A vez que peguei carona com Muhammad Ali
Muhammad Ali no volante de sua perua em 1971, pouco depois de perder a "Luta do Século" para Joe Frazier. Foto: AP Photo/Jim Wells

FYI.

This story is over 5 years old.

Outros

A vez que peguei carona com Muhammad Ali

Ali era esse tipo de cara: abria as portas de seu trailer e ajudava quem estivesse no meio da estrada.

No início de 1971, Muhammad Ali enfrentou duas das batalhas mais duras da carreira. Uma contra Joe Frazier; a outra, contra o sistema jurídico. Em março daquele ano, Ali voltava a lutar boxe depois de ser banido do esporte por se recusar a atender a convocação para a guerra, mas perdera para Frazier por decisão unânime. Um mês depois, viria o evento principal: uma audiência na Suprema Corte que resultaria na decisão dos ministros em favor de Ali, entendendo que a instância inferior não havia justificado a recusa de conceder status de objetor de consciência ao muçulmano convertido. Para além dessas duas grandes batalhas, o homem que já era e voltaria a ser campeão naquele momento tinha bastante coisa para se manter ocupado; ele viajava pelo país para falar sobre suas crenças políticas e religiosas a quem quisesse ouvir: jornalistas, universitários e até um rapaz de 19 anos de Illinois, centro-oeste dos EUA, chamado Louis Diamond, caroneiro que de repente se viu no carro do homem mais famoso do continente americano. A VICE conversou com Diamond que hoje, aos 63 anos, é assistente social e mora em Chicago, sobre o encontro pessoal inesperado e significativo com o grande boxeador que faleceu na semana passada, quando, à época, o esportista estava a caminho da Northwestern University para dar uma palestra pouco antes da audiência na Suprema Corte. VICE: Tenho muita curiosidade de saber como foi seu encontro aleatório com Muhammad Ali.
Louis Diamond: Bom, todo domingo em Chicago, durante muitos verões, tinha bandas tocando em um parque na zona norte e as pessoas iam para lá se encontrar, tomar vinho barato e fumar baseado juntas. Às vezes, faziam panfletagem por questões políticas. O Esquadrão Vermelho da polícia da cidade, encarregado de se infiltrar e sabotar grupos de esquerda, mandava policiais usando pantalonas e camisetas novinhas para tirar foto de todo mundo que frequentava lá. Eu ainda morava com meus pais em um subúrbio próximo e, em vez de pegar o transporte público, pegava carona para andar uns 15 quilômetros. Então você estava pedindo carona para voltar para casa?
Isso, eu estava na sarjeta esperando uma carona e já fazia um tempo. Estava muito calor. Eu suava. Eu estava olhando as ondas de calor ao longe na rua e os carros passando por mim, e aí um trailer enorme começou a vir na minha direção… Lembro que pensei: Caramba, seria ótimo se essa coisa parasse para mim. E aí ele começou a reduzir a velocidade e foi reduzindo até parar. A porta abriu, entrei e tinha uns cinco ou seis caras negros bem vestidos – de camisa social, camisa pólo, alguns de terno – e um deles chegou e disse: "Oi, quer conhecer o Campeão?" O quê? Virei para olhar e lá estava o Ali estirado na cama no trailer! Lá estava o Campeão! Você era fã dele?
Eu era uma pessoa politizada, então dava muito apoio a ele e às lutas dele, e não gostei quando tiraram o título dele de forma criminosa por ter se recusado a ir para o Vietnã. Eu estava muito envolvido com questões contra a guerra, e ele era mais uma pessoa que estava sendo discriminada por suas posições políticas. Você disse isso para ele? Ele te passou alguma sabedoria?
Ele levantou, sorriu e se apresentou. Começou a me falar sobre sua filosofia de vida. Não lembro muitos detalhes, só que ele reforçou a necessidade da paz e das pessoas trabalharem juntas, e como isso é importante, sermos irmãos e irmãs e estarmos juntos na sociedade e na vida. E enquanto ele falava, o trailer foi parando e já pegou mais uma caroneira! Nossa. Você viu a pessoa surtando?
Eu ainda estava falando com o Ali quando ela subiu, e eles só a levaram uns cinco ou seis quarteirões. Quando ela desceu, eu ainda estava conversando com ele. Talvez ela nem tenha percebido que ele estava lá. Mas eu estava impressionado com a ideia de que lá estava aquele homem odiado nos EUA e não tinha ninguém que parecesse um segurança, e ele ia parando e pegando caroneiros durante a viagem em que ia dar uma palestra em um evento público… Quanto tempo vocês conversaram?
Uns cinco ou seis minutos. E aí todo mundo queria saber se eu sabia onde ficava a Triangle Fraternity no campus da Northwestern University. Eu não sabia exatamente, mas mesmo assim respondi: "Claro!" Eu já deveria estar em casa, mas sabia que meus pais não ficariam bravos quando eu contasse o motivo do meu atraso – era um negócio importante! A Northwestern é uma universidade importante de elite e classe média alta, e acho que isso talvez tenha sido um ano antes de um estudante negro ser eleito presidente do corpo discente. Então, naquela noite, o Ali ia dar uma palestra em um auditório no campus e depois outra em uma fraternidade negra. Você ficou lá para ouvir a palestra dele na Northwestern?
Não, eu tinha que ir para casa. E não achei que precisava ficar e assistir à palestra porque nada superaria a experiência pessoal que eu tinha acabado de ter. Nada conseguiria ser mais importante para mim… Mas o engraçado é que, depois, ele morou muitos anos em Chicago e se casou lá e várias pessoas que eu conheço tiveram experiências parecidas com ele – minha história com ele não foi inusitada. Naquele documentário da Kartemquin Films chamado The Trials of Muhammad Ali [Muhammad Ali – Das Lutas ao Ativismo no Brasil], alguém conta uma história sobre ter sentado no colo dele em uma festa de Halloween. Outra mulher conta que o pneu tinha furado, e o Ali parou para consertar. Então parece que ele era esse tipo de cara mesmo. Siga Michael Patrick Welch no Twitter.

Publicidade

Tradução: Aline Scátola

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.