Quem quer ir à tropa e porquê? A vocação de Inês e Viktoria
Viktoria Ihorivna, no RA4, em Leiria. Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria.

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reportagem

Quem quer ir à tropa e porquê? A vocação de Inês e Viktoria

Em nome da família ou da pátria, em Portugal os voluntários que se entregam a uma vida militar são uma minoria com um sonho, que em muitos casos alimentam desde a infância.

Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.

Quartel da Cruz da Areia, Leiria. Os olhos azuis, a pele clara e o cabelo loiro expõem as raízes de Viktoria Ihorivna (foto principal), que as linhas do rosto confirmam sem margem para dúvidas. Natural da Ucrânia, está no Exército português em regime de contrato, há nove meses. Recruta em Abrantes, especialidade na Póvoa de Varzim, colocação em Leiria. Tem 22 anos e um sonho: seguir as pisadas do pai, antigo militar de operações especiais. Cresceu a admirar-lhe a coragem, uma palavra de cada vez, como quem devora um romance de espionagem. "Apaixonei-me pelas histórias dele, as coisas que ele contava para mim".

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A soldado, que todos os dias se apresenta na cozinha do Regimento de Artilharia N.º 4, com expectativas de ingressar no curso de sargentos, faz parte da minoria de jovens para quem as Forças Armadas constituem um objectivo de vida. E que vêem nos valores da instituição um significado maior. Depois do fim do serviço obrigatório, a renovação do Exército, da Marinha e da Força Aérea depende dos voluntários.


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Quem são e o que os move?

Em Portugal desde o início da adolescência, Viktoria Ihorivna concluiu o ensino secundário e trabalhou numa fábrica de componentes para automóveis, a Iber-Oleff, em Pombal. Na hora de mudar o futuro, a influência de amigos e da família, em especial "uma conversa bastante longa" com o pai, convenceram-na a vestir a farda. A mãe preocupa-se com a escolha, mas a vocação fala mais alto. A vocação e o exemplo. "O exército mudou bastante o meu pai, ele costuma até brincar e dizer que era puto antes de entrar para a tropa, por isso, o carácter dele e personalidade, a tropa mudou-o bastante, para muito melhor", sublinha a portuguesa nascida no Leste da Europa.

Houve momentos em que ameaçou quebrar, nas primeiras semanas em Abrantes, mas a voz de casa, do outro lado do telefone, nunca lhe falhou, às vezes de mansinho, outras a ralhar, sempre capaz de transformar a angústia em nova energia. "Nem uma vez pensei desistir", garante Viktoria. O calor, as provas físicas, a exigência, dizer que foi fácil? "Não, não foi". Mas, estava à altura do confronto.

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Entre o atletismo, o ginásio e a preparação psicológica, treinou-se a si própria antes de iniciar a recruta. E medo é uma palavra a que diz já não reconhecer o sentido. "Sinceramente, espero que não haja guerra, se alguém morre é sempre mau, claro que prefiro estar aqui em paz, mas se algum dia precisar de ir a algum país, eu vou".

"Servir Portugal no mar"

O número de militares no activo baixou – 28 mil em Outubro de 2017, no conjunto dos três ramos, ou seja, dois mil a menos do que o limiar mínimo definido pelo Governo – e a crise de efectivos é uma realidade. As Forças Armadas perderam 25 por cento do pessoal, de 2005 para 2016. Por vários factores, incluindo restrições orçamentais, cortes no período da troika e revisão dos conceitos estratégicos. De acordo com um estudo do Ministério da Defesa, citado no Diário de Notícias, o que ainda atrai os jovens para a vida militar são, por exemplo, as missões no estrangeiro, o espírito de camaradagem e valores como a disciplina e a organização, o servir Portugal e defender o País.

No dia do juramento de bandeira na Escola Naval do Alfeite, são justamente estes valores que Inês André, 22 anos, evoca para justificar a opção pela Marinha: servir Portugal no mar. "Um sonho antigo", reforçado na experiência como estudante de Erasmus. "Estive em Espanha e senti uma saudade imensa de Portugal. Às vezes, quando estamos fora, sentimos uma ligação ainda maior com o sítio aonde pertencemos. Pelo facto de estarmos longe do nosso País, damos-lhe valor. Fez-me sentir ainda mais vontade de fazer algo pelo meu País com as ferramentas que tenho".

