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Histórias de pessoas que fingiram doenças mentais para escapar do exército israelense

Todo mundo em Israel, menos os árabe-israelenses, precisam servir: as mulheres por dois anos e os homens por pelo menos três. Muitos, no entanto, tentam fugir da obrigatoriedade.

Ilustração por Dan Evans.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK .

Nem todo mundo tem medo do alistamento obrigatório em Israel. Para muita gente, o serviço militar aos 18 anos é um rito de passagem, um jeito de provar seu patriotismo e amor ao país. Todo mundo em Israel, menos os árabe-israelenses, precisam servir: as mulheres por dois anos e os homens por pelo menos três. Nem todos vão para as linhas de frente — quem não ganha um papel nos combates pode escolher uma variedade de posições de apoio, de cozinheiro a médico. Eles até têm DJs oficiais da rádio do exército, fotógrafos e uma banda de música pop.

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Só que nem todo israelense curte a ideia de passar os melhores anos da juventude de uniforme, muitas vezes em conflitos armados perigosos e fazendo parte da política militar agressiva com a qual muitos cidadãos o país discordam.

Todo ano, uma minoria tenta escapar do alistamento. Há algumas opções: você pode engravidar, ficar estudando indefinidamente ou se tornar um dissidente — mas essas opções também envolvem um período de trabalho comunitário obrigatório. Quem sair do país para escapar do serviço militar pode ser preso quando voltar, mesmo que de férias.

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Antes de entrar para o exército, você passa pelo "Tzav Rishon". Nele, você tem que ir até uma base do exército para fazer exames médicos, testes de lógica e entrevistas pessoais, seguidos por uma avaliação psicológica. O resultado final desses testes dá aos candidatos uma pontuação que determina a qual unidades eles vão se juntar. Os que tiram as melhores notas acabam nas linhas de frente, enquanto apenas os considerados mais problemáticos médica ou psicologicamente são dispensados.

Vindo logo atrás da opção de quebrar as pernas para não ser alistado, fingir uma doença mental é o jeito mais fácil de escapar do alistamento. Aqui, você lê algumas histórias de pessoas que tentaram escapar do serviço militar fazendo de tudo para reprovar na avaliação psicológica. Por razões óbvias, os nomes foram mudados.

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ALISSA, 26 ANOS

Se alguém realmente quer fugir do serviço militar, a primeira ideia é foder com os testes iniciais e ser considerado inapto para qualquer trabalho no exército, como a Alissa fez:

Nascida e criada na Europa, a ideia de ser obrigada a servir o exército ia contra tudo que eu acreditava e acredito. Quando me mudei para Israel aos 20 e poucos anos, não achei que eles me chamariam. Eu tinha largado a faculdade de artes e estava morando numa comuna em Tel Aviv. Nos dois anos primeiros anos no país, mudei de apartamento várias vezes. A comuna onde eu morava não tinha caixa de correio, e a porta da frente ficava no fundo de uma loja. A maioria dos meus amigos não conseguia achar o endereço, então achei que a burocracia do estado também não conseguiria.

Mas um dia chegou um envelope vermelho com meu nome e a palavra "FINAL" impressa. A carta dizia que eles estavam tentando me achar há dois anos e que eu tinha sido convidada para vários dias de inscrição. Ela também dizia que se eu não aparecesse na próxima chamada, eles me prenderiam numa cadeia militar. Era hora de encarar a música e tentar me safar dessa.

Conheço um monte de gente que conseguiu dispensa do serviço militar, então passei alguns dias acumulando conselhos e colocando minhas aulas de teatro do colégio em prática. Comecei a me deleitar com o desafio à minha frente. Tinha que ser a melhor performance da minha vida.

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Dois dias antes da chamada, tripliquei meu consumo de cafeína, levando a quase duas noites de insônia. Comi uma saquinho de ursos de goma no caminho para a base, para parecer ligadona. Acho que exagerei um pouco, porque consegui pegar três ônibus errados em sequência.

Acabei chegando ao perímetro de uma enorme base do exército. Meu hebreu estava meio enferrujado e eu comecei a esfregar minha carta na cara de quem passava, seriamente preocupada em não chegar a tempo e acabar presa. Cada um que passava me apontava uma direção diferente, mas depois de várias tentativas, um cara que estava levando o filho para a chamada me ofereceu carona. Ele ficou com pena daquela estrangeira zoada.

