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Música

Talento aprisionado

Estamos em abril de 2009, sábado de aleluia. Oito anos e 79 dias se passaram desde que Dexter pisou em um palco pela última vez.
dexter joão wainer

As paredes de concreto e aço que serviram para manter sob controle a escória da sociedade no presídio do Carandiru viram o surgimento de um fenômeno musical único. Ódio e revolta acumulados deram origem a um grupo de rap que, rapidamente, se transformaria em um ícone cultuado até hoje na periferia de São Paulo. Em 1998, o destino juntou na mesma cela os assaltantes Marcos Fernandes de Omena e Cristian de Souza Augusto, vulgos Dexter e Afro-X. Em 1999, eles criaram um grupo de rap e o batizaram com o numero da cela que dividiam no quinto andar do pavilhão 7 do Carandiru: 509-E. Ajudados pela voluntária Sophia Bisilliat, que coordenava o projeto “Talentos Aprisionados”, o duo conseguiu gravar o disco Provérbios 13 e, com ele, balançar as estruturas do sistema carcerário. Com letras cortantes como as facas usadas para se defender na cadeia, o 509-E atingiu em cheio o imaginário dos fãs. De um ponto de vista até então inédito na música, eles explicavam de dentro para fora o que se passava no sistema carcerário e na cabeça daqueles que o habitam. O primeiro CD do 509-E foi um sucesso e, rapidamente, eles se transformaram em uma das principais forças do hip-hop nacional. Nos meses seguintes ao lançamento do CD, a dupla recebeu autorização judicial e saiu da cadeia por 157 vezes para participar de shows, palestras e programas de televisão. Porém, em 2001, incomodada com o sucesso de um grupo de criminosos condenados, a justiça paulista acabou com a festa e proibiu em definitivo as saídas do 509-E. Com uma pena menor, Afro-X foi libertado em 2002, meses antes do lançamento do segundo CD, 2002 Depois de Cristo. A dupla foi desfeita logo depois, mas o mito se manteve. Músicas como “O Oitavo Anjo” e “Saudades Mil” até hoje continuam sendo tocadas nas rádios, nas festas, nas favelas e nas cadeias. Estamos em abril de 2009, sábado de aleluia. Oito anos e 79 dias se passaram desde que Dexter pisou em um palco pela última vez. Quatro mil pessoas se aglomeram na quadra da escola de Samba Unidos do Peruche para assistir a sua volta aos palcos. Condenado a 17 anos, porém com bom comportamento, o rapper, que está preso em regime fechado desde 1998, foi liberado para passar o feriado de Páscoa com a família. Ele, que não via a rua desde 2001, foi o protagonista de um show, com muitos convidados especiais, que tem que começar às 19 horas em ponto. Por determinação da justiça, detentos liberados para a “saidinha” de Páscoa não podem ficar na rua depois das 22 horas. O carro estaciona na porta da quadra do Peruche e Dexter desce vestindo um moleton preto. Ele é saudado pelos fãs e protegido pelos seguranças. Chega ao camarim e encontra vários amigos que, obviamente, não via há muito tempo, como Thaide, Gog, Paula Lima, Fernandinho Beat Box, Rappin Hood, Edy Rock, KL Jay, Ice Blue, os sambistas Pinha, Péricles e muitos outros. O clima é de festa e reencontro. Está tudo pronto para o show, mas ainda falta alguém. Mano Brown. A parceria entre Dexter e Brown vem de longa data. Em 2000, o Racionais fez uma apresentação histórica para as famílias dos presos ao lado de Dexter no pátio externo do pavilhão 7 do Carandiru, em homenagem ao dia das crianças. Avesso a entrevistas, o rapper conversou com exclusividade com a equipe da revista Vice. “O Dexter é um craque, o lugar dele é na rua. Sempre corri com ele nesses anos todos de sofrimento. De uma certa maneira, nós sofremos juntos. Fizemos castelos e imaginamos esse dia em que cantaríamos na rua. Conheço de ponta a ponta todas as músicas dele, assim como ele conhece as minhas. Ele é o quinto elemento dos Racionais”, conta Brown. “E o melhor ainda está por vir. É só esperar para ver”, emenda o rapper, que está finalizando o novo álbum dos Racionais MCs. O público parece não suportar a expectativa. Quando tocam os primeiros acordes de “Oitavo Anjo”, a plateia não se contém. Dexter entra no palco esfumaçado sob gritos eufóricos com o capuz do moletom cobrindo a cabeça raspada. Ele veste uma camiseta com a foto do presidente norte-americano Barack Obama e a palavra “Revolução”. Microfone na mão direita, cotovelos erguidos “a la Public Enemy” e a palavra “Dexter” tatuada no antebraço levantado, entrou cantando: “Acharam que eu estava derrotado e quem achou estava errado. Eu voltei, tô aqui, se liga só, escuta ai…” Alguns amigos vestindo o uniforme do sistema carcerário, calça bege e camiseta branca, entraram juntos no palco. Enquanto Dexter cantava, eles encenavam a briga que deu origem ao Massacre do Carandiru e acabou com o saldo de 111 mortos. A música é dos Racionais, mas definitivamente tem outro peso na voz de alguém preso há mais de dez anos. Por volta das nove da noite, Mano Brown foi finalmente chamado ao palco. Cantou “Sou Função”, parceria dele com o amigo preso, que faz parte do CD solo de Dexter Exilado Sim, Preso Não, lançado em 2005. Em seguida, cantaram juntos “Vida Loka parte II” e o palco foi invadido pela chamada Família Racionais. Músicos dos grupos Rosana Bronks, U Time e seus agregados cantaram com eles. Dexter agradeceu e mandou “Saudades Mil”, encerrando sua participação. Já era hora de ir embora. Ele se despediu e saiu do palco. Como nos tempos do crime, um carro já o esperava com o motor ligado do lado de fora. Segunda-feira de manhã, Marcos Omena voltou para o presídio de Hortolândia, onde cumpre pena de 17 anos por assalto a mão armada. O músico que anteontem fora ovacionado por milhares de pessoas estava de volta à rotina pesada que vive desde que foi preso, em 28 de janeiro de 1998. Dexter tenta na justiça a unificação de sua pena, para em seguida tentar a liberdade condicional. Já conseguiu o regime semiaberto e, em breve, poderá trabalhar durante o dia e apenas dormir no presídio. Para os fãs apressados, o consolo é o ditado básico de qualquer cadeia, aquele que mais se ouve pelos corredores escuros dos presídios paulistas: “A cadeia é longa, mas não é eterna”. Antes do show, perguntado sobre como faz para não ficar louco na cadeia, Dexter foi taxativo: “É Deus. Só ele é quem mantém minha sanidade lá dentro, tenho temor e amor por ele. Ele me proporciona minha esposa, que é minha base, minha família e me deu a música. O rap me ensinou que tenho que ler, tenho que me informar e prestar atenção em tudo e em todos. O rap me faz viajar por outros mundos. Assim eu consigo sair da cadeia um pouco”.

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