Como pesquisadores usam pele de tilápia para tratar queimaduras no Ceará
Josué Bezerra

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Como pesquisadores usam pele de tilápia para tratar queimaduras no Ceará

Revolucionário, tratamento aproveita restos do peixe mais consumido do Brasil para melhorar cicatrização e aliviar dor aguda dos pacientes.

Josué Bezerra sempre ouviu que peixe faz bem à saúde. Duas vezes por semana é esse seu prato. "Quando vou à praia, é obrigatório. Como tudo, menos a cabeça e a pele", conta o supervisor de manutenção. Ele só não imaginava que, no fim do ano passado, a parte inaproveitada das suas refeições traria ainda mais benefícios para sua vida.

O pernambucano radicado no Ceará é um dos favorecidos por uma pesquisa científica que usa pele de tilápia como curativo para tratar queimaduras. Acidentado após explosão de chave elétrica na empresa onde trabalha em dezembro de 2016, Josué sofreu lesões graves no braço direito. Em busca de um tratamento que aliviasse as dores, topou, um tanto desconfiado, ser voluntário do estudo pioneiro no Brasil e no mundo.

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O palpite de que pele de tilápia poderia ter a mesma utilidade que as de porco e rã em tratamento de pacientes queimados surgiu após o cirurgião plástico Marcelo Borges, do Recife, ler uma reportagem que apontava que 99% das peles de peixes era descartada — o restante é usado no artesanato e para fabricação de bolsas, cintos e sapatos.

"A tilápia é amplamente produzida em cativeiro no Ceará", diz o cirurgião plástico Edmar Maciel, coordenador da pesquisa e presidente da ONG Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ). "Sabendo-se que animais aquáticos têm menor risco de transmissão de doenças do que os terrestres, resolvemos testar a aplicabilidade da pele do peixe na recuperação de queimados."

As escamas apresentam boa quantidade de colágeno, são resistentes e sua umidade favorece a boa cicatrização de queimadura. Crédito: Gabriel Marques

O tratamento passou a ser desenvolvido no fim de 2014, em Fortaleza. Lá surgiu o primeiro banco de pele animal do Brasil e o primeiro banco de pele animal aquático do mundo. A equipe conta hoje com 65 profissionais, da Universidade Federal do Ceará (UFC), do hospital Instituto Doutor José Frota (IJF) e do IAQ.

Os testes histológicos do material apontaram características semelhantes às da pele humana. A quantidade da proteína colágeno, a resistência do tecido e a umidade eram favoráveis a uma boa cicatrização de queimadura e em menor tempo do que as peles de outros animais. Após 18 meses de estudo e testes em ratos, era hora da avaliação em humanos.

Edmar Maciel, coordenador da pesquisa. Crédito: Gabriel Marques

Inicialmente a pele de tilápia foi testada em pessoas sadias, para os médicos conferirem se haveria alergias. Depois, a partir do segundo semestre de 2016, 60 pacientes com queimaduras de 2º e 3º graus em atendimento no IJF toparam participar da pesquisa. Essa penúltima etapa se encerrou em fevereiro, e os resultados foram animadores.

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"Todos eles tiveram uma cicatrização mais rápida, variando entre um e três dias", empolga-se Edmar. Parece pouco, mas isso faz uma tremenda diferença em comparação a forma como pacientes com queimaduras são tratados pela medicina brasileira.

Tratamento mais humanizado

Todos os centros de queimados da rede pública do Brasil oferecem o mesmo tratamento  à base de sulfadiazina de prata. Ao ser internado, o queimado recebe uma camada dessa pomada na pele atingida, envolvida por gaze. A cada dois dias, o material precisa ser retirado da ferida, e o curativo é refeito. Não queira imaginar o quanto os pacientes sofrem.

"Isso causa muita dor! Para suportar, eles têm de tomar analgésicos e, em queimaduras mais graves, anestésicos. O modo como é feito aumenta a mão-de-obra dos hospitais e consequentemente os custos", diz Edmar.

Já o novo tratamento, afirma o médico, garante um processo muito mais humanizado. A pele de tilápia adere à ferida e bloqueia o contato com o meio externo, evitando contaminações. Além disso, impede a perda de líquidos e proteínas, o que causa a desidratação. "As peles animais têm a propriedade de tampão, mas nenhuma possui colágeno com a mesma quantidade. Por isso, ela acelera a recuperação, e com menos dor", explica o médico.

"A pele de tilápia adere à ferida e bloqueia o contato com o meio externo, evitando contaminações. Além de impedir a perda de líquidos e proteínas"

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No caso da queimadura de 2º grau superficial, a pele permanece na ferida até a cicatrização. Já na queimadura de 2º grau profunda, a troca do curativo é feita entre quatro e sete dias. Até mesmo após uma queimadura de 3º grau, quando é necessário enxerto de pele de outras partes do corpo do próprio paciente, a nova técnica faz efeito.

