Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK .
Pornografia não é um negócio sentimental. Mas notei que havia mais que um pouco de nostalgia no set do último pornô filmado no Armory, o lendário quartel-general do Kink.com no coração de São Francisco, nos Estados Unidos. A cena era um gangbang. Ela aconteceu mês passado num dos famosos calabouços à prova de som da fortaleza pornô, com quatro caras musculosos, todos com o pau na mão, rodeando uma garota pálida de beleza retrô. Na última década, o Armory foi a encarnação em tijolo e cimento dos sonhos eróticos do Marques de Sade. Era um lugar onde todos os tipos de fetiche, do grotesco ao glamouroso, eram explorados em detalhes implacáveis. Mais de oito mil filmes pornográficos, indo do waterboarding erótico a “debutantes do enema”, foram feitos aqui, no bairro de Mission em São Francisco. Aqui, a Kink realizou várias aulas e oficinas sobre coisas como brincadeiras eróticas elétricas e segurança em bondage, junto com eventos e festas com uma abordagem positiva do sexo. O Armory não era apenas um marco ilícito — o edifício de 8 mil m² era um bastião de algumas das culturas de sexo mais vanguardistas de São Francisco.
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Infelizmente, em janeiro, a Kink anunciou que pararia de usar o prédio de 103 anos para fazer filmes adultos. Desde 2014, a Kink vinha discretamente passando seus estúdios de produção para 885 quilômetros a leste de Las Vegas, uma decisão sintomática de tendências maiores de gentrificação, abastecida pelo Vale do Silício, empurrando espaços de sexo para fora de São Francisco e, mais especificamente, fazendo empresas de pornô perderem terreno na Califórnia por causa de mudanças nas regulamentações estaduais.
Maitresse Madeline Marlowe no Armory, no set de ‘Twin Peaks’. Todas as fotos por Ulysses Ortega.
Fiel à inclinação subversiva da Kink, a tomada final no Armory foi uma paródia da série cult de David Lynch Twin Peaks. O drama psicossexual sombrio de Lynch, com seu enredo sobre o eros americano e violência, foi um jeito bem apropriado de fechar a ponte levadiça do castelo da Kink.com.
A filmagem também mostrou por que a Kink tem sido uma potência do entretenimento adulto com sua sede no Armory. O cenário foi imaginado pela diretora/roteirista/dominatrix Maitresse Madeline Marlowe, que fez uma produção recentemente na Kink apresentando uma mulher loira enrolada numa bandeira americana sendo fodida por um grupo de homens usando máscaras do Donald Trump. Marlowe e sua equipe de filmagem, composta só por mulheres, gravaram em três cenários diferentes, com figurino e adereços elaborados.
Para a cena principal de gangbang, elas transformaram um dos principais cômodos do Armory no bordel de Twin Peaks One Eyed Jack’s, com paredes de madeira e cabeças de veado empalhadas decorando a câmara de iluminação vermelha. Lá, Audrey Horne (interpretada com confiança por Amber Ivy) era cercada por quatro atores veteranos da Kink interpretando alguns dos personagens principais da série. Marlowe assistia a massa de corpos lubrificados pelo monitor, comandando posições como um treinador de futebol na beira do campo: “Vaginal! De quatro! Anal! DP estilo cowgirl! Cowgilr reversa!” Depois de cerca de uma hora e meia de atividade extenuante, Amber entregava sua última fala, com o rosto gotejando, e pronto. Marlowe proclamou: “Temos orgulho de ter vocês aqui, na última filmagem pornô no Armory!” Aplausos e rolhas de champanhe estourando.
Amber Ivy num cenário no Armory.
Foi um momento agridoce, considerando que foi aqui que a maior empresa de BDSM hardcore e fetiche do mundo começou uma revolução na indústria do entretenimento adulto. Antes da ascensão da Kink, o BDSM comercial nos EUA geralmente não apresentava conteúdo extremo como esse. O que havia antes eram principalmente a variedade Bettie Page de BDSM, com modelos amarradas e amordaçadas usando acessórios de fetiche. Produtores que faziam filmes de bondage preferiam ficar longe de penetração explícita, temendo processos por incitar obscenidade. Mas o CEO e fundador da Kink, Peter Acworth, gostava de desafiar limites. Ele começou a empresa no seu dormitório da faculdade de administração em 1997, e em 2005 estava postando vídeos de bondage e fetiche que mostravam sexo de verdade.
