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As Cicatrizes da Violência Policial nos Protestos de 2013 Assombram o Início da Copa do Mundo

Quando a Copa do Mundo terminar e esses milhares de visitantes deixarem o Brasil, questões sobre a violência policial – assim como as cicatrizes de centenas de manifestantes feridos no último ano – permanecerão.

Um ano se passou desde que o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva perdeu o olho esquerdo. No dia 13 de junho – a noite conhecida como “A Batalha da Consolação”, mas que foi mais um massacre – Silva estava documentando o quarto de uma série de protestos que paralisaram o coração de São Paulo. Os manifestantes bloquearam avenidas e estações do metrô, exigindo que as autoridades revogassem o aumento das passagens de ônibus.

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A mídia rotulou os protestos como um estorvo, a opinião pública estava se voltando contra eles e o governador de São Paulo, que estava viajando pela França, ordenou que a polícia respondesse com força.

Enquanto 20 mil manifestantes marchavam pelas ruas da cidade na noite de quinta-feira, a polícia militar os confrontou com força. Policiais usando equipamento da tropa de choque abordaram um grupo de manifestantes na Avenida Maria Antônia logo depois que o sol se pôs. Eles não deram nenhum aviso, não fizeram nenhuma declaração.

Bombas de efeito moral e cartuchos de gás lacrimogêneo começaram a cair do céu e o ar se tornou irrespirável. As pessoas começaram a gritar enquanto a cena – uma mistura pacífica de batucada e palavras de ordem até aquele momento – se tornou o puro caos.

Nesse momento, uma bala de borracha perfurou o olho esquerdo de Silva enquanto ele tentava escapar. Ele passou dois dias no hospital e fez várias cirurgias, mas os médicos não conseguiram salvar seu olho.

“Ainda estou tentando entender e aceitar a perda da minha visão”, disse Silva à VICE. “Não quero que ninguém mais passe pelo que passei.”

Ele foi um dos 837 brasileiros que relataram ferimentos nos protestos do ano passado.

Quase 700 protestos aconteceram no Brasil em 2013. Uma nova geração de manifestantes está amadurecendo e levando a política para as ruas. O que começou como uma manifestação contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo evoluiu rapidamente para uma expressão de descontentamento contra a desigualdade social, serviços públicos insuficientes, corrupção policial e gastos excessivos na construção da infraestrutura para a Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016 — apesar de o número de manifestantes nesses protestos estar diminuindo drasticamente.

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As autoridades apontam os protestos como prova de que vivemos em uma democracia saudável, em que a liberdade de expressão e de reunião – algo que a ditadura militar negou aos cidadãos entre 1964 e 1985 – prosperam. Mas se os protestos de 2013 destacaram o espírito democrático e as exigências de uma classe média emergente, eles também expuseram um aparato policial brutal que não evoluiu com o tempo.

A polícia militar talvez seja o legado mais vivo da ditadura; os protestos revelaram a capacidade do grupo para a violência a uma faixa da população que nunca tinha experimentado essa realidade antes.

“Vimos um grande aumento na repressão dos protestos no último ano”, disse Daniela Skromovo, defensora pública do estado de São Paulo, à VICE. “Os protestos estão juntando mais gente do que nunca. Isso vem revelando padrões de abuso policial que, até agora, nunca tinham visado manifestantes.”

Estima-se que 2.608 manifestantes, jornalistas e pedestres foram detidos arbitrariamente ou presos em 2013 – muitos sob acusações falsas e improváveis, como formação de quadrilha. Todos foram liberados depois que a polícia civil, que supervisiona as investigações criminais no Brasil, determinou que as acusações eram inexequíveis. Apenas uma pessoa foi condenada até agora por uma acusação criminal relacionada aos protestos do ano passado.

“Em 2013, vimos que a polícia militar simplesmente não estava treinada para lidar com movimentos sociais”, disse Camila Marques, advogada que trabalha para a Article 19, uma organização internacional de defesa dos direitos humanos, que recentemente divulgou um extenso relatório sobre a polícia e as manifestações no Brasil. “Eles são treinados para agir como membros do exército, mas acabam tratando os civis como se ainda estivéssemos vivendo sob uma ditadura, como se os direitos dessas pessoas tivessem sido suspensos.”

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Um estudo recente revelou que 64% dos entrevistados na polícia civil e militar admitiram não estar adequadamente treinados para lidar com protestos antes das manifestações de 2013.

Também há várias evidências de que os policiais não estão treinados de maneira adequada para usar armas “não letais”, empregadas prontamente contra manifestantes pacíficos. De acordo com o protocolo internacional, a bala de borracha que feriu Silva só poderia ser da cintura para baixo.

Durante uma audiência sobre a violência policial brasileira realizada em março na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, uma coalizão de organizações civis testemunhou que confrontos com as forças de segurança durante os protestos de 2013 resultaram em 23 mortes.

A polícia militar mostra seu novo “exoesqueleto” para a Copa do Mundo. (Foto por Eva Hershaw.)

Dois manifestantes morreram em junho passado por inalar gás lacrimogêneo em excesso e outras nove pessoas foram mortas durante operações da polícia contra um protesto no Rio de Janeiro. No mês seguinte, um garoto de 12 anos foi baleado e morto durante um protesto em Minas Gerais. Mesmo idosos foram pegos na repressão: uma mulher de 66 anos e um homem de 81 foram mortos nas mãos da polícia.

