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O que o pau pequeno e deformado de Hitler diz sobre o mal no mundo

Não é fácil demais culpar o suposto micropênis do Fuhrer pelo Terceiro Reich?
Hitler e um monumento fálico.

Segundo um livro dos historiadores Jonathan Mayo e Emma Cragie, Adolf Hitler tinha um pênis minúsculo e deformado. E só uma bola. Você sempre soube, né? Todo mundo sabia. A verdade de que o pinto do Hitler era minúsculo e meio estranho sempre esteve no fundo da sua mente. É um desses axiomas naturais que parecem embutidos na estrutura da realidade: roubar de supermercado é legal se não te pegarem, todos seus amigos te odeiam secretamente e tinha alguma coisa muito errada com a genitália do Hitler.

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Isso estava até naquela velha música de marcha do Exército Britânico: "Hitler Has Only Got One Ball". Como eles sabiam? Eles viram? Não precisava: é uma coisa óbvia. Olha como ele era um cara estranho. Aquele bigodinho é claramente um espelho. Aquele gesto besta com a mão, aqueles culotes largos feios que ele fez todo mundo usar. Sua fúria em conquistar a Europa. Isso não é coisa de um homem que tinha algo ok no meio das pernas. E é uma ideia reconfortante: gente fodida tem ideias fodidas; o mundo é um bom lugar, menos para caras de pau pequeno. E isso não é só com Hitler, claro. Todo mundo sabe – sem nenhuma prova, exceto a verdade tautológica disso – que o do Donald Trump deve ser miniatura. (O cartunista Eli Valley, por exemplo, capturou esse axioma perfeitamente.) Que tipo de pessoa sai por aí erguendo arranha-céus chamativos e coloca o próprio nome neles em letras de três metros de altura? Você não precisa de Lacan para dizer que o significante é sempre um substituto da potência de um falo ausente; é só ir pra Chicago e olhar pra cima. Essas coisas são sempre engraçadas; é o mesmo tipo de humor amargo com que você olha para algum babaca com 5 mil vezes mais dinheiro que você cruzando a cidade num Lamborghini e decide que ele precisa compensar alguma coisa. Em 2007, uma lista começou a rodar a internet com todos os rappers com quem a escritora Karrine Steffans disse ter transado. No texto, ela supostamente descrevia como era o pau de cada um. E fazia todo sentido: claro que o Big Boi do OutKast era "grande e grosso", e que o do Andre 3000 era "longo e fino". Dá para brincar do mesmo jogo com os políticos se você quiser; podemos assumir que o do Tony Blair é elegante, aerodinâmico e revoltante como um fio de macarrão, que o do George W. Bush é um cubo perfeito e que o do David Cameron tem cheiro de bacon. É um jeito estranho de humanizar esses caras. Tiramos suas pretensões universalistas, como as sátiras pornográficas da Revolução Francesa ou o republicanismo inerente no fato de que, às vezes, a Rainha precisa usar o banheiro como todo mundo. Mas, por mais engraçado que seja essa régua histórica, não é uma boa prática. Emma Cragie, autora do livro, foi obrigada a dar entrevista para o Independent esclarecendo que os registros mostram apenas que a uretra de Hitler ficava em algum lugar do corpo do pênis, não que a coisa em si fosse menor que o normal. Pelo que sabemos, podia até ser grande. Esse problema, conhecido como hipospádia, é descrito no livro como uma "condição rara", mas na verdade é relativamente comum: um em cada 300 homens são afetados – nem por isso há milhões de pessoas tramando dominar a Alemanha e depois o mundo. Essa conversa é muito sensível, mas rende um espetáculo estranho e incrível: uma escritora indicada ao Carnegie defendendo publicamente Adolf Hitler da acusação de ter pau pequeno. Queremos acreditar. Por isso, mesmo que essa afirmação não estivesse no livro, todo jornal da face da Terra deu a manchete do micropênis do Hitler. E o que essa fantasia diz sobre o mundo em que vivemos? É um negócio quase Disney. Os caras maus são maus porque são deformados; você pode identificar o vilão da história pela cicatriz na cara ou a verruga no nariz. Se o nazismo é só uma função do pau pequeno do Hitler, todas as milhares de pessoas perfeitamente normais dispostas a participar dos extermínios em massa são cortadas da foto. (E isso é o entendimento do Terceiro Reich para um número preocupante de pessoas: um homem tinha ideias erradas, aí outros se deixaram levar por elas; o nazismo é dissociado de sua base na sociedade de classes e na forma do estado.) Ao analisar mais além: como Jacques Derrida argumentou, a história da metafísica ocidental pode ser vista como a persistência de uma ontologia da "presença pura", um ser total e completo que está muito ligado à unidade do pênis – por isso o termo criado por Derrida era "falocentrismo". O micropênis é uma desfiguração ou diminuição dessa presença pura; em outras palavras, uma perturbação da coerência fálica que pode ser codificada como o mal. Mas esse não é o mundo que encaramos hoje. O mal está por todo lado, espalhado e onipresente – não apenas nos bancos e no governo; a comida que você compra é má, suas roupas exploram crianças de Bangladesh, seu celular abastece as guerras na África e faz trabalhadores pularem do telhado de fábricas na China. Até você pode ser mau, é difícil dizer. Não há coerência. Mas o pinto pequeno de Hitler resolve esse problema: isso localiza toda a fratura e confusão da existência em um objeto danificado. Aquele circo insano de ética vertiginosa por onde todos estamos tentando passar, se junta em algo claro e simples, onde o mal pode ser identificado por suas características físicas. Mas no final das contas, isso é muito perigoso. Se você passar muito tempo pensado assim, vai acabar concluindo que um corpo completo e saudável é bom e que um corpo feio, quebrado ou deformado é um poluente do qual você tem que se livrar. Sabe quem mais pensava assim? Tradução: Marina Schnoor