Red Dead Redemption 2 é um game de mundo aberto passado na fronteira norte-americana com uma dedicação quase subversiva aos detalhes e realismo. Como os eventos se passam em 1899, 20 anos antes das mulheres dos EUA conseguirem o direito de votar, o jogo apresenta as sufragistas, ativistas que lutaram pelo direito ao voto nas eleições públicas. Parecia uma boa ideia, não? O problema é que a cultura gamer abriga uma misoginia gritante e, para a surpresa de quase ninguém, alguns jogadores estão se deleitando em bater, abusar e matar essas personagens do jogo.
Um exemplo: tem uma sufragista em Saint Denis, o análogo de Nova Orleans do jogo, fazendo campanha por seu direito de votar. Ela está numa rua com um cartaz e proclama em voz alta “Me deixe votar”. Uma das principais razões para RDR2 ser um jogo tão interessante é que ele permite abordar e resolver situações de várias maneiras. Os jogadores podem atirar, roubar, falar ou bater em quase todo personagem que você encontra, o que às vezes leva a resultados surpreendentes. Esse design permitiu que um YouTuber chamado Shirrako postasse um vídeo dele andando até essa sufragista e dando um soco nela, a desmaiando. O vídeo, intitulado “ Red Dead Redemption 2 – Batendo na feminista chata”, foi postado em 28 de outubro e já tem 1,2 milhão de visualizações.
Videos by VICE
Shirrako, vendo a popularidade do vídeo, logo fez outro onde ele tenta jogar a sufragista para um crocodilo e outro laçando a mulher e a deixando nos trilhos do trem para ser atropelada.
Os comentários nesses vídeos, como já era de se esperar, são horríveis. Alguns usuários acharam hilário, outros dizem que é isso que toda feminista merece, enquanto outros reclamam sobre como as leis favorecem as mulheres, e ecoando outros pontos de discussão dos “direitos dos homens”.
“Eu também matei essa mulher”, escreveu o usuário Joker Productions, dono de um canal com 120 mil assinantes. “Toda vez que ia ao alfaiate, eu tinha que ficar ouvindo ela gritar. Fiquei de saco cheio e a levei para almoçar… só que a única coisa que servi foi chumbo grosso.”
“Eles podiam pegar essa parte, fazer um jogo do tamanho de um AAA normal, cobrar $60 e eu ia encomendar na hora que saísse”, escreveu um usuário chamado Silly Goose.
Perguntei a Shirrako por que ele achava que o vídeo fez tanto sucesso, e sobre os comentários que ele estava recebendo.
“Sei que você provavelmente estava esperando alguma resposta política, mas a verdade é que simplesmente é um momento engraçado de um dos meus streams, que decidi postar como um vídeo separado”, ele disse. “Não sei se foi intencional, mas a Rockstar Games fez essa NPC ser bastante irritante, quando você tenta parar para comprar roupas no jogo, seu diálogo com o dono da loja fica sendo interrompido pelos gritos dela, e eu queria fazer compras em paz; sei que como gamer, você está familiarizado com essas situações de NPCs chatos.”
Shirrako disse que a maioria sabe que o vídeo é uma brincadeira, e que tem consciência que outras pessoas postaram comentários tóxicos, enquanto outros ficaram profundamente ofendidos com o vídeo.
“Claro, não concordo com os comentários machistas, mas não tem muito o que eu possa fazer sobre isso, não gosto de censurar as opiniões das pessoas, independente de gostar delas ou não”, ele disse.
Os desenvolvedores da Rockstar sempre tiveram que lidar com polêmica cercando as coisas que os jogadores podem fazer nos seus mundos abertos e intrincados. Grand Theft Auto III, o primeiro jogo 3D da série e cartilha para o estilo de jogo de mundo aberto tão dominante na indústria hoje, ficou infame por deixar os jogadores transarem com trabalhadoras sexuais e as matar depois para pegar o dinheiro de volta.