Silva e advogados da defensoria pública fizeram repetidos apelos a Fernando Grella Viera, da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, exigindo resposta para as centenas de casos de abuso policial e má conduta documentados durante as Jornadas de Junho. Eles ainda não receberam uma resposta satisfatória e nenhum policial envolvido nesses casos foi formalmente acusado ou removido do posto.

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“Onde estão esses casos agora?”, perguntou a defensora Skmorov. “Eles estão numa gaveta em algum lugar. É ali que eles vão ficar e nada vai ser feito. Impunidade continua sendo um grande problema de nosso sistema de justiça.”

Para muitos, o aspecto mais perturbador da violência policial no Brasil é que, na maioria dos casos, ela é autorizada. As ordens contra manifestantes vêm de cima, de autoridades que legitimam e toleram a repressão.

“Eles determinaram que o uso da força no dia 13 de junho foi necessário”, disse Silva. “Isso foi muito difícil de ouvir. Eles não passaram pelo que passei. Eles não passaram duas noites dopados de morfina num hospital. Eles não perderam um olho.”

Agora, confrontos violentos entre manifestantes e a polícia já se tornaram rotina.

Vinícius Duarte, um estudante de química que participava de protestos contra a Copa em janeiro, teve o maxilar e o nariz quebrados e perdeu três dentes ao ser espancado pela polícia militar. Um rapaz de 22 anos chamado Fabrício Proteus Chaves levou dois tiros durante uma manifestação em fevereiro, por ter supostamente atacado policiais militares. No dia 15 de maio, a polícia militar dispersou um protesto pacífico com bombas de efeito moral que feriram cinco pessoas e mandaram três para o hospital com fraturas.

Na semana passada, policiais usaram balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo contra funcionários do metrô em greve em duas ocasiões.

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Um relatório recente da Anistia Internacional afirma que esse treinamento inadequado e falta de prestação de contas por parte da polícia no Brasil “levantam sérias preocupações de que o direito de protesto seja severamente minado durante a Copa do Mundo. Em algumas cidades, o país planeja confiar no uso das forças militares convencionais, cujos registros de desempenho de funções policiais são pobres, o que aumenta essas preocupações”.

Com milhares de pessoas chegando ao país para o evento, cerca de 170 mil policiais e pessoal do exército foram mobilizados para as 12 cidades-sede. O governo anunciou, no começo do ano, que estava comprando aproximadamente 2.700 armas adicionais de balas de borracha. No total, o orçamento de segurança da Copa foi de cerca de dois bilhões de reais.

Em novembro, o Ministério da Justiça anunciou a criação de “tribunais especiais”, que permitirão o processo rápido daqueles que “perturbarem a ordem” durante o evento. A lei entrou em vigor em abril, mas ainda não está claro como isso vai funcionar na prática.

“Ainda estou desconfortável”, disse Silva, que lançou uma campanha para acabar com o uso de balas de borracha em protestos. “Percebi que o que aconteceu comigo poderia ter acontecido com qualquer um. Isso é parte da violência cotidiana em que vivemos.”

Cidadãos que perderam a fé na capacidade do estado para proteger a população também começaram a intervir.

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“O governo vai ferir as pessoas, mas não vai se preocupar com isso”, disse Alexandro Morgado, coordenado do Grupo de Apoio ao Protesto Popular (GAPP), à VICE. Com um grupo de 80 enfermeiros, paramédicos e bombeiros, o GAPP acompanha voluntariamente os manifestantes durante a marcha, fornecendo serviços médicos e transporte para os feridos durante manifestações.

No protesto do dia 15 de maio, foi o GAPP – e não uma ambulância – que levou três manifestantes que sofreram fraturas para o hospital. Esse é um dos muitos grupos formados desde junho passado para proteger os direitos e o bem-estar dos manifestantes.

“Estamos aqui para preencher as lacunas deixadas pelo estado”, disse Morgado.

Outro desses é o Advogados Ativistas, um grupo voluntário de advogados de São Paulo que se organizou ano passado para fornecer aconselhamento legal a manifestantes detidos.

“Em março, liberamos 230 dos 260 manifestantes detidos”, disse Igor Silva, voluntário do Advogados Ativistas, referindo-se às prisões em massa de manifestantes em fevereiro. “Eles tentam cercá-los e fazer uma única acusação para todos.”

Rafael Custódio, assessor jurídico do grupo de direitos humanos Conectas, disse à VICE que vê os protestos crescentes como um degrau.

“Corremos o risco que esse debate sobre a violência policial fique apenas numa discussão sobre a violência usada contra manifestantes”, acrescentou Custódio. “Como eles dizem, na periferia as balas não são de borracha. Precisamos falar sobre questões maiores também, como a ideologia dessa polícia e a separação das forças militar e policial no Brasil.”

Mês que vem, quando a Copa do Mundo terminar e esses milhares de visitantes deixarem o Brasil, essas questões – assim como as cicatrizes de centenas de manifestantes feridos no último ano – permanecerão.

Siga a Eva Hershaw no Twitter: @beets4eva

Foto via Flickr.

Tradução: Marina Schnoor