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Rocket man

Relatório de um português em órbita

A estação espacial é uma pousada de juventude.

Sabem aquela anedota “era uma vez um português, um inglês e um francês…”? Pois é, nesta história a lista de nacionalidades é diferente, mas tem bastante mais piada. Viver numa estação espacial é exactamente igual. Antes de poder viajar até ao satélite artificial — isto porque fui seleccionado depois de a minha avó ter preenchido uns cupões quaisquer —, tive de passar por um regime de treino e de preparação específico: aclimatização ao ambiente de gravidade zero, treino sob força centrífuga, exames médicos e testes de esforço. Um pouco como as provas específicas na universidade. Estive no espaço durante três meses, numa experiência sociológica que envolveu misturar alguém com absolutamente nenhum conhecimento científico ou particularmente útil no que diz respeito a cenas espaciais, com os melhores espécimes da humanidade. E que espécimes! Um astronauta americano, Wyatt, que foi quarterback na faculdade, e parece um anúncio à depilação masculina. Um cosmonauta russo, Yuri, oriundo de uma aldeola qualquer no Cáucaso, ligeiramente racista e extremamente fedorento. E um cientista inglês, Nigel, especializado em biotecnologia, e que só ouvia easy-listening insuportável. O primeiro dia foi igualzinho ao "dia de orientação” quando fui caloiro: fiquei sentado numa câmara de descompressão durante várias horas, como um peixe dourado num aquário, observado pelos habitantes da estação através de uma escotilha, algures entre o pânico e a excitação. Depois da viagem e do terror subsequente, nem foi assim tão mau. Ao sair, exausto e tonto pela mudança de composição no ar, aqui carregado de oxigénio e francamente deficiente em monóxido de carbono quando comparado com o meu bairro, flutuei numa visita guiada que deu uma nova dimensão à palavra monotonia: terminais de computador, cabos de aço para os spacewalks, câmaras estanques para descontaminação e uma dispensa branca, com comidas brancas em tubos brancos. O sonho de qualquer suicida. Depois de estar lá quatro noites, começou a sentir-se uma vibe algo estranha na estação. É claro que viver sem gravidade, a comer pastilhas e pastas com sabores a carne, peixe e cereais, e ter o espaço equivalente a um armário de limpeza para me movimentar não ajudou a minha causa. E, ao mesmo tempo, cheguei a uma conclusão interessante: seja qual for o nosso nível de inteligência, perícia ou responsabilidade, somos, basicamente, as mesmas pessoas que éramos na universidade quando partilhávamos um apartamento podre e pequeno: porcos, mal-educados e pouco civilizados. O russo cheirava como se alguém cozinhasse goulash a partir de meias usadas por futebolistas, o americano passava os dias a ver pornografia extrema na internet (à vista de todos) e o inglês cortava as unhas dos pés com a mesma displicência com que tomaria um chá — com gravidade zero, podem imaginar a névoa de bedum que nos rodeava. A Terra não era tanto um bonito berlinde azul, como uma ilusão longínqua de liberdade e de espaço, que parecia tão longe como as raparigas bonitas e sexualmente activas que me rejeitaram nos tempos de estudante. Com uma fúria assassina próxima do Shining, flutuei pela estação em busca de algo que me ajudasse a esquecer os meus companheiros desta pousada da juventude orbital, esses sebáceos que por acaso representam a vanguarda da ciência terrestre. Certa noite, em que umas tréguas nos levaram a juntarmo-nos todos em volta da mesma mesa, consegui conhecer os meus companheiros um pouco melhor: Yuri queria casar com uma americana, Wyatt queria viver na Costa Rica e Nigel queria, evidentemente, abrir um bar de karaoke em Albufeira. Depois de ingerir algumas coisas que se pareciam com esponjas e que sabiam a folhas de papel mergulhadas em acetona, ficámos com uma bebedeira espacial e jogámos “golfe gravidade zero” com embalagens de gelatina usadas. Houve momentos de verdadeira camaradagem e a nossa pequena cápsula-de-estar tornou-se numa espécie de albergue espanhol — menos a intimidade física e a banda sonora irritante. Claro que, como todas as noites Erasmus, na Terra ou no espaço sideral, alguém acabou a vomitar… Apesar da proibição pelas agências espaciais de álcool a bordo, o cosmonauta russo apresentou-nos uma garrafa de vodka caseira que tinha o poder de cegar humanos se consumida em excesso e avisou-nos de que tinha injectado a bebida nas nossas comidas, para relaxar a onda. As baixas da nossa noite de convívio não tardaram. O Nigel vomitou para cima de mim e tudo, só que a ausência de gravidade salvou-me o pêlo. É óbvio que, depois disso, o ambiente esmoreceu, já que ninguém gosta de conversar com vómito a flutuar pela sala. Quando se começou a cantar o “Rocket Man”, eram horas de flutuar para a cama. Nos dias que se seguiram a esta festarola, as relações a bordo tornaram-se um pouco frias, lembrando-me mais uma vez o ambiente de uma casa onde toda a gente já comeu toda a gente, e se espera que apareça um apartamento mais barato para se fazer a mudança discreta a meio da noite. Mas na estação espacial não há classificados e as pessoas com quem partilhaste vómito e cuecas sujas continuam a trabalhar e a viver ao teu lado. E assim, limitei-me a observar e a documentar as tarefas diárias dos meus companheiros de cela: colheita de partículas do exterior e respectiva observação em pelo menos dez microscópios diferentes, cálculos intermináveis de posicionamento da estação, comparação de gráficos de condições atmosféricas na Terra, observação telescópica de fenómenos climatéricos em Vénus e Marte (por alguma razão, Mercúrio era desprezado), exercício físico em grupo e briefings simultâneos das respectivas agências espaciais responsáveis por cada um dos corajosos elementos da tripulação. Numa das últimas noites, antes de descer de novo à Terra, com a realidade de mais horas preso na câmara de descompressão e do horror da entrada na atmosfera a mil quilómetros por hora, acedi ao meu email no computador do astronauta americano, e acabei enfeitiçado por imagens quebradas de uma terra que nunca conheci, em todos os anos em que a habitei. NOTA: Caso estejam na dúvida, este artigo é uma ficção. Talvez um dia seja verdade. Ilustrações por Zé Cardoso e Eduardo Barbosa