Josué Bezerra em fase avançada da recuperação. Crédito: Gabriel Marques

Porém, até chegar a essa conclusão, foi preciso vencer o medo. "Os pacientes tinham receio de colocar a pele. Eles perguntavam: 'Será que vai dar certo?' A gente também ficava preocupado", conta Edmar. O resultado era medido em sorrisos. "Ao fim, eles diziam: 'Fantástico! Se soubesse antes, não teria dúvida'".

Josué, o paciente do início do texto, chegou ao IJF num quadro tão grave que não teve como assinar o documento que autorizava sua participação na pesquisa. Por ser destro e estar com a pele do braço desmanchando-se, recorreu a esposa. Os três dias em que foi tratado com pomada não se comparam aos 17 seguintes em que recebeu pele de tilápia.

"Já no primeiro dia, eu sentia uns beliscões. Era a pele aderindo", lembra Josué. "Eu brincava com minha esposa: 'Eu sou um mutaaaante", ri.

Vinte dias depois de ser internado, ele recebia alta. Passados dois meses, Josué, agora chamado de 'Aquaman' pelos amigos, sorri de orelha a orelha. "Nem parece queimadura grave de segundo grau", diz, enquanto pede para tocar seu braço.

Registro de quando a pele de tilápia foi colocada no braço de Josué. Crédito: Josué Bezerra

Hoje, o paciente é acompanhado pelo IAQ, uma das três ONGs do tipo no país — as outras ficam em São Paulo e Goiânia. Em atividade há 10 anos, a ONG faz até 800 atendimentos a queimados por mês. Assim como Josué, todos os voluntários da pesquisa da tilápia apresentaram quadro mais satisfatório.

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"A cicatrização deles é mais perceptível", diz a fisioterapeuta Raphaela Borges. Quando o paciente queimado sai do hospital, o tratamento foca na estética, para que ele se sinta melhor psicologicamente, e na fisiologia, em busca da recuperação dos movimentos. "Eles recebem alta muito bem. De todos, o único que precisou de fisioterapia foi Josué, o caso mais grave", registra.

Muita pele disponível

O peixe tilápia é o mais produzido no Brasil, dominando 45% da piscicultura. Paraná (1º), São Paulo (2º) e Ceará (3º) são os maiores produtores. A cidade cearense de Jaguaribara liderava o ranking nacional até a seca de 2016, que quebrou parte da economia local. É de lá, do açude Castanhão, a maior barragem do país, de onde sai a pele de tilápia usada na pesquisa.

As peles que iriam para o lixo são acondicionadas em caixas térmicas e encaminhadas ao Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da UFC, onde passam por limpeza, recorte e esterilização para matar micro-organismos. Depois, recebem irradiação em São Paulo, para a morte de vírus.

Cada peixe fornece duas peles de 15 cm por 5 cm, que cobrem as duas palmas da mão. Um braço queimado exige a pele de dois peixes e meio. O dorso, do pescoço à cintura, seis peixes e meio. "Com a grande quantidade de tilápia no Brasil, esse uso na medicina é totalmente viável. Bastaria uma produção em escala industrial", afirma Edmar.

Atual estado da pele de Josué. Crédito: Gabriel Marques

Em abril, inicia-se a última etapa da pesquisa em humanos. Mais 150 pacientes serão observados no IJF e, se tudo seguir com sucesso, em junho de 2018 a equipe poderá solicitar o registro do produto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Se o Ministério da Saúde tiver interesse, a pele estará apta ao uso em centros de queimados em 2020.

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Será um ganho importante para a medicina brasileira, já que os três bancos de pele humana do país em São Paulo, Curitiba e Porto Alegre abastecem 1% da demanda. A Sociedade Brasileira de Queimaduras estima a ocorrência de 1 milhão de acidentes com queimados por ano no país, e 85% deles são de 2º grau. Como se vê, muita gente a ser beneficiada.

"Noventa e sete por cento dos pacientes com queimaduras no Brasil não têm plano de saúde e recebem o atendimento à base de pomada. O Brasil está atrasado 50 anos no tratamento de queimados na rede pública, sem uso de pele humana ou animal", diz Edmar.

A pesquisa, bancada pela Enel Energia, multinacional com atuação no Brasil, ainda não despertou o interesse do Governo Federal. Enquanto isso, segundo Edmar, a equipe já recebeu sondagens de Estados Unidos, China, Israel, Arábia Saudita e Índia. "Acredite se quiser, ainda não chegamos ao Ministério da Saúde", desabafa.

Edmar não conteve emoção ao relatar o sucesso do projeto. Crédito: Gabriel Marques

O choro interrompe a entrevista — algo inesperado para um senhor de cabelos brancos. "Tenho 60 anos, 37 deles dedicados ao tratamento de queimados. Nunca imaginei que faria parte de algo tão revolucionário", justifica, após recuperar o fôlego.

O sentimento é compartilhado pelos pacientes. "Queimadura é uma coisa terrível, uma dor insuportável. Graças a Deus que o doutor entrou na minha vida. Esse homem é um gênio!", define Josué. A ciência anda a passos largos em Fortaleza. Se depender do médico e de sua equipe, num futuro próximo pacientes queimados parecerão ter emergido das ondas.