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Ron Athey Literalmente Sangra Por Sua Arte

O Ron Athey não é um cara simples. Sempre desafiador, sempre underground, seu trabalho foi pesadamente influenciado pela infância num lar pentecostal e por ter vivido os últimos 28 anos com o vírus HIV.

Solar Anus (2006) na Hayward Gallery, em Londres. Foto por Regis Hertich. 

Não é fácil entender por que alguém ia querer enfiar ganchos de metal no escalpo, infundir o escroto em solução salina e convidar pessoas para assistir a tudo. Mas Ron Athey não é um cara simples.

Nos últimos 20 anos, o artista experimental já foi chamado de masoquista e sensacionalista por sua prática extrema, um tipo de performance artística queer que lida com temas como trauma, ritual e resistência através da mutilação do corpo. Sempre desafiador, sempre underground, seu trabalho foi pesadamente influenciado pela infância num lar pentecostal e por ter vivido os últimos 28 anos com o vírus HIV.

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Pleading in the Blood, o livro sobre a vida e o trabalho de Ron, apresenta contribuições de gente como Anthony Hegarty, Bruce LaBruce e Lydia Lunch. Quando ele me convidou para conversar sobre isso em seu estúdio no norte de Londres, fiquei imaginando se estava prestes a visitar uma câmara de tortura. Em vez disso, encontrei um apartamento arrumado, com uma estante invejável de literatura queer e um cara com um campo de conhecimento correspondente.

Conversar com o Ron me fez ter certeza de que ele não cria seus trabalhos para o público e absolutamente não se tortura para ganhar a atenção da imprensa. Ele está trabalhando através de sua própria experiência - a experiência de ser o sobrevivente de uma epidemia e não entender muito bem por que continua vivo.

Martyrs & Saints(foto por Elyse Regehr) e Premature Ejaculation, 1981, com Rozz Williams (foto cortesia do artista). 

VICE: Seu trabalho frequentemente envolve algum tipo de automutilação. Você pode explicar o tipo de coisa que você faz?
Ron Athey: Bom, num trabalho mais antigo chamado St. Sebastian, que ainda refaço, eu faço flechas de agulhas médicas muito longas e insiro o metal na minha cabeça, o que causa muito sangramento. Então isso é meio que uma performance de sangria. Algumas performances mais longas dos anos 90, como Torture Trilogy, incluem escarificação, ganchos na pele, branding, penetração anal, grampeador cirúrgico - toda uma palheta de coisas, e algumas delas eu ainda uso. Acho que estou sempre brincando com sangue ou fluídos corporais no meu trabalho.

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Sou meio sensível para coisas assim e provavelmente ia desmaiar se visse isso ao vivo. Seu público costuma ficar horrorizado?
Acho que é mais difícil assistir em vídeo, porque você perde o contexto e o ritmo da peça. Isso não é só sangue e gore, mas as pessoas têm diferentes limites sobre o corpo; então, sim, alguns desmaios acontecem durante minhas apresentações - pessoas que não se achavam particularmente sensíveis. Há coisas que algumas pessoas não suportam da proximidade de uma performance íntima [risos].

Você se diverte com essas reações?
Eu não noto. Acho que isso me surpreende, porque não sou uma dessas pessoas. Eu queria ser médico de pronto-socorro.

St. Sebastian, 1999. Still do vídeo via YouTube

Você tem sido descrito como "masoquista" pela mídia. O que você acha disso?
Trabalhei para o LA Weekly e para o Village Voice por muito tempo, então tenho uma certa experiência. Eu sei como uma redação funciona: manchetes exploradoras ou [o fato de se] precisar escrever uma manchete que deve chamar a atenção, mesmo que isso faça você se encolher ou desejar nunca ter usado tal palavra. Então mesmo jornalistas sérios - sabe, pessoas que respeito - vão falar sobre a ação física [no trabalho], mas acho que você começa a ver as outras camadas com o tempo.

Mas você está tentando jogar um pouco com os limites do choque e do horror, não? Parece que seu trabalho tem algo a ver com o olhar - como se você estivesse desafiando as pessoas a não desviar os olhos.
Para mim, era ativismo ser quem eu sou, e para representar isso numa performance é preciso alcançar uma hiper-realidade. Então, de certa maneira, isso é algo muito honesto e, de outra, muito manipulativo. No começo, muitos símbolos eram didáticos da iconografia do HIV; mais tarde, às vezes eles não significavam nada, ou uma performance de sucesso é apenas aquela em que eu tenho algum tipo de transformação. Por exemplo: na série Self Obliteration, com a peruca loira e o vidro, essas coisas não significam nada, e as agulhas escondidas embaixo da peruca são uma espécie de disfarce que tem a ver com chegar aos 50.

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Self Obliteration I & IIem Liubliana, Eslovênia, 2011. Foto por Miha Fras. 

Seus pais eram pentecostais devotos - como você saiu disso para esse ambiente de performance queer? Você falou com eles de novo depois que saiu de casa?
Não. Com esses, não. Apenas esperei eles morrerem, um de cada vez. Meu primeiro namorado, Ros, tinha uma banda de rock chamada Christian Death. Isso foi meio que minha entrada para essa cena: tomar ácido, ler Patti Smith… Imagine ser um adolescente da era pré-internet, trancado em casa, no subúrbio; você tem uma ideia muito limitada da história do mundo. Eu tive que ler de trás para frente, passando por Jean Genet até Charles Boudelaire, e Patty Smith apontou o caminho várias vezes em diferentes músicas.

