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Música

Como É Ser DJ Quando se É Surdo

Robbie Wilde que não ouve desde os sete anos acredita que a frequência do som é universal e conta que seu ouvido não o faz diferente de outros DJs que escutam.

Fotos cedidas por Robbie Wilde.

Estava um pouco nervosa em entrevistar Robbie Wilde. Havia visto seu nome por aí e conhecia um pouco de seu trabalho como "aquele DJ surdo", mas o pouco que pude encontrar de informações sobre ele na internet era blábláblá manjado: um personagem "inspirador" que triunfou sobre sua "deficiência" para dominar o poder e a beleza da música. Não que isso seja culpa de Wilde — talvez por curiosidade genuína ou mentalmente danificadas por Adorável Professor, gente com audição normal não resista a um surdo mostrando o mais vago interesse em música, então dá pra imaginar o frenesi clichêzento em torno de Wilde fazer disso sua carreira.

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Ainda assim, li diversas menções a como Wilde falava "normal" e não encontrei nenhuma evidência de que ele sabia linguagem de sinais. E se eu via a surdez como parte da minha identidade cultural, algo que enriquecesse minha visão de mundo, como se Wilde realmente a percebesse como um defeito a ser superado no caminho para se criar música? E como eu e ele — dois surdos — nos comunicaríamos se não tínhamos como nos ouvir e ele não sabia falar linguagem de sinais?

No final das contas, nos falamos no mesmo inglês que eu gostaria de falar todos os dias: com paciência em repetir coisas um para o outro sem testes do tipo "consegue me entender se fizer isso? E isso?" e acima de tudo, sem aquele elogio meia-sola terrível de "Ah, mas você fala tão bem!". Em nossa mesa no canto de um barzinho coreano em Nova York, mesmo que por alguns instantes, Wilde e eu reconfiguramos fala e som e surdez em um modo que eu chamaria de "novo normal". No final das contas, é isso que Wilde tem feito com suas músicas.

VICE: Li que você se mudou muito na infância — como era com a sua família?
Robbie Wilde: Nasci no Reino Unido e meus pais são portugueses, então logo cedo fomos morar em Portugal, e então fomos para a Venezuela. Tínhamos família nos dois países e queríamos entender qual era melhor pra nós em termos de oportunidades. Daí viemos pros EUA em 1989.

Li que você perdeu a audição por volta dos sete anos de idade após uma série de infecções no ouvido. Você sabia que estava acontecendo? Foi ao médico?
Bem, fomos ao médico e tomei os remédios durante o ano, pois [as infecções] eram recorrentes. Na condição de imigrantes, não tínhamos todos os recursos e acredito que o remédio tenha acabado porque não tínhamos seguro de saúde. [Minha audição] foi danificada após isso. Não escuto nada no ouvido direito, e tenho 20% da audição no esquerdo. Mas não descobrimos isso até meus onze anos de idade — os professores me jogavam pra escanteio e tentavam me diagnosticar com déficit de atenção e hiperatividade. Por mais que talvez eu tenha um pouco de déficit de atenção também.

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Aos sete ou oito anos, você tinha ideia do que estava acontecendo?
Notei que havia algo de errado – frequentava a escola normal, e rolavam aqueles exames de audição com fones. Lembro das outras crianças me olhando e eu só levantava a mão esquerda. Como me olhavam e todos levantavam as duas mãos, comecei a levantar ela também e assim foi, mas eu não fazia ideia de onde vinha o som.

Eu costumava fingir nesses exames também!
Lembro de ouvir algo no ouvido esquerdo, sempre daquele lado e pensar É só isso? E aí minha mãe me levou no médico e fiz o exame corretamente, dentro da cabine, e me senti mais à vontade ali, com o médico e tudo sendo mais individualizado.

Então o que aconteceu na escola quando você e sua família perceberam o que estava acontecendo? Você usou aparelhos de surdez? Fez terapia de fala?
Continuei na escolar comum e não contei nada pra ninguém fora os professores. Tentávamos dar um jeito de que eu sentasse sempre na frente e à direita na sala, por mais que eu fosse uma criança e sempre quisesse ficar lá atrás. Alguns amigos sabiam – eles perceberam que ao andar à minha direita e falarem comigo, eu simplesmente não ouvia. Como minha fala soa como aquilo que consideram normal, ninguém me olhava feio. As pessoas continuavam falando comigo normalmente, sem tentar chamar a atenção nem nada – ninguém se preocupava. Nunca tratamos como se fosse grande coisa e nunca usei nenhum aparelho. Este é o meu primeiro, que passei a usar com 23 anos.

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Como você se envolveu nesse lance de ser DJ? O que você acha que te atraiu?
Sempre estive cercado por música, fossem meus amigos ou os lugares que frequentava. Creio que rolavam uns sinais aqui e ali — numa festa, um amigo que tinha uns equipos — e o que me chamou a atenção é que aquilo era como uma espécie de mecanismo para controle criativo. Minha família tinha um restaurante na minha adolescência e meu pai me deixou cuidar do som ali uma noite. E deu tão certo que ele falou: "Pode fazer toda semana, se quiser". Daí fui ao Destino's Lounge em Elizabeth, Nova Jersey, e comecei a tocar lá todas as noites, só pra aprender — sem ganhar nada, a noite toda, o que mandassem. Fui influenciado por muitos DJs de lá, caras da região que eram muito old school no sentido de saberem do que estava por trás de tudo desse negócio de ser DJ.

