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Milícias da República da África Central Usam Feitiçaria para se Proteger Contra Balas

Soldados do grupo cristão Anti-Balaka usam o gri-gri, um pedaço de couro enfeitiçado, para ficarem invisíveis e se protegerem de balas e foguetes nos conflitos com o grupo Seleka, que já deixaram mil pessoas mortas e mais de um milhão de desabrigados.

Pulseiras gri-gri.

A crise na República da África Central já dura mais de um ano, e a violência praticada pelas milícias cristãs e muçulmanas já desperta medos reais de um possível genocídio semelhante ao de Ruanda. De fato, os confrontos que vêm acontecendo entre o grupo cristão Anti-Balaka e o grupo predominantemente muçulmano Seleka — ambos parte de organizações guarda-chuva — já causaram a morte de mais de mil pessoas e deixaram mais de um milhão de desabrigados. Os inocentes que se encontraram no meio do confronto foram queimados, feridos por tiros ou devorados devido à sua religião.

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Durante nossa estadia em Bangui, capital do país, eu e o cinegrafista Leo conhecemos o líder de uma milícia Anti-Balaka local. Grupos cristãos como o dele gostam de afirmar que estão atacando os muçulmanos para impedir que os radicais islâmicos assumam o controle do país, mas os ataques indiscriminados contra comunidades inteiras sugerem, na verdade, uma motivação sectária — os Anti-Balaka adquiriram, evidentemente, uma reputação horrível devido à prática de matar muçulmanos inocentes a sangue frio.

E foi pensando nessas mortes que Emotion — assim apelidado porque chora muito (aparentemente, por seu fervor e paixão, não por medo) — disse que gostaria de nos mostrar o quanto sua milícia era bem organizada e pacífica. Antes de partimos para conhecer os homens que liderava, Emotion disse que precisava parar para pegar alguma coisa. Então, encostou o carro e, aos berros, chamou um de seus companheiros, que logo veio correndo lhe entregar um colar feito com grandes quadrados de couro.

“Para que serve isso?”, perguntei.

“É para minha proteção", respondeu. “É melhor do que qualquer colete à prova de balas. Quando uso este colar, não há bala ou facão que consiga me atingir. Nem mesmo foguetes conseguem me matar.”

“É mágico, então?”

“Sim, chamamos de gri-gri", respondeu.

Já de posse do colar, Emotion nos levou até um posto de controle operado por sua milícia. Ao sair do carro, perguntamos se poderíamos filmar alguns dos homens que estavam ali. Todos usavam o gri-gri.

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“Claro", respondeu um deles, "mas você não conseguirá me ver”.

“Por que não?”, perguntei.

“Porque estou invisível.”

Emotion usando seu colar de gri-gri.

Olhei para os homens sentados ao redor dele, esperando ver alguém tentando abafar as risadas. Mas não houve reação por parte de nenhum deles, vi apenas os rostos perplexos que me fitavam. Ao voltar para o carro, contei para nosso motorista Harve — um nativo que parecia bastante sensato — sobre nosso amigo invisível, esperando que ele esboçasse um sorriso.

“Talvez ele tenha razão", afirmou Harve. “Muitas pessoas são invisíveis aqui.”

Como não era possível concordar com ele naquele momento, prometi assistir às filmagens que fizéramos antes de emitir uma opinião.

No percurso de volta à cidade, paramos para filmar os soldados franceses e africanos encarregados de revistar os carros que passavam pelos postos de controle. O comandante francês veio bater um papo conosco e, no fim, acabou dominando a conversa, que girou em torno do ótimo trabalho que o exército francês estava fazendo por lá. Perguntei se os soldados africanos que trabalhavam ao lado dos franceses também acreditavam em magia e usavam o gri-gri.

“Alguns usam sim, mas eu prefiro isto aqui", ele respondeu, dando uns tapinhas em seu colete à prova de balas.

O cristianismo é a religião predominante da República da África Central, e o islamismo e o animismo são as duas minorias religiosas mais numerosas do país. No entanto, a maioria das pessoas — independentemente de religião — tem a mesma fé na magia que tem na Bíblia e no Alcorão. Para citar um exemplo, aproximadamente 40% de todas as ações judiciais do país envolvem, em algum nível, a feitiçaria. Os advogados muitas vezes instruem os clientes a não lançarem feitiços enquanto estiverem no banco dos réus. Transformar-se em animais também parece um passatempo muito popular no país.

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Assim, não foi grande a surpresa quando descobri que um número tão grande de soldados realmente parecia acreditar que pequenos pedaços de couro seriam capazes de protegê-los contra disparos de armas. Todavia, para nós, que compartilhamos uma visão de mundo ocidental — e um tanto enfadonha —, a ideia continuava soando absurda. Em uma tentativa de descobrir a origem dessas crenças, pedimos a Harve que nos levasse a um feiticeiro. Esperávamos que ele conseguisse nos explicar exatamente o que eles faziam com o couro de boi tratado para que conferisse poderes de invisibilidade e invencibilidade a quem o usasse.