Isso não quer dizer que a Rockstar aprova esse tipo de comportamento, nem que Red Dead Redemption 2 defende socar feministas, mas vale a pena pensar no que esses mundos abertos deixam os jogadores fazerem, por quê, e como essas coisas correspondem com o que está acontecendo no mundo real.
É importante apontar que apesar de RDR2 dar aos jogadores muitas opções sobre como abordar as situações e muitas atividades para fazer (caçar, jogar pôquer, pescar), ele não deixa as pessoas fazerem qualquer coisa, nem deixa elas evitarem certas ações. Arthur Morgan, o protagonista, não pode simplesmente se aposentar e virar professor de escola numa cidade remota da fronteira. O jogador não pode decidir, por exemplo, jogar o jogo como um aspirante a pianista. É um jogo sobre foras-da-lei, e o jogador pode decidir se quer ser um bandido de bom coração em conflito ou um psicopata mesmo, mas você vai ter ter que roubar e atirar em pessoas de qualquer jeito.
Isso significa que apesar de qualquer ideia que a Rockstar possa ter sobre o vídeo de Shirrako, poder socar e matar uma sufragista em Red Dead Redemption 2 é algo que o estúdio escolheu colocar deliberadamente no jogo. Os jogadores, pelo que sei, não podem transar com as trabalhadoras sexuais, mesmo quando elas oferecem seus serviços. A Rockstar também escolheu não incluir a habilidade de matar crianças em RDR2, apesar disso não ser realista. São escolhas conscientes que limitam o que os jogadores podem fazer.
Também é importante apontar que a sufragista não é retratada de maneira neutra. A Rockstar escolheu isso também. Como Red Dead Redemption 2 permite que os jogadores explorem o jogo como quiserem, encontrei as sufragistas num lugar totalmente diferente desse mundo. Numa cidade pequena chamada Rhodes, onde o neto de um dono de uma fazenda tem um romance proibido com a filha de uma família rival. O interesse romântico é uma sufragista, e ele pede que eu a acompanhe durante um protesto para que ela fique segura. É uma preocupação legítima e historicamente correta, já que as sufragistas eram espancadas em público, atacadas sexualmente, presas e alimentadas à força.
Achei essa uma missão paralela muito interessante, e foi inteligente da parte da Rockstar destacar algumas das desigualdades horríveis que definiam a fronteira americana tanto quanto chapéus de cowboy e revólveres, mas também sinto que isso foi incluído para dar mais sabor. O jogo não diz que as sufragistas eram boas ou ruins, só que elas existiram.
Como os jogadores deveriam se sentir com isso? Os jogadores acham que a sufragista de Saint Denis é irritante porque essa é a bagagem que eles trazem para o jogo, ou ela é retratada como difícil de simpatizar?
Quando o jogador aborda a sufragista em Saint Denis, ela pergunta o que Arthur acha do sufrágio feminino e seu direito de votar, e ele responde “Claro, por que não”. Depois ele diz “Qualquer um que seja idiota o suficiente para votar, deveria poder”, que é o nível de sofisticação e comentário político que eu esperava de um desenvolvedor cujo o jogo de estreia Grand Theft Aut o foi celebrado por ter um botão de peido.
Ainda não terminei o jogo, mas duvido que Red Dead Redemption 2 tenha algo profundo a dizer sobre direitos das mulheres, e duvido que eles defendam esse tipo de comportamento, no jogo. Só sei que eles permitiram fazer isso, enquanto não permitiram outras coisas.
Não acredito que só os videogames são culpados por violência no mundo real, mas existe uma parte da nossa infraestrutura cultural que deixa alguém interpretar um assassino de feministas (um problema real acontecendo no mundo agora), poste um vídeo sobre isso para ganhar likes, e permita que outros usem o vídeo como um ponto de encontro para discutir quanto odeiam mulheres na vida real.
Matéria originalmente publicada no Motherboard US.
Leia mais matérias de ciência e tecnologia no canal MOTHERBOARD.
Siga o Motherboard Brasil no Facebook e no Twitter.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.