Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.
Apresenta-se como ilusionista, recordista mundial do Guiness em pratos giratórios e palhaço. Agora também como mediador de pares, fazendo a ponte entre os técnicos da InPulsar – Associação para o Desenvolvimento Comunitário e quem vive nas ruas de Leiria. As ruas que Jorge Cardinali tão bem conhece, dos tempos em que era sem-abrigo, viciado em heroína.
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Da família dos Cardinali, primo de Vítor Hugo, Jorge nasceu há 54 anos, em Penacova, mas grande parte da sua vida foi passada de terra em terra, tendo como morada uma roulotte. Filho de pai ilusionista, que lhe ensinou os primeiros truques e que lhe passou a paixão pela magia, e de mãe acrobata, acabou por assentar arraiais em Leiria. Fê-lo para que o filho mais velho, hoje com 30 anos, fugisse à vida de saltimbanco e pudesse ir à escola “como as outras crianças”.
A vida viria, no entanto, a pregar-lhe uma “grande rasteira”. Aos 25 anos ficou viúvo, com duas crianças pequenas nos braços. “Senti-me desamparado. Não tive o apoio que precisava da família para me ajudarem a criá-los. Refugiei-me na droga. Quando dei por mim, estava a arrumar carros para matar o vício”, conta Jorge Cardinali. Nesses “tempos maus” chegou a dormir com os filhos dentro de um carro, mas, mesmo assim, “o mais velho nunca faltou às aulas”. Num dos raros momentos de lucidez, decidiu pedir ajuda para os filhos, que acabariam por ficar à guarda de uma instituição de acolhimento.
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Jorge vivia, então, apenas para a droga. “Chegamos a um ponto em que não queremos saber de mais nada, a não ser arranjar dinheiro para a dose. Já não tinha qualquer motivação para fazer espectáculos e ia-me degradando. Estava dias sem tomar banho”. Sobrevivia como arrumador de carros, mas grande parte do dinheiro que juntava era para “matar o vício”. “Entre comer ou comprar uma dose, não havia hipótese: a heroína levava sempre a melhor. Se tivesse 20 euros, não comprava uma dose de 10 e comida com os outros 10. Era tudo para a droga. Preferia comer um pão seco”.
Foi necessário chegar aos 44 anos, para Jorge, o ilusionista, conseguir o melhor número da sua vida. O mais difícil de todos. Largar a heroína, sair das ruas e deixar o lugar de arrumador de carros. “Chegamos a uma altura que ficamos fartos. Ou afundamos de vez ou arranjamos maneira de sair”, realça.
Jorge escolheu sair. Bateu à porta do antigo CAT – Centro de Apoio a Toxicodependentes e pediu ajuda. Foi aí que conheceu Lisete Cordeiro, uma das fundadoras da InPulsar e uma das pessoas que lhe deu a mão, que mais tarde o viria a convidar para fazer voluntariado na associação. Conseguiu entrar num programa de reabilitação e fez uma desintoxicação.
“O meu filho era o meu encarregado de educação”
Quando saiu da desintoxicação, o filho mais velho acolheu-o, com uma condição: tinha de cumprir as suas regras. “Era o meu encarregado de educação. Não podia ir sozinho ao café. Se ele não pudesse ir comigo, arranjava alguém para me acompanhar. Era ele que me alimentava e comprava tabaco”, conta Jorge, que não teve recaídas e que conseguiu resistir à tentação, quando ela apareceu. Recorda-se, “como se fosse hoje”, do dia em que se encontrou sozinho na rua com uma nota de 20 euros e uma cabine telefónica à sua frente.
“Escolhi ligar a uma pessoa amiga, que veio ter comigo. Foi a melhor coisa que fiz. Isto não vai lá com sermões. Temos de ser nós próprios a ver. O que faz a diferença é a força de vontade e ter alguém que nos ajude”, garante. E Jorge teve as duas: vontade e quem o ajudasse. Aos poucos, foi conseguindo “normalizar” a sua vida. Seis meses após terminar a desintoxicação, começou a montar material para o seu espectáculo. Voltou, de novo, ao seu trabalho como artista e aceitou também fazer voluntariado na InPulsar, integrado nas equipas do projecto Giros na Rua, que apoia a comunidade toxicodependente de Leiria.
Jorge entrou também para o Núcleo de Leiria da Rede Europeia Anti-Pobreza, instituição à qual ainda se mantém ligado como membro do seu Conselho Local e fez parte do programa desenvolvido há alguns anos pela Câmara, para integrar arrumadores de carro nos serviços de jardinagem do Município. “Éramos 12. Acho que fui o número um. Estive lá 21 meses. Podia dar 21 faltas injustificadas, mas só faltei um dia e meio”, diz, com orgulho. O projecto não teve continuidade e muitos dos participantes “voltaram para a rua”. Não foi o caso de Jorge Cardinali. “Tinha um meio de subsistência: os meus espectáculos”, diz, em jeito de justificação.
Depois disso, esteve ainda seis meses como assistente operacional da EB 2,3 D. Dinis, até que, em Setembro último, foi convidado para trabalhar, a meio tempo, como mediador de pares na InPulsal. “Sou o elo de ligação entre a malta que está na rua e os técnicos do projecto Giros na Rua. Tento abordar essas pessoas. Dou-lhes a conhecer o nosso trabalho e procuro encaminhá-las para os técnicos”, explica.
Além do papel de mediador, Jorge acompanha alguns desses sem-abrigo, uns com problemas de droga, outros de alcoolismo e de saúde mental, a consultas. Ajuda-os também a tratar de documentação. “Sei, por experiência própria que, se não houver alguém que as acompanhe, elas não vão”, diz. Participa ainda na entrega de kits a sem-abrigo, com a distribuição e troca de seringas, mas também de alimentação, roupa e produtos de higiene e na recolha de seringas antigas, enterradas há anos em casas abandonadas.
Em paralelo com a actividade na InPulsar, mantém o seu trabalho como artista, actuando em festas, em escolas e instituições. É ainda recordista mundial de pratos giratórios, um feito alcançado em 2014, em Leiria, durante o Impossibility Challenger, onde manteve três pratos de cozinha a girar em cima de varas durante quatro horas, 13 minutos e 34 segundos. Depois disso, já conseguiu fazer rodar 15 pratos em simultâneo durante quase três horas e 21 durante uma hora e 19 minutos.
“Hoje, não estou realizado a 100 por cento, mas estou perto”, confessa Jorge Cardinali, que sonha com o dia em que Leiria tenha uma casa onde quem vive na rua possa dormir. “Tive uma oportunidade e aproveitei-a. O meu sonho era que essas pessoas pudessem também ter a sua oportunidade. Se não lha dermos, nunca saberemos se conseguirão ou não”, conclui.
Maria Anabela Silva é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.
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