Historicamente, o hip hop sempre prosperou com duplas. Testemunhamos a mágica se manifestar nas carreiras de grupos como OutKast e UGK. Mas nem todos os duetos são mágicos. Temos a recém-terminada saga entre Birdman e Lil Wayne como prova disso. O problema com duplas é que além da quantidade imensa de talento, ficamos vendo as tretas crescerem entre os membros, magnificadas pela fama. Uma década atrás, fomos apresentados a outro duo em 808s & Heartbreak. O projeto foi anunciado como o quarto álbum de estúdio do Kanye West, mas a alma melancólica por trás de um terço das faixas era creditada a Kid Cudi. Hoje, a dupla lançou oficialmente seu primeiro projeto conjunto sob o nome KIDS SEE GHOSTS. Para saber como chegamos aqui, vamos voltar um pouco no tempo.
Kanye não era o mesmo em 808s & Heartbreak. A vida tinha pegado pesado com o rapper. As notícias da morte de Donda West e um noivado fracassado aconteceram em apenas cinco meses. A morte de sua mãe numa cirurgia plástica abasteceu sua complicada relação com a fama, uma com a qual ele ainda parece estar aprendendo a lidar. O álbum substituiu samples soul ricos por bateria eletrônica e sintetizadores pesados. A voz de Kanye também estava diferente aqui. Era mais sóbria, emotiva e embebida em AutoTune. O disco era um pausa da hipermasculinidade protegida pelo hip hop. Com um punhado de coautores por música, Kanye trabalhou sua perda. Decepções se filtravam em “Say You Will”, uma abertura cansada de promessas desfeitas. É um tema que seguiria pelo resto do álbum, com Cudi o costurando para se encaixar com seu som. “Chased the good life my whole life long / look back on my life and my life gone”, ele canta em “Welcome to Heatbreak”, com ajuda de Cudi. Juntos eles avançavam pela angústia de relacionamentos vazios em “Heartless”, “RoboCop” e “Paranoid”. Era um grande contraste da persona de óculos de persiana que Kanye projetou em Graduation. 808s era frio. 808s era um pé na bunda. E como os pés na bunda da vida real, o que Cudi e Kanye reconstruíram no purgatório formaria uma versão evoluída deles que mudaria a música nos dez anos seguintes.
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A verdade inevitável é que muito de 808s não era exatamente novo. Prestando atenção, você ouve uma variação do mesmo som em A Kid Named Cudi, lançado alguns meses antes da união deles. O disco não existiria sem a base que A Kid Named Cudi fornecia. Nesses últimos dez anos, a irmandade deles seria testada publicamente com brigas e surtos mentais. Desde 808s, não teve um disco do Kanye em que Cudi não colaborou. Com a chegada de KIDS SEE GHOSTS, os fãs de rap estavam curiosos: eles seriam capazes de criar outro álbum tão avançado quanto 808s?
Tem muita coisa acontecendo em KIDS SEE GHOSTS. Não só é meio que uma volta de Kid Cudi e Kanye, mas a terceira parte do extravagante mas exaustivo G.O.O.D Music, o selo de Kanye. As sete músicas poderiam facilmente ser a trilha sonora de uma casa mal-assombrada, com risinhos fantasmagóricos pairando sobre os vocais dos rappers. Pela primeira vez na história deles, parece haver um respeito mútuo com os métodos um do outro. Cudi olha para ‘Ye do jeito que ‘Ye olha para Jay. Kanye experimentou a síndrome de irmão mais novo em primeira mão com sua relação complicada com Jay-Z e, intencionalmente ou não, projeta isso em sua orientação com Cudi. Com exceção de Man on the Moon, produzido por Kanye, as colaborações deles muitas vezes tinham Kanye como líder em faixas como “Gorgeous”, “Guilt Trip” e “Waves”, dano a Cudi um papel de coadjuvante. Em KIDS SEE GHOSTS, Kanye rima melhor do que em ye, mas ainda parece suplementar no projeto. Apesar de vendido como um projeto conjunto, esse parece um disco do Kid Cudi, com algumas aparições do Kanye. Se o álbum indica alguma coisa, é que o ego de Kanye pode estar encolhendo, uma grande tentativa de finalmente colocar seus artistas em primeiro lugar. Em vez de Cudi parecer um ornamento em seu trabalho juntos, KIDS SEE GHOSTS parece destacá-lo e por uma boa razão.
