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Como os games estimularam o vício em remédios deste jogador por 8 anos

Depois de quase uma década alimentando seu amor por videogames com opiáceos, ele quer parar com o vício para ser um pai e marido melhor.
Ilustração por Sunless Design.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

(Larry e Katherine preferiram se manter anônimos, já que nem todo mundo na vida deles sabe da luta de Larry com o vício, então os nomes foram mudados.)

Para Larry, videogames não são apenas um hobby, são uma fuga, uma chance de escapar de seus problemas. Eles também andam de mãos dadas com seu vício em drogas. Ele não jogou sem chapar por quase uma década. Larry passou os últimos anos viciado em opiáceos, substâncias poderosas encontradas principalmente em analgésicos. Vício em remédios é uma epidemia nos EUA e, apesar de drenar seu corpo e sua conta bancária, e quase custar seu relacionamento com o filho e a namorada, seu vício reinava. A questão agora é se, depois de todo esse tempo e de várias recaídas, ele pode realmente parar.

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"Uma das razões para eu gostar tanto de videogames é que não importa quanto as coisas fiquem ruins, posso cheirar algumas carreiras e desaparecer em outro mundo por algumas horas", ele disse. "O que acontece quando essa necessidade acabar? O objetivo é evitar recaídas a qualquer custo. Não sentir síndrome de abstinência. Quando drogas fazem parte da sua vida assim, elas se entrelaçam com tudo que você ama – como um ritual, se você preferir. E os videogames estão no topo dessa lista."

Mas esse é um ritual perigoso, um ritual que afasta o paciente de quem ele ama.

"O problema com os videogames", disse a namorada de muitos anos de Larry, Katherine, "especialmente com o tipo que ele gosta, é que quando você está correndo um quilômetro por minuto por causa dos opiáceos, é fácil perder noção do tempo e de quanto remédio você tomou. O ciclo do sono dele estava completamente destruído. Ele virava a noite jogando, e a insônia pesou em sua saúde física e mental".

Larry cresceu como um "garoto da Sega" até comprar o PlayStation original, que o apresentou a vários gêneros de que ele nunca tinha ouvido falar. Com dinheiro contado por causa do vício e sem poder trabalhar direito, um de seus pequenos objetivos para o futuro é comprar um PlayStation 4 para jogar com o filho.

Esse era o plano para o último Natal, na verdade. Larry e o filho teriam consoles iguais em suas respectivas casas, e poderia jogar juntos.

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"Mas quando você gasta centenas de dólares todo mês em drogas só para funcionar", ele disse, "coisas assim acabam ficando de lado."

Superar um vício em opiáceos já é difícil, mas a possibilidade de perder outra parte importante de sua vida continuava fazendo Larry pensar. Por melhor que seja ficar chapado, ele sabe que é errado. Mas e se a diversão com os videogames não for pura, e se usar drogas for um componente-chave? E se o cérebro não conseguir separar as duas coisas, e os videogames causarem uma recaída?

"Espero mesmo encontrar um jeito de continuar jogando sem as drogas", ele disse. "Algumas pessoas podem considerar isso um gatilho. Tipo 'Bom, eu estava chapado toda vez que joguei isso, cada memória que tenho desse jogo envolve drogas'. Então, o que acontece quando você tira as drogas da equação?"

The Witcher 3 permite que ele esqueça o mundo, e seus problemas, por algumas horas. Call of Duty permite que ele foque num único objetivo: matar o outro time. Os dois hábitos estão ligados.

Como o vício de Larry, a crise de opiáceos dos EUA não aconteceu da noite para o dia. Desde 2000, mais de 300 mil americanos morreram por overdose de opiáceos, segundo o CDC. Uma investigação do site Frontline em 2016 descobriu que desde 2014, overdose por drogas responderam por 40% mais mortes do que acidentes de carro. Nosso site irmão, o Tonic, já cobriu essa questão.

A história de vício de Larry é um arquétipo da crise de opiáceos. Agora com 29 anos, Larry sempre morou na mesma cidade do Arkansas, e as raízes de sua família no estado vêm desde o século 19. Sua infância foi bastante normal: uma família amorosa que ensinava a diferença entre certo e errado, 12 anos na liga infantil de basebol, os verões como escoteiro.

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Como ele me disse, "uma criação bem típica da classe média".

Só uma pílula

No colegial, Larry começou a experimentar dor nas costas regularmente, mas como qualquer jovem que se acha invencível, decidiu não dar atenção. Com os anos, a dor se tornou algo que não era mais possível ignorar. Com a chegada do filho, Larry decidiu procurar ajuda porque queria ser um pai ativo, seja rolando pelo chão ou jogando bola. Os médicos não conseguiam descobrir o que estava errado, e muitos rejeitaram suas preocupações. Eventualmente, um deles descobriu o problema, confirmando o que Larry já desconfiava: ele tinha doença degenerativa de disco (DDD).