Depois de passar por todos os postos de controle, encontrei uma soldada que estava mostrando onde cada um devia ir. Eu disse a ela que não ia poder servir, e perguntei com quem eu podia falar sobre isso. Ela riu na minha cara e disse "Você vai servir o exército, queridinha". Ela era só outra garota, alguns anos mais nova que eu que, com certeza, também tinha sido obrigada a se alistar, mas fiquei com vontade de dar um soco na cara ordinária dela.

O prédio parecia uma escola, e em cada classe acontecia um teste diferente, com uma puta fila em cada porta. Fui passando de sala em sala, e fiz o melhor possível para reprovar em todos os testes. A prova de lógica era do tipo que eu até gostaria de fazer, mas apertei o mesmo botão para responder todas as perguntas.

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Voltei algumas semanas depois para o exame psicológico. Mais uma vez fiquei sem dormir e tomei um monte de café. Levei o livro A Revolução dos Bichos, e fiquei lendo trechos em voz alta e rindo comigo mesma. Fui recebida com olhares de espanto por todo mundo que passava. Perfeito.

Jovens soldadas do exército israelense via.

Um soldado colocou a cabeça para fora da porta e chamou meu nome. Sentei num pequeno escritório bagunçado, na frente de um cara do outro lado da escrivaninha. Ele me fez todo tipo de pergunta, e eu exagerei tudo. Eu não falava com minha família, eu não tinha amigos, eu já tinha tentando me matar, estava desempregada e não falava hebreu. Eu fazia longas pausas entre uma frase e outra, mas falava as palavras bem rápido e olhava toda hora para a janela como se estivesse assustada. Depois me disseram para esperar lá fora e me escoltaram para outro escritório, dessa vez com um painel de pessoas na minha frente. Foi a mesma situação, as mesmas perguntas. Aí disseram que eu receberia uma carta com o resultado. Algumas semanas depois, fiquei sabendo que não estava em condições mentais de servir o exército israelense e esse foi o fim da história.

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MICHAEL, 34 ANOS

Muita gente só descobre que não quer fazer o serviço militar quando já está no exército. Depois do treinamento básico, Michael ficou tão deprimido que abriu um processo para fazer o exército dispensá-lo.

Em Israel, todo mundo acredita que as pessoas "fingem" para se livrar do serviço militar. Isso cria um ciclo no qual, de tempos em tempos, o FDI faz um processo para liberar soldados com problemas mentais e sociais — o que acaba levando a um aumento de suicídios. Na maioria dos anos, suicídio é a causa número um de mortes no exército israelense.

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Entrei para o serviço militar com a ideia sionista de esquerda de que é preciso participar das unidades de combate, para fazer uma mudança política em como as FDI tratam os palestinos.

Doze horas depois, vi que não ia rolar. O primeiro dia no exército é traumatizante: ficamos em filas intermináveis de burocracia, para pegar equipamentos, fazer testes médicos e tomar injeções. Depois encontramos nosso sargento. Ele fez o discurso típico de "bem-vindos ao exército", depois perguntou aos novos recrutas quem tinha transado na noite anterior — ou, nas palavras dele — "quem desmantelou uma garota noite passada?" (מי פירק בחורה אתמול). Daquele momento em diante, minha relação com as FDI só piorou.

Sempre fui um cara solitário, constrangido em qualquer interação social. Os exercícios do dia a dia me deixavam intelectualmente entediado. Me vi faminto por livros, e comecei a usar qualquer tempo livre — hora das refeições, pausa para o banheiro e a noite — para ler. Eu lia entre os disparos no estande de tiros. Meu oficial acabou me proibindo de ler durante o dia. Nesse ponto, tentei sair da unidade de combate. Depois de uma discussão breve com um oficial de designação, me mandaram ser um cara do TI numa unidade estacionada em Nablus, norte da Cisjordânia, território ocupado. Foi lá que decidi que precisava sair do exército.

Antes de entrar para o exército, eu tinha parado de fumar, mas no dia em que cheguei aos territórios ocupados, fumei dois maços de cigarro inteiros. Perdi muito peso e desenvolvi várias técnicas para ficar doente induzindo o vômito. Eu tentava ficar fora da base o máximo possível. Em certo momento, finalmente consegui marcar uma consulta com um psicólogo.