Como a epidemia de AIDS moldou seu trabalho nos anos 80?
Sempre me refiro à AIDS, porque eu tinha uma nuvem de morte sobre mim desde 1985 até começar a confiar que o coquetel de drogas estava funcionando. Sou uma pessoa muito expressiva exteriormente, e meu trabalho absorveu facilmente as condições extremas da época - cenas reais, ativismo real, mortes reais, perdas reais - por causa de toda a pressão. Eu não estava fazendo performances de terapia ou catarse com meu trabalho, mas estava observando e tentando coisas com o fogo lambendo minha bunda, porque havia essa nuvem negra em cima da minha cabeça.

Meu trabalho sempre teve uma questão filosófica, uma tese. Acho que isso surgiu depois que sobrevivi a um apocalipse, com todo mundo morrendo rapidamente, todo mundo doente e você tendo que escolher quem visitaria no hospital prioritariamente. Foi um tempo para superar. Estamos definitivamente numa nova era agora. Você tem que se adaptar de alguma forma, parar de ter acessos de raiva porque todo mundo morreu e porque essa época foi tão sombria. Foi uma época sombria, mas toda uma outra geração surgiu disso.

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Em 1994, um jornal disse que o público tinha sido colocado em risco de contato com sangue infectado com HIV em uma de suas performances, e, mesmo não sendo o seu sangue, houve todo um clamor da mídia. O que aconteceu?
Foi um show com um público realmente entusiasta num lugar pequeno, então a lotação já estava esgotada um mês antes e tudo saiu muito bem. Aí apareceu essa história de primeira página, que sangue estava espirrando para todo lado e que as pessoas estavam correndo e tropeçando nas cadeiras. Tudo foi cuidadosamente escrito, atribuindo a história à citação de alguém do público, então não era algo realmente difamatório. Foi uma história de primeira página que se espalhou para, tipo, 200 jornais, o Weekly World News e até programas de entrevista. Tenho que admitir que isso foi algo maior que eu, maior que minha arte performática.

Fui colocado na lista negra nos EUA, e ninguém podia mostrar meu trabalho sem acabar com um escândalo pairando sobre sua cabeça. Não fiz nada além de outros trabalhos em progresso em LA, que era onde eu morava na época, ou em festivais na Europa e tentei ignorar toda a bobagem política. Agora, depois de tanto tempo, posso ver que isso provavelmente me inclinou para uma direção diferente. Foi quase como se um evento mundial tivesse acontecido para mim [risos].

Para qual direção você se inclinou?
Foi um período particularmente prolífico para mim. Comecei a me levar um pouco mais a sério. Eu não conseguia lidar com a palavra "artista" depois do meu nome sem me arrepiar. Eu não conseguia me identificar com o trabalho de mais ninguém, exceto escritores, e eu meio que me repreendi. Não sou inocente, mas também não venho da academia; dou muitas aulas inocentes como convidado, mas não ensino mais. Não consigo me imaginar indo a uma reunião de equipe.

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Incorruptible Flesh: Messianic Remains. Foto por Maneul Vason.

É difícil ganhar a vida como artista performático? Você não produz muitos trabalho tangíveis.
Há um problema estrutural com a arte performática, você não tem nada para vender. OK, há merchandising, mas isso não é considerado realmente arte - você nunca vai vender lembrancinhas para qualquer coisa significativa. No entanto, você pode ir até o outro extremo, como a Marina Abramović, em que você faz um trabalho incrível e depois toma a rota das celebridades. Mas você tem que ser pago de algum lugar. É como se houvesse a Marina e o Tin Sehgal, e aí o dinheiro acabasse.

Então deve ter sido legal arquivar tudo em Pleading in the Blood. A maioria das pessoas que contribuíram são seus amigos?
Pessoas para quem pedi ajuda. Amigos de diferentes níveis, sim. Lydia Lunch tem sido um dos meus mentores desde o final dos anos 80. Sempre foi parte da prática dela chutar a bunda de todo mundo para fazer as pessoas trabalharem. Ela é como um motivador dizendo "Comece uma porcaria de uma banda em vez de ficar só sonhando com isso". Ela sabia que eu tinha feito performances e trabalhado com bandas no começo dos anos 80, e, quando eu estava indeciso para iniciar esse projeto, ela foi fundamental.

Foi uma honra contar com citações de Genesis P-Orridge, porque o trabalho deles tem sido muito importante para mim; Throbbing Gristle, COUM Transmissions, etc. Era uma cena menor e uma época diferente, então foi fácil infiltrar todo mundo. Havia um pequeno clube punk para 400 pessoas chamado Club Lingerie em Los Angeles. Foi onde Diamanda Galás se apresentou em sua primeira turnê. Era como se todo mundo quisesse ver quem era aquela vadia que gritava [risos]. Ela entrou no salão usando um vestido de ópera de lantejoulas.

No que você está trabalhando no momento? Qual é seu trabalho mais recente?
Projetos futuros vão concentrar mais voz em êxtase, glossolalia e teatro operístico. Estou meio que me voltando à direção teatral. Então Messianic Remains - que é o trabalho que acabei de apresentar em Hackney Wick - tem algumas referências a Lucifer Rising, de Kenneth Anger, e aborda o círculo ritual como espaço de performance. Isso começa de maneira interativa, então as pessoas podem me tocar enquanto estou suspenso num estado de trauma, e a segunda parte é um texto de Nossa Senhora das Flores, de Jean Genet, e é sobre o funeral de Divine: um funeral de uma drag queen. Eu tenho fobia de ser o último gótico suburbano [risos]. Estou sempre lutando com isso.

Ron Athey apresentará sua nova performance Incorruptible Flesh: Messianic Remainsno Reino Unido no outono. A primeira monografia sobre o trabalho de Athey, Pleading in the Blood: The Art and Performance of Ron Athey, editada por Dominic Johnson, foi publicada pela Intellect Live da Intellect and Live Art Development Agency. Você pode comprar o livro aqui.

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Tradução: Marina Schnoor