Tem sido um passeio e tanto para quem acompanha a amizade deles na última década. Depois de colaborarem nos projetos um do outro por quase cinco anos, a saída de Cudi da G.O.O.D Music em 2013 significou que a rivalidade de irmãos deles atingiu um pico. Dois anos atrás, Cudi acusou os “grandes nomes”, alegando que seus rappers favoritos (ou seja: Drake e Kanye) provavelmente tinham “umas 30 pessoas compondo para eles”. Uma semana depois, Kanye respondeu num piti infame num show em Tampa: “Te dei à luz”. Era um sentimento estranho para ‘Ye compartilhar na frente de uma multidão de milhares de pessoas, considerando a mão pesada de Cudi nos últimos cinco discos de Kanye. Mas se aprendemos alguma coisa com Yeezy, é que ele não é estranho a absurdos. Ele se tornou uma hypebeast de boné do MAGA, cuspindo uma retórica de que a escravidão era uma escolha no lançamento de seu novo disco, ye. Kanye escreveu “I hate being bipolar, it’s awesome” na capa de ye, chamando seu diagnóstico de um “superpoder, não uma deficiência”, em “Yikes”. Enquadrar isso assim parece um passo para a libertação – um passo que os fãs não viam exatamente em Cudi em sua própria luta com a depressão e a ansiedade. Meses antes do lançamento de seu disco de 2016 Passion, Pain, & Demon Slayin’, Cudi escreveu uma carta emotiva no Facebook sobre sua ansiedade, que tinha desencadeado impulsos suicidas. Ele saiu de cena, prometendo aos fãs que voltaria “mais forte, melhor e renascido”. Foi uma confissão extremamente transparente, mesmo ele sempre dando dicas disso desde o começo da carreira.
Em 2008, A Kid Named Cudi apresentou ao mundo um rapaz magrelo de 24 anos de Cleveland. Ele não tinha a musculatura ou street cred de rappers como 50 Cent ou Lil Wayne no começo dos anos 2000. Era o oposto da versão arrogante do hip hop com que nos acostumamos, e um garoto de Ohio estava criando sua própria cepa disso. Ele se autoproclamava um nóia solitário, apegando-se a apelidos como Mr. Solo Dolo em “Day ‘N’ Nite”. Faixas como “Man on the Moon” davam um vislumbre de sua depressão, um tópico tabu nas letras de hip hop. Ele até se distanciou de aspectos da misoginia. Ele não queria transar, ele queria “Pillow Talk”. Cudi expôs seus demônios em Man on the Moon e além, abrindo caminho para o rap “sad boy” que explodiria nas carreiras de Drake, Travis Scott e Lil Uzi Vert. A influência dele muitas vezes é esquecida, mas quem acompanhava seus passos na música queria saber se a clareza que ele estava procurando foi encontrada em KIDS SEE GHOSTS.
Cudi não deixa espaço para imaginar como ele está, ele revela tudo no verso inicial. “I can still feel the love” ele grita. É uma bela reintrodução para um homem que não lançava um projeto pela G.O.O.D Music em cinco anos. “4th Dimension” é uma escolha interessante como abertura, enquanto PUSHA-T comanda nossa atenção no primeiro verso. Pode ter sido uma escolha estratégica ter o homem que deu início à batalha de rap mais vibrante da memória recente contra Drake, um inimigo em comum, do seu lado. Mas Cudi parece muito em paz para querer reacender uma discussão de que ele nem fez parte. Ele traz de volta seus murmúrios imaculados na faixa de título, uma referência aos dias em que ele rezava para sua dor passar.
Mas músicas como “Freeee” e “Feel the Love” são indicadores claros de que Cudi encontrou o que estava procurando. “I don’t feel pain anymore / Guess what babe? I feel free.” É o sinal de alívio que seus fãs estava esperando, com ele mencionando que se sente renascido, completando o círculo de sua carta no Facebook. Kanye também está mais transparente no disco, compartilhando versos sobre seu vício em opiáceos em “Feel the Love”. Mas Kanye e Cudi conseguiram de novo? Como álbum conjunto, ele não evoca o mesmo sentimento de Watch the Throne. A presença de Kanye faz pouco para perdoar um projeto sem brilho de uma semana atrás ou suas pisadas na bola. Mas para o cara de Cleveland, KIDS SEE GHOSTS funciona como a volta de Cudi, e com todo direito. Suas letras vêm em formas de mantras, como quando ele canta “Peace is something that starts with me”. Em 23 minutos, Cudi e Kanye enterram seus demônios e, como eles mesmos disseram, seguem em frente.
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