DDD, quando os discos entre as vértebras começam a se fragmentar, geralmente acontece com pessoas que sofreram acidentes graves ou como resultado de idade avançada. Larry não entrava em nenhuma dessas categorias, por isso os médicos não pensaram em fazer o exame que identificava a doença. DDD não tem cura, mas pode ser controlada com o tempo, enquanto os discos se desfazem.

Larry prefere jogos em que pode gastar horas de cada vez, como 'The Witcher 3', porque assim ele pode esquecer do mundo ao seu redor. Imagem: CD Projekt Red/Divulgação

Trabalhando numa madeireira na época, Larry tinha que usar as costas constantemente. Ele sentia muita dor, e começou a comprar pílulas para lidar com o problema. Mas na época era só isso: controle da dor. Quando o médico sugeriu que uma cirurgia poderia facilitar as coisas, ele topou de cara. E quando a cirurgia deu certo, parecia que Larry estava finalmente bem.

"Agora me considero um viciado", ele disse, "mas na maior parte daqueles anos, eu era só um paciente dependente dos meus medicamentos, não viciado neles."

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"Como com a maioria das pessoas, ele começou com uma receita médica, tomando exatamente como estava prescrito", disse Katherine. "Sei disso porque eu tomava conta dos remédios dele, e dava as doses certas durante o dia."

Tudo mudou quando Larry encontrou a Opana, uma droga que desencadeou um surto de HIV em 2016, depois que o fabricante, a Endo Pharmaceuticals, introduziu uma cobertura especial no remédio para desencorajar cheirar os comprimidos de Opana esmagados. Em vez de largar a Opana, as pessoas contornaram a cobertura química do remédio injetando a droga – e compartilhando agulhas.

"Agora me considero um viciado, mas na maior parte daqueles anos, eu era só um paciente dependente dos meus medicamentos, não viciado neles."

Apesar do aumento na potência, não demorou para Larry começar a usar todo o suprimento prescrito antes do mês acabar e ele poder conseguir uma nova receita. Sua solução: encontrar um amigo com uma receita similar – mesma droga, mesma dose – e comprar mais dele.

Ao mesmo tempo, o médico de Larry parou de atendê-lo porque, segundo ele, o consultório estava mais interessado em "pacientes que precisavam de tratamento mais regular", e precisavam abrir espaço para eles. Nos dois anos seguintes, ele viveu das receitas do amigo, vendendo algumas pílulas e usando o resto para alimentar seu vício.

Isso criou grandes problemas. Atualmente ele trabalha meio período numa loja de videogames usados, mas o salário não é suficiente, e entre as drogas e pagar a pensão do filho, não sobra muita coisa. (Apesar de separado da mãe, ele está envolvido na vida do filho. Ele casou com a namorada do colegial, e logo depois ela engravidou, mas o relacionamento não durou muito.)

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"Quero minha vida de volta", ele disse. "Quero ser um pai de que meu filho tenha orgulho e quero casar com a minha namorada, que viu tanta coisa e continuou do meu lado."

"Quase terminamos mais vezes do que consigo me lembrar", disse Katherine. "Tentamos manter as coisas sob controle. Eu trancava os remédios, e isso era difícil porque causava ressentimento. Ele se ressentia comigo porque eu não dava a chave a ele, e eu me ressentia com ele por querer a chave. Posso dizer sem hesitação que às vezes parecia que eu estava com uma pessoa diferente daquela que conheci, mas, por outro lado, alguns dias também me sinto uma pessoa diferente."

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Um pedido de ajuda

Comecei a conversar com Larry em março. Ele estava procurando na internet histórias sobre viciados fãs de videogames, buscando uma conexão emocional nisso. Se alguém tinha conseguido chegar do outro lado, talvez ele pudesse também. Mas Larry não encontrou nenhuma história, então considerou contar a sua. A história de Larry não tinha um fim quando trocamos os primeiros e-mails. Isso foi quando seu suprimento de opiáceos estava quase secando – com apenas duas semanas de comprimidos restantes.

"Se eu puder ajudar alguém como eu, um pai ou uma mãe, tentando manter um emprego e recuperar sua vida, que se sente sozinho, vai ter valido a pena", ele disse. "Só quero que as pessoas entendam que o vício – em opiáceos e heroína especialmente – está invadindo cada canto da nossa sociedade, inclusive os videogames, e ninguém está falando sobre isso."