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Inês André, na Escola Naval do Alfeite. Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

Antes do curso de formação básica de oficiais, concluído no passado dia 16 de Março, que a torna cadete aspirante a tenente, Inês André passou, no ano passado, pela Armada, durante o estágio curricular da licenciatura em Comunicação e Media do Instituto Politécnico de Leiria. O que só confirmou a inclinação manifestada desde criança, juntamente com a paixão pela música – começou a aprender com seis anos de idade, actualmente toca clarinete e pertenceu a uma orquestra juvenil e a uma big band.

"Sou de Alcobaça, vivo muito perto da Nazaré e de São Martinho, tenho ali as praias todas ao pé e sempre tive uma grande ligação com o mar, é um sonho que me foi acompanhando durante a minha vida", salienta, de farda irrepreensível e espada à ilharga. Segue-se "um grande desafio", no gabinete do Chefe de Estado-Maior da Armada. Mas Inês diz-se "mais forte", depois do curso na Escola Naval do Alfeite, que "correspondeu exactamente àquilo que esperava".

Com "força" e "orgulhosa", porque "também as mulheres podem pertencer às Forças Armadas". Mulheres ou homens, o recrutamento para a vida militar, em tempo de paz, passa em exclusivo pelo regime de voluntariado (12 meses), regime de contrato (2 a 6 anos) e ingresso no quadro permanente. Dos 28 mil efectivos no activo, em 2015, cerca de quatro por cento eram originários do distrito de Leiria: 537 no Exército, 306 na Força Aérea e 241 na Marinha. Só cinco distritos – Braga, Lisboa, Porto, Santarém e Setúbal – fornecem mais vocações.

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Mulheres são 10 por cento das Forças Armadas e a paraquedista Castelão é uma delas

Há 100 anos, as alferes de primeiros socorros que partiram para França no início de 1918 integradas no corpo expedicionário português, na Primeira Guerra Mundial, tornaram-se pioneiras do serviço militar feminino em Portugal. Em 1992, outro marco: o primeiro concurso de admissão à Academia Militar aberto para candidatos de ambos os sexos. Em 2018, as mulheres estão de pleno direito nas Forças Armadas, mas a tenente Catarina Castelão também faz história, porque é paraquedista e uma das raras mulheres em unidades militares de elite.

Actualmente, há duas mil 930 militares do sexo feminino, que representam 10,5 por cento do efectivo das Forças Armadas em Portugal, mas o número de mulheres ao serviço no Exército, Marinha e Força Aérea está a descer desde 2010, segundo dados do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL). A culpa é da crise e da redução de pessoal, que atingiu sobretudo os regimes de voluntariado e contrato, nos quais as mulheres se concentravam em percentagem superior à média, explicam os investigadores. O estudo mostra que a percentagem de mulheres nas Forças Armadas baixou de 13 por cento para 10,5 por cento, entre 2010 e 2017.

Catarina Castelão é paraquedista e uma das duas mil 930 mulheres aos serviço do Exército português. Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

À Agência Lusa, os autores sublinham que, tal como noutros países, o envolvimento de mulheres nas áreas operacionais tem sido objecto de resistências e dificuldades. Continuam mais representadas nas áreas de apoio, serviços e saúde.

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Catarina Castelão, natural de Ourém, há três anos colocada no Regimento de Artilharia N.º 4, em Leiria, no âmbito da Brigada de Reacção Rápida, ingressou nas Forças Armadas com 18 anos, "para fugir das saias da mãe". Em criança "era maria-rapaz" e "não gostava de brincar com bonecas", hoje é oficial do Exército e prepara-se para ascender ao posto de capitão. Das 23 mulheres no curso de paraquedistas que frequentou, só duas chegaram ao fim. Já esteve quatro meses em missão internacional – na Lituânia – e recomenda a vida militar, mesmo reconhecendo os salários baixos para o nível de empenhamento.

