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Entretenimento

Um Novo Documentário Explora as Consequências de uma Morte Sob Custódia da Polícia na Inglaterra

O documentário 'The Hard Stop' foca na morte de dois amigos de Mark Dugan que geraram uma série de revoltas em 2011.

Screenshot dos amigos de Duggan, Kurtis Henville e Marcus Knox-Hooke, no filme The Hard Stop.

No dia 4 de agosto de 2011, Mark Duggan, 29 anos e pai de seis filhos, foi baleado duas vezes pela polícia em Tottenham, Londres. Onze policiais especialistas em armas pararam o minitáxi onde ele estava, suspeitando que ele estivesse armado.

Nenhuma arma foi encontrada com ele, mas um revólver foi achado numa meia num gramado a cerca de quatro metros do corpo. Uma manifestação pacífica em frente à delegacia de Tottenham alguns dias depois da morte deu lugar aos tumultos mais destrutivos no Reino Unido em anos, que se espalharam de Londres para todas as maiores cidades do país. A turbulência foi descrita pelo primeiro-ministro David Cameron como "criminosa, pura e simplesmente".

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Vinte e nove meses depois, no dia 8 de janeiro de 2014, um júri do Royal Courts of Justice chegou à conclusão, por uma maioria de 8 a 2, que a morte de Duggan foi legal, mesmo sem impressões digitais ou DNA dele encontrados na arma. Em março de 2015, a Independent Police Complaints Commission (IPCC) divulgou um relatório de 499 páginas sobre esse incidente inocentando a polícia no caso. Nada disso foi uma surpresa: desde 1990, o número de mortes sob custódia da polícia no Reino Unido é de mais de 1.500, embora nenhum policial tenha sido condenado por nenhuma delas. Mesmo que o chefe da Polícia Metropolitana tenha admitido recentemente que a força policial pode ser institucionalmente racista, e que as autoridades tenham assumido algumas de suas falhas anteriores (como no caso da morte de Cherry Groce, que iniciou as revoltas de Brixton em 1985), uma justiça real parece cada vez mais distante.

O novo documentário do diretor George Amponsah, The Hard Stop, foi batizado com o nome da manobra tática agressiva usada pela polícia na prisão de Duggan. O termo também sugere os efeitos cataclísmicos que o incidente teve nos amigos e na família do falecido. No decorrer do filme, Amponsah acompanha de perto os destinos de Kurtis Henville e Marcus Knox-Hooke, os dois melhores amigos de Duggan – e colegas moradores de Broadwater Farm, onde a vítima cresceu –, nos anos seguintes à sua morte. Marcus cumpriu pena depois de ser acusado de instigar os tumultos, enquanto Kurtis lutava para equilibrar sua vida familiar com a busca frustrante por um emprego, tendo de se mudar para Norwich porque lá era o único lugar onde ele conseguiu assegurar um trabalho.

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Amponsah evita o sensacionalismo em favor de uma abordagem diferente, investigando as histórias pessoais desses homens e mostrando uma grande sensibilidade como entrevistador. O diretor ressalta os testemunhos deles entrelaçando isso a imagens de arquivo (como os distúrbios em Broadwater Farm em 1985) e estatísticas perturbadoras sobre a brutalidade policial histórica no Reino Unido. Enquanto se desdobra, o filme se torna cada vez mais assombrado por fantasmas da história. Encontrei-me recentemente com o diretor e os dois protagonistas do filme (os amigos de Duggan), e tivemos uma discussão bem ampla sobre o caso.

VICE: Como a ideia do filme surgiu?
George Amponsah (GA): Eu estava numa festa de aniversário em Tottenham em 2012, onde encontrei uma líder comunitária local. Começamos a conversar sobre as revoltas, e ela disse que isso ainda estava fresco na memória das pessoas. Eu queria fazer um filme sobre as pessoas que estavam no epicentro do que aconteceu, e ela conhecia Marcus e Kurtis. Reconheci algo honesto neles, então segui meus instintos. Se você pode dizer algo sobre uma pessoa pela sua companhia, pensei: "Essa é uma chance de saber quem era Mark Duggan, de encontrar a humanidade por trás daquela foto que saiu nas manchetes de todos os jornais, a de um bandido intimidador". Três anos depois, aqui estamos.

Vocês viram uma oportunidade de reenquadrar o retrato da mídia sobre Mark? Isso deve ter machucado vocês.
Kurtis Henville (KH): Sim. Quando ele foi baleado, a mídia afirmou que ele era um bandido, que ele era um atirador. Eu conhecia meu amigo. Ele era confiante, um pouco tímido, gostava muito de garotas e amava seus filhos. Esse não era um cara que ia acordar um dia e jogar sua vida fora.

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Pensando em 2011 agora, por que vocês acham que a revolta se espalhou tanto?
Marcus Knox-Hooke (MKH): Raiva da polícia. As pessoas que vieram inicialmente eram jovens de todas as áreas. Todo mundo se identificava com o que tinha acontecido com o Mark, entende? Alguém é assassinado, você quer que haja justiça e a justiça não acontece. Anos depois, outra pessoa morre – e é a mesma coisa. Testemunhei isso desde que era criança, em 1985, de Cynthia Jarret a Joy Gardner… e isso foi na minha área. Mark provavelmente não será o último. O próximo pode ser um dos nossos filhos, e eu prometo, cara… bom… sei lá…

Essa tensão não foi resolvida, foi?
GA: É fácil ver jovens se revoltando em áreas urbanas e pensar "Do que diabos vocês estão reclamando? Vocês têm tudo de que precisam aqui". No entanto, há desigualdades sérias na sociedade. Se você é britânico, se nasceu aqui e tem um passaporte britânico – você quer um pedaço igual da torta. Se você não consegue isso, isso alimenta ressentimento e raiva, que vão se acumulando. Pode parecer que você está numa armadilha, pois o Estado, geralmente na forma da polícia, está dizendo: "Seja lá o que você fizer, é ilegal". Ou você sente que é o alvo, porque é de certa área e está usando certas roupas. Você é daqueles que são baleados pela polícia em plena luz do dia e vê os banqueiros da cidade cometendo todo tipo de crime hediondo, e eles são perdoados, tolerados e até encorajados. Isso tudo acontece num clima de escândalo às custas dos políticos, das escutas e assim por diante. As pessoas veem essas coisas. Logo, o que acontece com essa raiva? Isso continua ali.