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Como muitas pessoas lutando com o vício, essa não era a primeira vez que ele tentava parar. Mas agora era de uma vez por todas.

Ele esperava.

"Eu estava cansado de dirigir por aí com algo no meu carro que poderia me mandar pra cadeia e gastar dinheiro com isso. Eu estava cansado de me sentir morto emocionalmente."

Se libertar de um vício em opiáceos é de uma dificuldade tremenda tanto no nível físico quanto psicológico, mas há outra dimensão dessa luta: falta de recursos e ajuda para a recuperação de viciados.(Isso tem se mostrado um ponto polêmico, com Trump e um Congresso liderado pelo Partido Republicano tentando aprovar uma reforma na saúde pública dos EUA, um desejo draconiano indo contra a necessidade dos estados rurais de mais dinheiro para combater a crise.)

Os viciados em drogas geralmente têm que se virar sozinhos para se tratar, e pessoas como Larry precisam encontrar maneiras de preencher as lacunas que uma terapia e medicação eficientes normalmente ofereceriam. O plano de Larry era usar uma erva chamada Kratom, que pode produzir um barato similar ao dos opiáceos. Ela deve ser usada entre as doses da droga, e segundo seus defensores, ajuda a largar o vício. Mas o Arkansas proibiu o Kratom no começo de 2016, o que deixou pessoas como Larry sem alternativas para os analgésicos que as colocaram nessa situação.

O DEA anunciou que seguiria os passos do Arkansas em setembro de 2016, proibindo o Kratom em toda a nação, mas depois de muita pressão pública, a agência voltou atrás. Mas a erva continua proibida no Arkansas.

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"Meu plano é usar Kratom por cerca de um mês", ele disse. "Faço um chá com a erva, e vou diminuindo a potência do chá até parar de tomá-lo totalmente. É nesse ponto que estou agora, pronto para começar esse mês."

Isso foi no final de março.

Errar é humano

Mas novamente, essa não era a primeira vez que Larry tentava ficar sóbrio, e tinha medo que não fosse durar. No passado, ficar "sóbrio" geralmente significava só uma pause entre outro punhado de pílulas.

"Teve essa vez em que eu estava realmente pra baixo comigo mesmo e queria parar", ele disse. "O problema é que eu sabia que o remédio viria no mês seguinte e a síndrome de abstinência é horrível, então não tive a força de vontade para realmente parar. 'Tem sempre o mês que vem' era o meu lema."

O problema com a síndrome de abstinência: Ele não queria que seu filho o visse passando por isso.

O filho de Larry surge sempre em nossas conversas. Essa relação é muito importante para ele, e ele tem consciência de que não tem sido o pai que gostaria por causa das drogas.

Pessoas com um histórico de vício sempre falam em um "fundo do poço", e mesmo que Larry tenha tido sorte de evitar algo particularmente catastrófico, ele descreveu o processo de chegar ao fundo do poço emocional.

"O resto da minha vida estava indo bem", ele disse, "mas eu sabia, lá no fundo, que isso não continuaria para sempre. Eu estava cansado de dirigir por aí com algo no meu carro que poderia me mandar pra cadeia, e gastar tanto dinheiro com isso. Eu estava cansado de me sentir morto emocionalmente".

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"Uma das razões para te escrever", ele me disse, "é que eu sabia que se começasse essa conversa, isso me ajudaria a não mudar de ideia e desistir. Seria mais uma razão para continuar".

Os primeiros dias da síndrome de abstinência foram "difíceis", mas esperança – uma chance de recuperar o controle – o alimentava.

Três semanas depois, os maiores problemas eram mentais, não físicos. Larry passou uma noite no bar de um amigo, jogando sinuca e tomando cerveja, enquanto Led Zeppelin tocava ao fundo. Ele não podia beber antes; não é bom misturar opiáceos e bebida, já que isso exagera os efeitos das duas coisas. É um multiplicador perigoso, mas sem os opiáceos, a chance de amortecer um pouco as coisas se provou catártica.

"Minhas alterações de humor definitivamente estão ligadas aos videogames. É a razão para jogar uma coisa ou outra. Acho que estou gostando tanto de Metal Gear agora, porque o jogo pode ser bastante complicado."

"Depois de anos sendo bombardeado com analgésicos, seu cérebro demora um tempo para se reajustar", ele disse. "No tempo entre o cérebro de opiáceos e o cérebro normal, pode parecer que você está ficando um pouco louco. Você fica com muita raiva do nada, depois cai numa profunda depressão, aí se sente bem por algumas horas – o que é cruelmente arrancado de você logo depois."

Larry pesquisou sobre como sua mente e seu corpo reagiriam à síndrome de abstinência, mas uma coisa é ler sobre isso, outra é experimentar. Seria muito mais fácil dizer foda-se.