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Comecei usando desculpas médicas para me livrar do serviço, mas na época em que falei com o psicólogo, eu estava realmente deprimido. Ele era muito cuzão, grosso e desagradável. Acho que essa era a técnica que ele usava para filtrar os "fingidos". Mas como eu estava mesmo me sentindo miserável, a tática passou completamente despercebida para mim. Ele me ignorou pelos primeiros quinze minutos, falando no celular e mascando chiclete. Depois disso, ele fez várias perguntas sobre a minha condição. Eu disse como estava me sentindo. Aí ele perguntou por que entrei para o exército. E não sabia o que responder. O exército que conheci era hierárquico, tirano, masoquista e violento, fiquei horrorizado. Mas eu não disse nada disso ù só lembro de ter dito que não queria mais me sentir péssimo. Ele disse que faria um documento dizendo que eu devia consultar um psiquiatra, que tinha autoridade de pedir a minha dispensa.

A consulta foi uma semana depois. Mas antes do psiquiatra fazer qualquer pergunta, o psicólogo cuzão chegou para falar com ele. Eles discutiram entre si, e disseram que no dia seguinte eu podia pegar o formulário de dispensa. Uma semana depois me vi saindo da principal base de recrutamento, era meio-dia e eu não era mais um soldado.

ARIEL, 24 ANOS

Depois de ter seu perfil reduzido com a avaliação psicológica, Ariel serviu por alguns anos no grupo de teatro do exército, mas foi dispensada alguns meses antes do fim do serviço por não cortar o cabelo e por dirigir uma peça que era crítica demais à liderança do exército.

Cheguei à base às 7 da manhã. Tinha uma fila gigante de adolescentes na porta, moleques de Israel inteira. Você tinha que dar amostras de urina. Depois vinha um teste de visão. Eram várias paradas: um teste de inteligência, um médico que sentia suas bolas e te mandava tossir, teste de urina, isso e mais aquilo — eles precisam saber se você está apto. Finalmente você vê um psicólogo. No final dos exames você recebe sua avaliação de perfil, que basicamente diz o que você pode fazer no exército.

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Quem recebe uma nota alta, acaba em combate, uma nota média te manda para apoio de combate. Se tirar uma nota realmente baixa, você é declarado inapto para o serviço militar.

Fui bem nos meus testes físicos, então estava desesperado para não tirar uma nota que me desqualificasse como soldado de combate. Então fingi que tinha vários problemas psicológicos. Só que não foi tão fácil quanto pensei.

"Nos outros lugares do mundo, as pessoas vão pra faculdade, estudam, dão festas, enchem a cara. Aqui, você termina o colégio e colocam uma arma na sua mão."

Na primeira consulta com o psicólogo, ele perguntou se tive alguma morte na família imediata, qual a situação financeira da sua casa, e se você já consultou um psicólogo antes. Se há alguma preocupação, ele te manda para o kaban, o escritório de saúde mental. Só o kaban pode reduzir seu perfil. Eu queria fazer algo entre 45 e 64 pontos, assim não teria que servir como soldado de combate. Atirar em pessoas não combina muito comigo.

Cerca de um ano e meio atrás, me encontrei com o primeiro oficial de saúde mental. Eu disse que tinha ansiedade, que não dormia bem, que era depressivo. Isso não ajudou, e meu perfil continuou o mesmo. Eles disseram que me desqualificariam para certos tipos de luta, mas que eu ainda podia acabar como soldado na linha de frente.

Uma Brigada Givati das FDI via.

Alguns meses depois, tentei de novo. Fui ver o oficial com documentos do meu psiquiatra e do meu psicólogo. Eles fizeram mais perguntas: "Quantos amigos você tem? Você é confiável?" Eles perguntaram se eu já tinha tentado suicídio, eu disse que não, mas que pensava nisso. Dessa vez funcionou, e eles reduziram meu perfil para cargos que não envolvessem combate.

Eu podia continuar me fazendo de louco e ser dispensado, mas quero servir o exército. Não quero ser rotulado como "folgado" para o resto da vida e não acho que devo escapar dessa quando todos os meus amigos tiveram que servir.

Ainda assim, o exército não me deu a opção de contribuir com o que faço melhor. Ele quer que eu seja um soldado da infantaria ou um técnico de avião. Não sou esse tipo de pessoa. O exército não te escuta. Então contei uma mentira inofensiva para que eles reduzissem meu perfil, e espero que agora consiga fazer algo em que sou realmente bom.

Nos outros lugares do mundo, as pessoas vão pra faculdade, estudam, dão festas, enchem a cara, vomitam umas nas outras. Aqui, você termina o colégio e colocam uma arma na sua mão. Adolescentes não são os soldados perfeitos, e se a instituição não fosse tão cabeça-dura eles perceberiam isso.

Tradução do inglês por Marina Schnoor.

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