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O Culto que Sequestra Cristãos e que Está em Guerra com o Governo Chinês

O grupo Raio do Oriente se infiltra nos cultos cristãos domiciliares secretos da China – igrejas de verdade são proibidas no país – e se integra às comunidades, antes de supostamente seduzir, sequestrar, subornar ou chantagear os membros.
Matt Shea
London, GB

A Jesus, Raio Deng (esquerda), e o fundador do Raio do Oriente, Zhao Weishan.

Em certos aspectos, o Raio do Oriente é hilário. O culto acredita que Jesus Cristo reencarnou numa chinesa de meia-idade chamada Raio Deng, que hoje vive em Chinatown, Nova York. Depois vêm as tentativas de evangelização bizarras do grupo nas comunidades rurais chinesas – coisas como aparições repentinas de cobras vivas pintadas com trechos das escrituras e bastões fluorescentes misteriosos dentro das casas das pessoas, coisas que, de alguma maneira (realmente não sei como), sinalizam a segunda vinda de Cristo.

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Líderes de grupos cristãos alertam seus membros contra os métodos de “flerte” do culto, pois as mulheres do Raio do Oriente seduzem os que creem em Cristo a fim de atraí-los para o caminho de sua Jesus mulher. Por último, temos o nome do grupo, que parece mais marca de energético ou o nome de banda cover do AC/DC. Talvez por isso, hoje em dia eles usem mais o pseudônimo “Igreja do Deus Todo-Poderoso”.

Mas para suas vítimas o Raio do Oriente não é piada. Na verdade, para alguns eles são realmente assustadores. O grupo opera se infiltrando nos cultos cristãos domiciliares secretos da China – igrejas de verdade são proibidas no país – e se integrando às comunidades, antes de supostamente seduzir, sequestrar, subornar ou chantagear os membros para que eles se juntem ao culto. Altamente organizado e composto por mais de um milhão de membros, de acordo com algumas estimativas, o Raio do Oriente treina seus líderes para ganhar a confiança das vítimas por meses antes de dar o primeiro golpe.

Claro que essas atividades não passaram despercebidas pelo Partido Comunista da China (PCC), e os dois lados estão engajados atualmente numa luta discreta até a morte.

Itens que os membros do Raio do Oriente escondem nas casas das pessoas como parte de seu esquema de evangelização.

Um dos dogmas do Raio do Oriente é que o Partido Comunista da China é a encarnação de Satanás – eles chamam o partido de “o Grande Dragão Vermelho” – e que sua ascensão ao poder significa o fim dos tempos. Pode até parecer o enredo de um videogame, mas num país onde a perseguição de cristãos cresce ainda hoje e líderes religiosos não registrados são presos ou “reeducados através do trabalho” pelo governo, talvez não seja surpresa que essa retórica religiosa esteja se tornado tão militante.

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Esse grupo religioso começou nos anos 90 quando seu fundador, Zhao Weishan, conheceu uma mulher em Zhengzhou, província de Henan. A mulher se apresentou como “Raio Deng” e escreveu um livro, O Raio do Oriente, que estilizava a narrativa cristã em termos chineses. Não se sabe se os dois bolaram o plano juntos ou se Zhao está se aproveitando de Deng, mas o fundador a declarou a reencarnação de Cristo e começou a arrebanhar seguidores como seu líder espiritual.

A dupla atualmente está “fugindo da perseguição religiosa” em Chinatown, Nova York, onde continuam a espalhar sua religião livre do bafo da morte do Grande Dragão Vermelho. Panfletos do Raio do Oriente já apareceram em São Francisco, que tem uma grande população de imigrantes chineses.

Enquanto o culto continua, em grande parte, secreto em seu país, o grupo fez uma breve aparição pública no final de 2012, realizando protestos pela China coincidindo com o “Apocalipse Maia”. Wei Guangzheng, um design de interiores de 30 anos da província de Hebei, me contou algumas histórias peculiares sobre o grupo cristão, que começou a dar as caras em seu bairro por volta dessa época, em 2012.

“A maioria dos membros vive nas áreas rurais, não teve educação e está desempregada”, ele disse. “Elas dançam nuas em seus porões – todas as mulheres –  e acendem fogueiras, como se fosse uma festa. Alguns dias antes do 'apocalipse' de 2012, um pregador veio à nossa casa quando minha mãe estava sozinha, dizendo que o fim do mundo estava próximo e que ela precisava se juntar ao Raio do Oriente para ser salva. Minha mãe respondeu: 'Combinei de jogar mahjong com minhas amigas e preciso ir. Não tenho tempo para acreditar em Deus agora!' Boa, mãe.”

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Membros do Raio do Oriente protestam contra o Partido Comunista da China em 21 de dezembro de 2012, coincidindo com o “Apocalipse Maia”.

O governo vem intensificando os esforços para desmantelar a seita desde os protestos de dezembro de 2012, às vezes submetendo membros de cultos domésticos a interrogatórios violentos, numa tentativa de encontrar membros do Raio do Oriente.