O fato de que algumas pessoas diziam que eu não iria muito longe por conta da minha audição só me motivou ainda mais. Estudei no Dubspot e peguei minha certificação. Quanto mais vivo isso, mais me envolvo e mais gente conheço, mais criativo e impactante posso me tornar.

Quero provar que frequências podem ser uma forma de comunicação, para todas as comunidades.

O que você faz para gerenciar as batidas, sons e frequências quando toca?
Tenho um processo. Há certas opções no computador em que as ondas são mostradas com cores. Então sei que certas cores representam certas frequências, tipo vermelho e laranja-escuro são graves; azuis-escuros são caixas e médios, e verdes geralmente são vozes. Fora que no record pool dos DJs tem um monte de intros e outros já preparados para mixagens. Então nesse caso sei quando há uma intro e a duração dela e quando entram os vocais, o gancho, onde o Drake dá uma dentro, ou sei lá. E então, pra saber o que está sendo dito, uso o Musixmatch, que sincroniza as letras.

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Eu amo o Musixmatch!
Estou tentando dar um jeito de trabalhar junto com eles porque esse lance é tipo um milagre pra mim, são como closed captions pra música. Por mais que eu curta a música como ela é pra mim, ou seja, frequências, ajuda saber o que está sendo dito. E é assim que faço: memória muscular, consistência e prática. Num bom dia, treino seis horas diárias. Acordo às 9 da manhã, levo minha filha pra escola, então toco até às 17h, busco ela e passamos um tempo juntos, e então depois que ela dorme, treino um pouco mais ou vou pesquisar. Dou duro pra entender a perspectiva do artista de certa música pra saber exatamente o que estou fazendo quando toco. É muito trabalho que ninguém nem percebe, porque DJs com audição perfeita podem usar fones e baixar uma música na hora, mas eu tenho que fazer tudo antes, porque não consigo usar fones, a coisa toda vai além de ter certeza das batidas. Minhas caixas, minhas pastas de música, são organizadas com tudo que é tipo de tag – ano, gênero, emoções ou vibe que um som passa. Com certeza erro aqui e ali, mas me dedico e tento mesmo entender a música e o clima que ela passa.

Você falou em separar as músicas por emoções — você acha que sente estas emoções da mesma maneira que quem ouve normalmente? O que a música passa para você?
Acho que é a mesma coisa. Sinto a emoção ou clima da música como todo mundo, porque frequências são isso. Não consigo ouvir as letras, mas de certa forma, os vocais viram outro instrumento e dá pra sentir as emoções por trás daquela frequência. A audição é só uma forma de avisar ao cérebro para prestar atenção em algo ao seu redor. Mas ainda pode-se entender as frequências sem ouvi-las; quando o volume está alto o bastante, você pode-se senti-las. Elas vão além da audição e passam direto pra mente, de certa forma.

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Você em algum momento se frustra pela maneira como a grande mídia o retrata, como "inspiração"?
É um papel muito importante, é legal quando conseguimos desempenhá-lo. Mas ao mesmo tempo, quero que meu trabalho vá além disso, que seja uma ponte, ao ponto de que o que faço seja normal — que se trate de talento e habilidade. O mesmo vale para atores, músicos, escritores surdos. Acho que é esse nosso trabalho agora. Mostrar que nossos ouvidos não nos fazem diferentes, temos os mesmos sentimentos, a mesma motivação. Ou que talvez porque não ouvimos, somos mais abertos a diferentes ideias, pois não nos distraímos pelo ruído do mundo exterior. Gostaria que nos respeitassem mais e não estranhassem tanto falar conosco ou se sentissem mal. Não deveria ser diferente.

Então quais os próximos planos?
Bom, em setembro vou a Detroit para abrir junto [de Forbes] para o Gin Blossoms. Mas fora isso, não sei bem o que vem por aí. Não sou eu quem decido, depende mais das pessoas. Queria que levassem mais em conta o trabalho e a criatividade, não isso de ser surdo ou não. Sinto que o status da minha audição muitas vezes impede as pessoas de se concentrarem na minha criatividade. Eu continuo dando duro e isso faz parte. Mas é mais sobre se o mundo ouve de verdade ou não. Eu continuarei fazendo barulho.

Quero provar que frequências podem ser uma forma de comunicação, para todas as comunidades. Quero ajudar a construir um panorama integrado, com liberdade de acesso para todos. Não quero construir essa ponte e colocar um pedágio nela. E digo isso para qualquer tipo de discriminação; vai além dos surdos – temos outras deficiências, classes, raças. É liberdade total.

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Tradução: Thiago "Índio" Silva