e educação perpetuam a prática.
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A fotojornalista de Nova Delhi Saumya Khandelwal começou a documentar a prática do casamento infantil em Shravasti, onde uma em quatro meninas se casa antes dos 18 anos.
Falamos com Khandelwal sobre seu trabalho, e a vida das noivas mirins em Shravasti.
VICE: Por que você decidiu documentar o casamento infantil em Shravasti?
Saumya Khandelwal: Cruzei com uma matéria discutindo a alta taxa de casamento infantil e mortalidade infantil em Shravasti. Shravasti fica a uns 100 quilômetros da minha cidade natal, Lucknow, então fiquei surpresa que isso estivesse acontecendo tão perto de casa, e ninguém realmente falasse sobre isso. Quando falamos sobre casamento infantil na Índia, sabemos que a prática é muito comum em estados como Rajastão e Bengala Ocidental, e sabemos que acontece em pontos de Uttar Pradesh também, mas não há documentação acontecendo.
Quais as razões para as pessoas em Shravasti casarem suas crianças?
Durante minhas viagens, falei com uma mãe que casou sua filha de 15 anos. A própria mãe foi uma menina noiva e experimentou muitos problemas durante seu casamento, incluindo no parto. Então perguntei por que casar sua filha tão cedo. Ela disse: “E se ano que vem tivermos inundações no vilarejo e meu marido morrer? Quem vai cuidar das crianças? Precisamos garantir que essas crianças pelo menos possam comer”. Então, enquanto a falta de educação e pressões sociais alimentam a prática do casamento infantil, as pessoas têm razões práticas também.
As pessoas em Shravasti sabem que a prática é ilegal?
Elas entendem o conceito de que é ilegal, mas todo mundo faz. O governo não consegue controlar os casamentos infantis e a polícia não faz nada sobre isso. Quando tentativas são feitas para impedir um casamento infantil, o que geralmente acontece que é a cerimônia acaba sendo adiada, aí acontece secretamente.
Então as pessoas não têm medo de serem presas?
O fato delas saberem que é ilegal, continuarem fazendo isso, e ainda não terem problema comigo documentando os casamentos, mostra a confiança que elas têm de que não serão punidas. Na verdade, toda vez que visito os vilarejos agora, sou convidada para casamentos infantis, o que é uma loucura.
Como as garotas ficam sabendo que vão casar?
Conheci meninas que só descobriram no dia da cerimônia. Tem essa prática de aplicar cúrcuma no corpo da noiva, e tinha essa menina que, quando viu que isso estava acontecendo, descobriu que a festa que estava acontecendo em sua casa era seu casamento. Também conheci meninas que meio que já sabiam alguns meses antes, mas em nenhum caso perguntaram se elas queriam se casar.
Que tipo de atitude as meninas em Shravasti têm sobre seus futuros?
Sempre que eu perguntava para as meninas o que elas queriam ser na vida, elas não tinham realmente uma resposta. Algumas diziam talvez se casar e ter filhos. Uma garota disse que queria ser policial. Essas meninas não acham que têm direito de pensar no futuro. Elas nem sabem que meninas de sua idade em outras partes estão fazendo coisas muito diferentes da vida.
O que as meninas acham de se casar?
Fotografei uma menina chamada Muskaan. No dia do casamento, perguntei como ela se sentia sobre isso, e ela disse “O que tem pra sentir? Acontece. Acontece com todo mundo e não sou diferente, então vai acontecer comigo”. É como se elas se entregassem a um destino que já estava escrito para elas.
As meninas entendem o que casamento significa quando são tão novas?
O que a maioria entende sobre casamento é que elas vão precisar cuidar da casa, alimentar o gado, fazer comida, lavar utensílios e roupas, porque é isso que elas viram crescendo.
Quais são alguns dos rituais e tradições de um casamento infantil?
Geralmente, num casamento hindu, as meninas não começam a morar com o marido logo depois da cerimônia de casamento, só depois de outra cerimônia chamada “gauna”, que acontece alguns meses ou até alguns anos depois do casamento. Gauna é quando eles acham que a menina está madura o suficiente para começar a morar com o marido. Acho que eles sabem que aos 14 anos uma menina é muito nova para viver com um homem.
Como é decidido que uma menina está madura o suficiente para morar com o marido?
Acho que quando a menina começa a menstruar.
O que acontece durante uma cerimônia gauna?
A cerimônia é basicamente uma despedida que envolve a família e amigos da menina se juntando na casa dela. É esperado que a menina chore, assim como os parentes. Achei essa parte fascinante porque, embora deva ser uma coisa teatral, isso desencadeia uma resposta emocional genuína. Por exemplo, durante o gauna de Muskaan, primeiro ela estava interpretando, mas aí ela começou a perceber para onde estava indo. Depois, ela se despediu de todo mundo e foi embora no carro do marido com seus pertences.
Como é a vida para as noivas mirins depois do casamento?
Sendo bem sincera: elas basicamente trabalham como uma empregada doméstica grátis na casa do marido. Elas não podem pisar fora de casa, e fazem o que o marido e os sogros mandam.
Sua perspectiva sobre casamento infantil mudou desde que você começou a documentar essas meninas em Shravasti?
Uma coisa de que sempre tive consciência é que mesmo que eu não concorde com a prática do casamento infantil, não quero chegar lá com a perspectiva “Ei, venho da cidade e não acho que casamento infantil é certo”. Não acho que seria justo, porque no final das contas, mesmo discordando disso, é assim que a sociedade evoluiu com os anos. Há uma normalidade na vida delas, e tento capturar essa normalidade nas minhas fotos.
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