Dennis Balcombe, um conhecido pastor norte-americano que prega na China, foi libertado da prisão domiciliar alguns meses depois de ter sido detido na ofensiva do governo a congregações religiosas maiores. Depois de determinar que ele não era membro do Raio do Oriente, as autoridades o liberaram. Falei com Dennis sobre suas experiências como alvo tanto do governo como do culto.

“Fui detido pela Bureau de Assuntos Religiosos depois que um funcionário de um hotel denunciou uma de nossas reuniões”, ele me relatou. “Eles mandaram vários policiais para saber se eu era do Raio do Oriente, mas concluíram que não estávamos com eles e nos deixaram ir. A paranoia com o Raio do Oriente vem crescendo desde dezembro de 2012. Eles são extremamente violentos e usam sexo para converter as pessoas. Ouvi histórias de cristãos sendo queimados, espancados e mandados matar os filhos. Quando eles te sequestram, eles geralmente não te deixam sair por seis meses, e o tempo todo eles tentam fazer uma lavagem cerebral em você.”

Uma representação da Segunda Vinda de Cristo (dessa vez como mulher e na China) da Bíblia do Raio do Oriente.

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Não foi possível confirmar essas afirmações, mas Dennis frisa que o Raio do Oriente não está preocupado apenas com religião, mas em lucrar com seus convertidos. “Eles são como uma máfia”, me confessou. “Eles extorquiram quase 100 milhões de renminbis (R$ 37 milhões) de gente pobre das zonas rurais. Eles são extremamente bem treinados. É como ter um criminoso infiltrado na sua igreja. Líderes de cultos domiciliares cristãos já receberam propostas de até 150.000 renminbis (R$ 56 mil) para trazer seus seguidores para o culto. O governo acredita que eles estão recebendo financiamento de fora da China.”

Segundo o pastor norte-americano, o culto, treinando seus líderes por Skype, conseguiu se espalhar por toda a Ásia, estabelecer uma base em Hong Kong e se tornou “mais agressivo que nunca”. Ele mesmo já tinha sido abordado por quatro membros do Raio do Oriente, que tentaram convertê-lo durante uma conferência religiosa em Hong Kong. Quando eles se recusaram a ir embora, Dennis pegou sua câmera para tentar tirar uma foto para mostrar às autoridades, mas foi atacado fisicamente pelas mulheres do grupo. Antes que elas pudessem quebrar a câmera, ele conseguiu bater uma foto e foi embora.

O pastor norte-americano Dennis Balcombe disse que estas mulheres são seguidoras do Raio do Oriente e que elas o atacaram numa conferência em Hong Kong.

Fora das comunidades chinesas cristãs, as atividades violentas do culto raramente são reportadas. Mas em círculos menores o Raio do Oriente é altamente temido. Contatei o diretor de um dos maiores ministérios da Ásia, mas ele se recusou a falar comigo por medo de ser alvo da seita. Ele afirmou que “muitos cristãos gostariam de comentar sobre isso”, mas que não iriam aceitar ser entrevistados, porque “líderes de cultos domésticos costumam ter que se esconder da polícia”.

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Entrei em contato com vários desertores do culto, mas eles também se recusaram a comentar, suspeitando que eu pudesse estar ligado ao Raio do Oriente ou ao governo. Quanto mais eu cavava, mais percebia que a paranoia deles fazia sentido.

Em 2002, o Raio do Oriente sequestrou 34 líderes de uma rede cristã underground, o China Gospel Fellowship, e os manteve presos por dois meses. Consegui falar com a missionária norte-americana Hope Flinchbaugh, que conheceu os líderes sequestrados quando esteve na China. De acordo com Flinchbaugh, mulheres do culto seduziram os pastores capturados, fazendo então fotos comprometedoras para chantageá-los se eles resistissem à conversão.

Um pastor, segundo ela, foi drogado e amarrado enquanto duas mulheres sussurravam a doutrina do culto em seus ouvidos durante a noite toda. Outros tiveram “pernas quebradas e orelhas cortadas”. Quando uma das vítimas finalmente escapou e informou a polícia, todos os membros da seita religiosa desapareceram sem deixar vestígios.

Recentemente, o culto parece estar tentando se distanciar de sua reputação violenta e partir para uma abordagem de relações públicas mais positiva. Expandindo para fora do continente chinês, onde não precisa agir em segredo, o Raio do Oriente começou a usar um rosto mais amigável, abrindo escritórios e evangelizando através de um novo site chamativo, que rotula as histórias de sequestro e horror como propaganda. “O governo do Grande Dragão Vermelho”, acusa o site, “usou todo o tipo de meios cruéis para nos reprimir de forma sangrenta, fazendo o país se encher de rumores. O continente da China se tornou um mundo de terror.” O mesmo site, no entanto, também tem uma seção intitulada “Casos Típicos de Punição por Resistir Ao Deus Todo-Poderoso”. Uma das histórias contadas é a de Li X, uma mulher de 55 anos da cidade de Ruzhou, cuja vagina “sangrava e descarregava carne podre” depois que ela impediu que o Raio do Oriente pregasse em seu vilarejo. “No momento em que as pessoas colocavam o corpo dela no caixão”, a história continua, “um raio caiu do céu, brilhando na frente do funeral dela como um dragão de fogo”.