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O filme estreia num momento de grande conscientização sobre brutalidade policial e injustiça, particularmente nos EUA, onde a lista de casos assim é deprimente e interminável: Michael Brown, Freddie Gray, Sandra Bland, Tamir Rice e assim por diante. Só que isso acontece no Reino Unido também – um policial envolvido na prisão de Sheku Bayon, que resultou na morte dele, um incidente pelo qual a mídia mostrou pouco interesse, admitiu que "odeia negros". E 509 mortes sob custódia da polícia desde 1991 envolviam minorias étnicas, refugiados e migrantes.
MKH: Eles não dão a mínima mesmo, entende? É frustrante. Uma revolta pode acontece a qualquer minuto porque as pessoas continuam putas. Você ouve as pessoas dizendo: "Se não gosta daqui, volte pro seu país. Volte pro lugar de onde os negros vêm". É essa a atitude delas. Os políticos e o resto, todos compartilham a mesma atitude.

Mark Duggan era mestiço, porém é fácil ver que ele era definido como "negro" pela mídia. Até que extensão essa situação foi definida pelo racismo?
KH: Isso está lá. No meu trabalho, eu podia ser o cara mais trabalhador de todos, mas, por causa da minha cor, eu não me encaixava – ele era branco e eu, não –, eu não era promovido. Todo dia da minha vida, sinto isso na escola, nas pessoas passando pela rua. Passo por uma mulher na rua, ela agarra sua bolsa e eu penso "Sério? Quando você olha para mim, o que você vê?". Racismo todo dia. É por isso que muitos de nós temos um chip implantado no ombro: temos sempre algo a provar para o homem branco. Por que isso? É difícil.

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MKH: É uma coisa de poder, cara. Não de raça, é poder. Se você tiver um monte de jovens brancos agindo como jovens negros, eles vão lidar com eles do mesmo jeito. "Temos a maior gangue" – é assim que a polícia vê isso. "Nós somos uma gangue, e vocês são uma gangue." Não é "Você é negro, e nós somos brancos". A polícia atirou num cara branco em Enfild outro dia.

GA: Marcus tem razão, mas, no caso de Enfield, vamos ter de descobrir pela investigação se o homem tinha uma arma e era uma ameaça real. No entanto, sabemos que Mark definitivamente não tinha uma arma nas mãos. Então por que os policiais sentiram necessidade de atirar para matar? Por que atirar duas vezes? É isso que sentimos quando vemos as estatísticas, que são desproporcionais. Quantas dessas vítimas são negras? Por que homens negros do mundo todo são desproporcionalmente vítimas de força letal nas mãos da polícia?

Fiquei impressionado com as muitas nuances do filme. Você não está tentando desculpar os piores excessos dos tumultos, embora também não aponte o dedo na cara do poder.
GA: No geral, esse não é um filme anti-establishment. Em certo sentido, ele também é dirigido para aqueles sob risco de se envolverem em criminalidade ou gangues – ou de se tornarem vítimas da violência policial. Eles vão escutar pessoas que estiveram ali, fizeram isso, com quem eles podem se identificar. É muito fácil alguém ficar em frente ao nº 10 de Downing Street e pregar, porém, para os jovens com certas origens – seja Broadwater Farm ou outro lugar –, eles vão olhar essa pessoa e falar: "Você não sabe de onde eu vim. Por que vou te escutar?". Além disso, uma das mensagens centrais do filme é "Mude a si mesmo, faça alguma coisa".

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MKH: Precisamos encontrar soluções para os nossos garotos, para que eles possam andar pelas ruas, para que eles parem de sentar numa esquina para reclamar do governo nos oprimindo. Sabemos que o governo dificulta as coisas para nós. Esse filme, e a reação a ele até agora, me mostrou que, se você coloca sua mente em alguma coisa e é sincero sobre isso, você consegue bons resultados. Vendo pessoas de todo o mundo (Usain Bolt, 50 Cent, Jay Z), eles estão fazendo o que amam, e isso é o sucesso deles. Esses garotos não reconhecem seu potencial e talento porque estão afogados na luta. Estou no processo de criar minha própria fundação, Remarkable Start, em Tottenham.

KH: No final das contas, às vezes você pode ser seu pior inimigo. Você precisa se amar, ter suas ambições, seu próprio impulso. Você precisa ter visão. Se acreditar em si mesmo, você vai chegar aonde quer. Mas, se não acreditar, ninguém vai.

E o documentário não é fatalista: Marcus se encontra com um policial para discutir as relações com a comunidade. Vocês têm esperança no futuro?
GA: Bom, a polícia e membros-chave da comunidade precisam se juntar para ter um diálogo sobre como consertar o problema, porque houve um colapso nesse relacionamento. A polícia está ali para proteger e servir; assim, é importante para ela, assim como para a comunidade, reparar essa relação, ou eventos como o de 2011 vão acontecer de novo.

The Hard Stop estreou no BFI London Film Festival no dia 17 outubro.

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Tradução: Marina Schnoor.

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