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'Não Me Faça Perder Tempo, Verme!’: Jogamos ‘Gods Will Be Watching’

Habitando um mundo de ficção científica onde os seres humanos convivem com raças alienígenas.

Um dos gatilhos que nos faz continuar gastando horas e horas em um joguinho de video game é a noção de recompensa. Alguns anos atrás li este belo texto de Eric Schaefer, um dos criadores do Diablo original e do Diablo 2, mas uma parte específica do texto que permaneceu na minha cabeça foi a perfeita analogia que ele faz: "Nós tentamos fazer cada ação ser divertida. Mover os itens no inventário produz sons agradáveis. Monstros morrem de maneira espetacular, como pinhatas explodindo em uma chuva de presentes". Quase todos os game designers do mundo desejam o tipo de sucesso que o pessoal da Blizzard teve com Diablo 2. Eu digo quase porque com a multiplicidade de direções que um grupo de pessoas pode tomar ao desenvolver um jogo, existem cada vez mais intenções finais para seus projetos. O que o pessoal da Deconstructeam fez com Gods Will Be Watching é o caminho completamente oposto dessa diversão através da recompensa do Diablo.

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Os defensores do software livre do futuro acham que sua causa irá salvar o mundo, assim como os de hoje em dia.

Controlando o sargento Burden, já notando que a palavra "burden" em inglês quer dizer fardo ou responsabilidade, você habita um mundo de ficção científica onde os seres humanos convivem com raças alienígenas. No meio de um jogo político entre diferentes grupos, você acaba se infiltrando em um grupo terrorista que luta pela igualdade das raças inteligentes, que são escravizadas pelo império malvado, este segundo tão comum no universo dos videogames. É trabalhando com este grupo que começa o primeiro capítulo do jogo: você armado com um rifle laser mantendo reféns quietinhos, enquanto seus parceiros hackeiam um computer atrás de um vírus (biológico, não de computador) que potencialmente será usado em um ato terrorista. Logo fica óbvio qual será sua função através do jogo. Dar ordens.

A cena pesada mais usada para criar hype em torno do jogo.

Vou contar aqui uma parte do jogo para mostrar um ponto, se não quiser saber detalhes, melhor nem ler. Mas é o seguinte: no segundo capítulo você e um companheiro são presos e tem que aguentar vinte dias de tortura até o resgate chegar. Entre diversos métodos de tortura utilizados pelos sacanas que te pegaram estão: dar porrada, dar martelada, arrancar uns dentes, marcar com ferro em brasa e, em um dos últimos dias, ameaçar arrancar o braço do seu companheiro com uma machadada. Sim, cenas lamentáveis desenhadas em pixel art. Lamentáveis. Quais as consequências dessa bela amputada que seu amigão levou? Nenhuma, absolutamente nenhuma, só está lá pelo choque, não existe consequência alguma se seu amigo e companheiro de sessões de tortura perder seu braço direito por sua culpa. Inclusive, no próximo capítulo, tanto faz essa cena, ele aparece de novo com os dois braços e isso nunca mais é mencionado. Ouvi dizer que os desenvolvedores do jogo fizeram de propósito para que os capítulos não tivessem necessariamente relação entre si, só acho que isso diminui muito da força de um jogo que é basicamente voltado para difíceis escolhas morais. Grandes merda ter uma escolha moral difícil se ela não tem consequência nenhuma para o resto da história.

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A arte toda é realmente muito bonita. Adivinha se você não pode escolher um futuro horrível para essas pessoas todas? Sim, até pro cachorro.

Mas o jogo tem seus pontos positivos. A história é interessante e a arte de pixel pode ser muito bonita em algumas sequências. Mas para um jogo todo voltado para a narrativa, alguns detalhes não encaixam. Como, por exemplo, o número limitado de diálogos que são repetidos incessantemente. Isso fica bem aparente no segundo capítulo, mas dá pra sacar desde o começo, falando com os reféns e coleguinhas terroristas. Uma dica boa para quem vai jogar também é ver a cor da escolha de interação que você vai fazer com os outros personagens – algo que descobri só lendo sobre o jogo é que ele é baseado em turnos, e cada escolha que tem o fundo em vermelho gasta um turno, enquanto as em azul não gastam o tempo. A primeira vista você pode achar que o jogo é parecido com um adventure gráfico, mas em vários aspectos ele se assemelha mais com um visual novel, gênero estabelecido definitivamente pelos jogos hentai, no sentido de que as interações e escolhas que você faz são todas baseadas em diálogo com outras pessoas, e não com quebra cabeças lógicos como em um adventure tradicional.

Ao final de cada capítulo você pode ver no que resultaram as suas escolhas e como os coleguinhas da internet também lidaram com a situação.

Gods Will Be Watching é vendido como um jogo difícil, o que pode ser ligeiramente enganador: ele é um jogo mais frustrante do que difícil. Em um jogo difícil, através da experiência acumulada com horas de jogo, você vai ficando melhor nele, entendendo melhor as mecânicas e sabendo responder melhor as adversidades. Gods Will Be Watching não dá nem esta possibilidade. A maior parte do tempo você vai ficar tentando entender os parâmetros escondidos por trás do código para você não se foder, e mesmo assim você provavelmente vai se foder. Entendo a vontade que cada vez mais gente tem hoje em dia de empurrar os jogos para fronteiras mais experimentais, mas Gods Will Be Watching não faz exatamente isso pra falar a verdade, ele só soa mais como uma forçada artificial em cima de uma boa ideia para um jogo casual – e foi assim mesmo que ele surgiu.

Foi mais ou menos assim: Ludum Dare é um desafio feito para desenvolvedores fazerem um jogo com um tema em comum, e foi em uma das edições que o grupo da Deconstructeam se juntou para fazer em 72 horas a primeira versão feita em flash, lançado em 29 de abril de 2013. Em 16 de julho do mesmo ano, o pessoal da Deconstructeam fez uma página no Indie Gogo, site de crowdfunding voltado para jogos, pedindo no mínimo oito mil euros para fazer o jogo (euros pois o grupo mora na Espanha). Em 15 de agosto, eles chegaram à quantia de 20.835 euros, bem mais do que pediram inicialmente, e começaram a trabalhar na versão completa do jogo. Esse processo é muito comum hoje em dia e ótimos títulos saem do projeto e viram realidade assim, o que acho realmente bom. Alguns meses depois, o pessoal da Devolver Digital, provavelmente a distribuidora mais "cool" de jogos eletrônicos da atualidade, falou que iria apoiar a galera da Deconstructeam e lançar o jogo.

Foi assim, a partir de um jogo feito em 72 horas, que surgiu um jogo que você pode comprar por R$ 16,99 no Steam. Sabe o Diablo 2 que eu citei lá em cima? Ele levou três anos de trabalho em período integral de 40 profissionais. Eles fizeram o jogo umas três vezes e jogaram no lixo até conseguir acertar. Não sou contra a existência de Gods Will Be Watching mas acho que não é só uma arte em pixel maneira e uma história "polêmica" que segura a estrutura de um bom jogo. O pessoal é novo e foi um bom trabalho que eles fizeram tão cedo em suas promissoras carreiras de desenvolvedores de jogos, mas puta que o pariu, parem de criar tanto hype em cima das coisas.

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