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Não, Não Existe Overdose Fatal de Maconha

Semanas atrás, uma mãe de 31 anos fumou meio baseado para pegar no sono e nunca mais acordou. Manchetes disseram que ela morreu de overdose, mesmo quando a ciência já comprovou que a dose necessária para sofrer uma overdose fatal é muitíssimo maior que...
Foto por BNPS.

Pelo que se sabe, algumas semanas atrás Gemma Moss, uma mãe de 31 anos, fumou meio baseado para ajudar a pegar no sono e nunca mais acordou: uma morte trágica que logo rendeu manchetes vertiginosas chamando-a de "a primeira mulher a morrer de envenenamento por cannabis na Grã-Bretanha".

Como se fosse algum recorde esportivo.

E as manchetes poderiam ter ido ainda mais longe, proclamando Moss "a primeira pessoa na história a morrer por overdose de maconha!". O que, considerando que os humanos vêm ingerido a planta de uma forma ou de outra por mais de 10.000 anos, certamente é um puta furo jornalístico. Especialmente quando a ciência já comprovou que a dose necessária para sofrer uma overdose fatal é muitíssimo maior que meio beck.

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De acordo com uma decisão de 1988 da Força Administrativa de Narcóticos dos Estados Unidos (o DEA), dada pelo juiz Francis Young:

As drogas usadas na medicina em geral levam o chamado LD-50. A classificação LD-50 indica a dosagem com a qual 50% dos animais de teste que receberam determinada droga morreram com resultado da toxidade induzida. Vários pesquisadores têm tentado determinar a classificação LD-50 da maconha em teste com animais, sem sucesso. Simplificando, os pesquisadores não conseguem dar aos animais maconha suficiente para induzir à morte.

Atualmente, estima-se que a LD-50 da maconha esteja em torno de 1:20.000 ou 1:40.000. Em termos jurídicos isso significa que, para induzir à morte, um fumante de maconha teria que consumir 20.000 a 40.000 vezes a maconha contida num cigarro de maconha… Um fumante teria, teoricamente, que consumir aproximadamente 680 quilos de maconha em cerca de 15 minutos para induzir uma resposta letal.

Se até o DEA, famoso por ser antimaconha, considera a overdose quase impossível e, mesmo que os mais raivosos combatentes das drogas do mundo não possam apontar um único caso anterior confirmado, como diabos a gente acabou com essas manchetes definitivas na semana retrasada? É possível que Gemma Ross tenha bolado um beck de mais de mil quilos e fumado metade dele de uma só vez?

Bom, a imprensa britânica não informou qual era o tamanho exato do baseado, mas duvido que façam uma seda tão grande assim. Não, em vez disso, todas essas histórias afobadas confiam na sabedoria de um legista de cidade do interior e num patologista local, que aparentemente não entendem muito bem como a maconha afeta o corpo humano.

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"O pós-morte não encontrou nenhuma causa natural para a morte dela" — escreveu o Sheriff Payne, o legista de Bournemouth, Inglaterra — "sendo que é mais provável que ela tenha morrido dos efeitos da cannabis".

Ao que o patologista de serviço, Dr. Kudair Hussein, acrescentou: "O exame físico e os exames de vários órgãos, incluído coração e fígado, não mostraram nenhuma anormalidade que poderia causar a morte dela. O nível de canabinoides no sangue era de 0.1 até 0.15 miligramas por litro; isso é considerado um uso de cannabis de moderado a pesado. Eu procurei na literatura especializada, e é um fato bem conhecido que a cannabis tem uma toxidade muito baixa. Mas há relatos de que a cannabis pode ser considerada a causa da morte, já que isso pode induzir um ataque cardíaco".

Então, ele definiu a causa da morte como "ataque cardíaco"?

Não, porque, como ele mesmo escreveu, não há nenhuma evidência que demonstra isso.

Eles definiram a causa da morte como "envenenamento por cannabis", como foi amplamente divulgado na história publicada pelos jornais e que logo se tornou um viral?

Não, porque, como eles mesmos disseram, não há provas disso. E existem muitas evidências mostrando que tal "envenenamento" é cientificamente impossível.

Em vez disso, eles concluíram que a causa da morte foi "abuso de cannabis". Novamente, não há absolutamente nenhuma prova disso, mas como as autoridades não conseguiram explicar como uma mulher aparentemente saudável morreu durante o sono, por que não culpar o baseado?

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Claro, nem preciso dizer que nem todos os especialistas concordaram com isso.

"Não há relatos de nenhuma fonte confiável de morte por cannabis na história", disse o Dr. Alan Shackelford, médico formado em Harvard e um dos principais defensores da maconha no Colorado, ao Denver Post. "A cannabis pode causar um aumento no batimento cardíaco e há a possibilidade de que cause um problema em alguém com uma doença cardíaca preexistente — por exemplo, alguém com uma taxa elevada de batimentos cardíacos. Mas não há uma dose conhecida de cannabis que poderia matar um ser humano […] Vemos mortes inexplicáveis com frequência. [Nesse caso] a cannabis foi um bode expiatório e um achado incidental […] Não faço a menor ideia do que pode ter causado a morte dela, mas posso dizer com quase 100% de certeza que não foi a maconha que a matou."

Enquanto isso, David Nutt, ex-presidente do Advisory Council on the Misuse of Drugs, não descartou inteiramente a possibilidade de que a cannabis teve algum papel na morte de Moss, mas disse que uma "fatalidade tão estranha" não deveria mudar a maneira como consideramos o incrível recorde de segurança da planta.

"Não entendo a certeza do patologista de que a cannabis matou Gemma Moss, mas também não quero contradizê-lo abertamente", escreveu Nutt no blog do Comitê Científico Independente sobre Drogas. "Usar qualquer quantidade de cannabis, como todas as drogas, como muitas atividades, promove algum stress no corpo. A cannabis geralmente faz o coração trabalhar um pouco mais pesado e afeta sutilmente o ritmo e taxa de batimentos. Qualquer pequeno stress no corpo pode ser a gota que transborda o copo, a batida de asa de borboleta que desencadeia o furacão. Moss sofria de depressão, o que aumenta o risco de ataque cardíaco súbito. É bem plausível que um pequeno stress adicional causado pelo baseado tenha desencadeado um evento 'um em um milhão', da mesma forma como tem sido registrado de maneira mais frequente em esportes, sexo, saunas e até ao usar o banheiro."

Ao que qualquer cidadão preocupado responderia: não brinca.

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