A mesma honestidade que utiliza para confirmar que as mulheres ainda são vítimas de discriminação por alguns militares, o que a leva a vaticinar vida difícil para a primeira portuguesa a obter a patente de general: "Vão fazer de tudo para ela não chegar a um lugar de comando que tenha muita visibilidade".

Um campeão de artes marciais na Marinha

Fundador da União Desportiva de Ourém e responsável no clube pela secção de artes marciais, campeão nacional de pankratos, estudante do conservatório de música (toca saxofone) e membro de várias bandas, do rock ao jazz, tesoureiro da associação de estudantes da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria.

Duarte Pereira, 24 anos, está ao serviço do Comando Naval, na Base Naval de Lisboa. Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

Tudo isto, e mais, são os anos mais recentes da vida de Duarte Pereira, 24 anos, natural de Ourém, licenciado em Comunicação e Media pelo Instituto Politécnico de Leiria e desde este mês ao serviço do Comando Naval, na Base Naval de Lisboa, depois de concluir o curso de formação básica de oficiais, no Alfeite, que o coloca a caminho do posto de tenente.

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Agora que a oportunidade surge – o juramento de bandeira aconteceu a 16 de Março – já escolheu a primeira missão: "Tentar ao máximo aproximar a Marinha dos jovens, fazer com que esta ligação se torne ainda mais forte". Afinal, ele próprio está a preparar-se há tempo mais do que suficiente. "Trata-se de um sonho antigo, desde cedo que me lembro de dizer que um dia queria ser oficial da Marinha".

Salários baixos e horários alargados dificultam retenção de efectivos

Os centros de recrutamento do Exército e da Marinha disponibilizam na Internet os valores de remuneração dos militares, por classes e postos. Em ambos os ramos, durante a instrução básica, o vencimento ronda os 196 euros, enquanto os soldados recruta em situação de instrução complementar recebem 583 euros.Tanto na Marinha como no Exército, o salário bruto mais baixo na classe de praças é de 731 euros, o dos sargentos começa nos 978 euros e o dos oficiais inicia-se nos 1.102 euros.

Esta é a informação colocada online pelos centros de recrutamento, porém, em declarações à Agência Lusa, já este ano, o presidente da Associação de Praças, Luís Reis, descreveu um cenário de descontentamento motivado por sobrecarga horária e baixos salários, com militares do Exército a auferir 561 euros líquidos em Janeiro, ou seja, abaixo do salário mínimo nacional para 2018.

Há incentivos. Por exemplo, subsídio para pagamento de propinas e vagas especiais no ensino superior, apoios à inserção no mercado de trabalho e condições preferenciais de ingresso nos quadros da GNR e da PSP. Mas, o percurso nas Forças Armadas pode não ser atractivo para os novos candidatos à vida militar, quando comparam os proveitos financeiros com a disponibilidade que lhes é pedida, incluindo aos fins-de-semana.

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De acordo com o Correio da Manhã, um estudo do Exército revela que 66 por cento dos contratados acreditam que o salário é o aspecto mais negativo do regime de voluntariado e do regime de contrato. Um em cada três militares nestas condições não recomendariam o ingresso nas Forças Armadas. Mais de metade avaliam negativamente as condições de alimentação e alojamento, as oportunidades de progressão na carreira e os horários, instalações e equipamentos de trabalho.

As conclusões, de acordo com o mesmo jornal, constam de um estudo sobre as motivações de ingresso no Exército, aos 18 anos de idade, com respostas recolhidas nos últimos três anos e resultados apresentados já em 2018. Além do amor à Pátria, do espírito de camaradagem e da disciplina, valores da instituição militar que continuam a cativar novos voluntários, as missões internacionais que se tornaram frequentes nos últimos anos, da Somália ao Afeganistão, do Kosovo ao Mali, entre outros países, também favorecem o recrutamento. Mas, a degradação da carreira, por comparação com outros tempos e outras forças e organismos, significa que a retenção dos efectivos é um desafio para as Forças Armadas, que têm hoje menos meios humanos e missões mais exigentes.


Cláudio Garcia é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.

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