Philippe, feiticeiro.

Dentro de uma vila nos arredores de Bangui, fomos conduzidos a uma cabana pequena e escura, com apenas um cômodo. O local estava decorado com uma imagem de Jesus e alguns pôsteres desbotados de vários ex-presidentes da República da África Central.

Estávamos acomodados em cadeiras de plástico quando Philippe — o feiticeiro — entrou. Ele aparentava ter 30 e poucos anos, usava calças cáqui e uma camiseta estampada da marca Dolce & Gabbana. Disse que a guerra em seu país tinha sido boa para os negócios. Ele fora o fornecedor de gri-gri para as milícias Anti-Balaka e alegou que o uso do artefato foi de suma importância para eles na derrota contra os rebeldes do Seleka.

Leo explicou que passava muito tempo trabalhando em locais perigosos e, portanto, precisava de algo que o protegesse contra as balas e os foguetes. Philippe dispôs suas ervas sobre a mesa enquanto explicava o que cada uma fazia. Tínhamos concordado em pagar € 70 (valor 50 vezes maior do que o salário médio diário no país), e perguntamos se poderíamos pagar metade no ato e metade no dia seguinte após receber os produtos.

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Philippe respondeu que não. Tínhamos de pagar € 60 ali na hora e € 10 no dia seguinte. Concordamos e decidimos que talvez não fosse muito sensato discutir com um feiticeiro. Harve então pediu que Philippe lhe administrasse algumas injeções antimagia para protegê-lo contra a feitiçaria, explicando que precisava de um reforço.

Voltamos no dia seguinte e encontramos Philippe no mesmo local onde o deixáramos. Após trocarmos cortesias, ele nos mostrou a peça mais nova do kit de Leo.

A última coisa que Philippe precisava fazer antes de garantir que Leo conseguiria atravessar uma zona de guerra sem um colete à prova de balas era entrar nos detalhes. “O usuário não deverá tocar em uma mulher em período menstrual quando estiver usando este gri-gri ou ele deixará de funcionar", esclareceu ele. “É também desaconselhável passar por baixo de um varal de roupas que tenha peças íntimas femininas.”

A leitura da lista de instruções ainda continuou por algum tempo e focava, principalmente, no período menstrual. No início, eu me distraí com essa aparente obsessão de Philippe, mas logo percebi que ele estava, inadvertidamente, respondendo a uma pergunta que vinha me incomodando há algum tempo: como explicar o fato de um soldado estar usando o gri-gri e, mesmo assim, morrer quando baleado? Como Philippe justificava a ineficácia do amuleto?

A preocupação com o período menstrual parecia ser a resposta. Bastaria dizer que o morto havia tocado na parceira menstruada (ou tinha passado por baixo de um varal de roupas) sem tirar seu gri-gri e Philippe seria absolvido de qualquer julgamento.

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As ervas mágicas de Philippe.

Philippe entregou seu novo gri-gri a Leo e depois me perguntou por que eu não tinha comprado um de seus colares. Eu poderia ter respondido com a primeira coisa que me veio à mente ("porque você é um impostor e € 70 é muito dinheiro para gastar em um barbante com poderes mágicos…”), mas, em vez disso, eu me vi explicando, com a ajuda de Harve, que meu dinheiro havia acabado e eu não tinha como pagar.

Então, pedi a Harve que lhe dissesse que em breve eu voltaria à República da África Central e que gostaria de comprar um colar quando retornasse. Estar em um país onde todos acreditam em magia — e ficar frente a frente com um homem que alega usá-la em seu favor — acabou por me fazer acreditar em magia também, mesmo que por um breve segundo, porque fiquei, sem dúvida, muito preocupado com a possibilidade de Philippe lançar algum tipo de feitiço horrendo contra mim se eu não prometesse comprar uma das suas bugigangas.

De volta ao hotel, verificamos os filmes dos últimos dois dias e, para nosso espanto, o homem que se dizia invisível estava ali, bem visível.

A crença em magia na República da África Central lembra muito uma religião, porque a fé das pessoas no gri-gri funciona como uma espécie de cobertor de segurança — o amuleto é uma presença indiscutivelmente imaginária que lhes infunde coragem nos momentos em que mais deveriam ter medo. Por outro lado, apesar de não haver nada de errado em nos apoiarmos na religião a fim de nos sentirmos mais fortes, é um pouco mais difícil apoiar xamãs vigaristas que cobram uma pequena fortuna de milícias por algo que lhes dará uma dose extra de confiança enquanto matam homens, mulheres e crianças inocentes.