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"Na sexta completo três semanas limpo", ele disse, "o que me faz sentir bem. Espero que três meses seja ainda melhor".

Quando Larry se aproximava da marca de um mês sem opiáceos, ele estava sofrendo para encontrar uma sensação de conquista. Os anos atacando seu sistema deram a seu corpo demônios que não podiam ser exorcizados rapidamente, e pensar em ficar chapado continuavam passando pela cabeça de Larry.

Enquanto ele me perguntava que jogos de RPG de fantasia comprar – tentei fazer ele experimentar Nier: Automata, claro – ele mencionou como essa era a primeira vez que ele se interessava em jogar videogames desde que sua via crucis tinha começado. Apesar de frustrado com o tempo que levou para pegar o jeito de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain, ele estava gostando do jogo.

"Minhas alterações de humor definitivamente estão ligadas aos videogames", ele disse. "É a razão para jogar uma coisa ou outra. Acho que estou gostando tanto de Metal Gear agora porque o jogo pode ser bastante complicado. Ele exige muito raciocínio da minha parte, o que pesou para mim quando comecei a jogar [alguns dias atrás], porque eu não estava tendo um bom dia. Mas depois de tomar alguns postos avançado e decidir como faria isso, me senti melhor."

Alguns dias depois de completar um mês sóbrio, Larry quase teve uma recaída. Saindo com o amigo que fornecia as pílulas antes, ele sentiu um desejo incontrolável de pedir uma. Ele conseguiu resistir, mas isso o mandou para um "ponto baixo violento" por horas, o obrigando a ficar longe da namorada e do filho, enquanto ele ouvia podcasts e fumava um cigarro atrás do outro para passar por aquele momento.

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"Me senti tóxico", ele lamentou.

Uma luz no final do túnel

Mas ele também sabia que aquele momento viria. Apesar de todo o esforço e sinais encorajadores, Larry estava convencido de que, em algum momento, teria uma recaída. A questão era quantos passos isso o mandaria para trás. Alguns meses depois, enquanto trabalhava num turno longo na loja de videogames usados, o que o obrigou a ficar em pé o dia todo, a dor voltou, a mesma dor que o tinha feito começar a tomar as pílulas.

Larry se viu perto de alguém com acesso a pílulas naquele dia. Ele concordou em tomar uma.

"Felizmente era uma pílula muito fraca", ele disse. "Viciados precisam saber que uma das maiores chances de ter uma overdose é quando você está tentando parar. Meu corpo está com uma tolerância baixa comparado com o tempo em que eu usava todo dia, mas minha mente ainda estava no modo 'preciso tomar o suficiente para sentir aquele barato'."

Foi "uma cagada", mas isso não o tirou dos trilhos ou, seu maior medo, se provou fatal.

Quatro meses depois, ele só teve um incidente. Ele conseguiu ficar (quase completamente) limpo, e todos os seus relacionamentos – com videogames, pessoas, drogas, seu corpo – também mudaram para melhor. Ele disse que se sente mais forte a cada dia, mesmo quando aquela dor familiar volta a aparecer.

Apesar de ainda estar no começo de sua recuperação, Larry se viu curtindo videogames mais que antes. Imagem: Konami/Divulgação.

"Minha namorada vai ser a primeira a dizer que sou uma companhia melhor hoje em dia", ele disse. "Parece que estou sorrindo mais, estou mais engraçado, e não surto de raiva tão rápido."

"Estou muito orgulhosa dele", disse Katherine. "Foi um longo caminho até aqui. O Larry 2017 está a anos-luz do Larry 2016, mais ainda do Larry 2015."

Ele tem jogado Bloodborne, Horizon: Zero Dawn, e assistindo transmissões de PlayerUnknown's Battlegrounds. O medo de não gostar mais de videogames sem a sensação familiar do barato, felizmente, se mostrou infundado. Um efeito colateral interessante: agora ele está se conectando aos jogos num nível emocional. Ele é capaz de sentir mais enquanto joga.

E mesmo que as coisas apontem para a direção certa, isso não muda o passado. Seu filho ainda é muito novo para entender o que aconteceu, e Larry ainda está lidando com as consequências, físicas e emocionais, de seu vício.

"Espero que um dia, quando ele for mais velho, eu possa sentar com ele e explicar tudo que aconteceu", ele disse. "Assim ele vai saber que me arrependo, e talvez possa aprender com os erros do pai. Sei que ficar limpo foi o melhor que fiz para ele e todo mundo ao meu redor, mas ainda sinto muita culpa. Não posso mudar o passado, mas serei o melhor pai possível daqui pra frente."

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