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Um homem que foi sequestrado pelo Raio do Oriente. O topo de sua orelha foi cortado: o mesmo método de tortura supostamente usado pelo culto nos 34 líderes da China Gospel Fellowship em 2002.

Contatei os escritórios deles em Hong Kong e em Macau. Os dois negaram todas as acusações contra o culto e se distanciaram do grupo do continente. Um porta-voz de Macau explicou: “Ouvi essas histórias, mas não acredito que elas tenham nada a ver com as pessoas da nossa igreja. Nossa Igreja se centra em crenças de amor. É por isso que não acho que alguém do nosso grupo machucaria outra pessoa. Você precisa ver de onde essas histórias estão vindo: do governo. E o que é o governo da China neste momento? Eles não dizem necessariamente a verdade às pessoas. Nossas crenças são sobre bondade para com os outros, então eles não poderiam machucar ninguém”.

Um membro da Igreja de Hong Kong disse: “Isso é na China, estamos em Hong Kong, então não ouvimos histórias como essas. Mas são só histórias e podem ter vindo de qualquer lugar… São boatos, então não posso comentar sobre elas”.

Considerando que o Raio do Oriente é basicamente um Marlo Stanfield do jogo de messias na China – realizando reuniões secretas, usando nomes em código e celulares registrados com identidades falsas, resistindo a interrogatórios da polícia, se espalhando ao primeiro sinal de presença policial, etc. –, não é de se estranhar o fracasso do governo em desmantelar o grupo. Outras táticas de evasão estão detalhadas num documento intitulado “Medidas Contra os Espiões do Grande Dragão Vermelho”.

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Mas o que realmente querem os “espiões” do Grande Dragão Vermelho? Em 2002, um documento secreto do governo chinês vazou para o congresso norte-americano através de uma ONG cristã. Ele continha um discurso de Bi Ronsheng, vice-diretor da seção de religião da Bureau de Segurança Pública da província de Heilongjiang. Nele, o oficial chinês revelava a extensão da preocupação do governo com o Raio do Oriente e uma necessidade de “trabalhar mais e falar menos para esmagar o culto silenciosamente”.

Ele admitia que “nosso trabalho de inteligência não tocou a fundo o cerne da organização a ponto de avançarmos, nos colocando na defensiva”, preocupando-se que isso fosse “perturbar definitivamente as pessoas e ameaçar seriamente o domínio do Partido”.

Bi Ronsheng defendia a necessidade de “melhorar a construção de forças secretas e operações para plantar agentes” e enfatizava que “julgamento aberto não seria apropriado nesse caso”. Em outro momento, chegava até a expressar o medo de que o Raio do Oriente tivesse começado a “se infiltrar nos círculos internos do Partido”.

A Bíblia do Raio do Oriente (à direita).

O Partido Comunista da China tem razões históricas para temer movimentos apocalípticos – a Rebelião de Taiping no século 19 causou a morte de mais de 20 milhões de pessoas –, mas a questão não é assim tão simples. O Raio do Oriente pode ser culpado de tortura, sequestro, manipulação e extorsão em grande escala – e, em alguns casos, até de homicídio. Mas o PCC também é.

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Quando a China decidiu que o movimento espiritual Falun Gong era um escape perigoso para o descontentamento social em 1999, o governo começou uma grande campanha contra eles. Usando forças extrajudiciais, ele até hoje prende praticantes e os sujeita a conversão ideológica, trabalho forçado, tortura física que às vezes leva à morte e, supostamente, doação involuntária de órgãos.

Comparado ao pacífico Falun Gong, o Raio do Oriente é muito mais cruel e fechado. Mas considerando que a primeira organização foi quase que erradicada, essas características podem ser a principal força da segunda – força que eles precisam num país onde a perseguição aos cristãos aumentou em 125% apenas em 2012.

Olhando sob certa luz, com sua enigmática Jesus mulher e um evangelho dirigido contra o Grande Dragão Vermelho do PCC, o Raio do Oriente está lutando contra um governo igualmente sombrio e violento. Mesmo que isso não desculpe suas ações ou sua doutrina absurda, isso realmente complica a questão; até que a China pare de tentar controlar práticas religiosas, é muito provável que o governo continue a antagonizar uma já volátil população de crentes. Francamente, o PCC faria bem em ouvir o antigo ditado: “quando as pessoas param de acreditar em Deus, elas não acreditam em nada –  elas acreditam em qualquer coisa”.

Todas as imagens são de um vídeo distribuído pela Bureau de Segurança Pública aos pastores cristãos na China, para alertá-los sobre o Raio do Oriente. Vídeo cortesia do pastor Dennis Balcombe.

Tradução do chinês e informações adicionais por Liu Cheng e Jack Berry.

Siga o Matt no Twitter: @Matt_A_Shea

Tradução: Marina Schnoor