O vídeo responsável por virar o jogo foi um teste feito em 2005 para a série nascente Sex and Submission, segundo o porta-voz Mike Stabile. Na cena, Kurt Lockwood punia Sydnee Capri com palmadas e chicotadas antes do sexo propriamente dito. Era essa disposição de abraçar tanto o êxtase quanto a brutalidade que ajudaram a criar um nicho significativo para a Kink, que se aproxima cada vez mais do mainstream graças a fenômenos da cultura pop como 50 Tons de Cinza. Hoje em dia, o Kink.com tem milhares de assinantes por todo o mundo, com séries como a notória Fucking Machines — na qual homens e mulheres transam com consolos gigantes movimentados por pistões — e Public Disgrace — série na qual submissos são atormentados por estranhos em público.
A Kink consegue realizar essas filmagens extremas de BDSM graças ao seu extenso protocolo de consentimento: regras de filmagem rigorosas, entrevistas com os modelos antes e depois da filmagem, política de palavra de segurança e sua carta de direitos dos modelos. Isso assegurava aos espectadores — além das empresas de cartão de crédito, que podem se negar a oferecer serviço se considerarem o conteúdo obsceno — que os artistas tinham concordado em participar de tudo. Desde alegações de agressão, abuso e estupro contra o astro do pornô James Deen em 2015, as práticas de consentimento do cinema adulto vêm passando por intenso escrutínio. Ter todo mundo sob o mesmo tempo facilitava para a Kink estabelecer e supervisionar suas práticas.
Apesar de o público do Kink.com ser principalmente masculino e a primeira página apresentar mulheres com o corpo clássico do pornô de LA, seus subsites contam uma história menos estereotipada e mais diversa. Os diretores e artistas refletem a abordagem LGBTQ-friendly da Kink. Mickey Mod, o pai de Audrey no gangbang e vice-presidente do Adult Performer Advocacy Committee, me disse: “A Kink filma pornô gay, trans e tudo no meio disso. Já filmei pessoas antes e depois da transição. Quantas outras empresas já fizeram isso?”
Uma estátua no Armory esculpida pela mãe do CEO Peter Acworth.
Além do conteúdo inovador da Kink nesses anos, o lugar onde seus filmes eram gravados era tão importante quanto para seu legado. “Peter sabia que havia um desejo de fetiche para ser alimentado e respeitado”, me disse a duquesa da pansexualidade da Bay Area Carol Queen. “Foi muito sábio da parte dele transformar o lugar num clube, quase um movimento. O Armory era uma versão moderna da mansão Playboy”.
A fortaleza estilo mourisco foi construída no começo dos anos 1900, e originalmente guardava munição da Guarda Nacional e abrigava lutas de boxe. Mas depois de 30 anos de uso intermitente, o lugar tinha caído no abandono. Era um símbolo da decadência urbana no bairro Mission. Graças aos preços baixos nas propriedades no bairro na época e à grande dilapidação do prédio, Arworth adquiriu o Armory em 2006 por apenas $14,5 milhões.
Com reformas estratégicas, Acworth transformou o prédio num labirinto espetacular de cenários: o porão era um espaço cavernoso; o último andar era decorado no estilo eduardiano com móveis de bondage; no meio havia de tudo, desde consultórios médicos com todo tipo de aparelho imponente a um matadouro apresentando grandes pedaços de carne pendurados em ganchos, o que permitia que a Kink realizasse narrativas elaboradas e fantasiosas. E com sua equipe de segurança, casting no local, sala verde e política de servir almoço para os empregados todo dia, a Kink trouxe um nível de profissionalismo para uma indústria que não é conhecida por sutilezas. Tudo isso, inclusive, foi tornado possível pelo grande espaço no Armory.
Ainda assim, transformar o Armory numa mansão Playboy moderna teve seus desafios. Assim que a Kink se mudou, manifestantes locais fizeram piquete, reclamando de um negócio tão escandaloso perto de escolas. Acworth respondeu lançando uma campanha de transparência. Ele convidou vizinhos para visitar o Armory, realizou passeios guiados e fez reformas no exterior do prédio, consertando janelas, instalando luzes e removendo pichações. Ele também fez contribuições para organizações de caridade locais e apoiou os planos para um centro comunitário no bairro.
Em vez de arruinar o bairro, a Kink catalisou uma gentrificação na área, impulsionada pela economia de tecnologia em ascensão. Logo depois que a Kink se mudou, o Four Barrel Coffee trouxe o fetichismo do café artesanal para o mesmo quarteirão — “Escolhendo, torrando e filtrando o melhor café de São Francisco, de um jeito honesto, ético e sexy” é o lema da empresa. E aí prédios de luxo começaram a subir ao redor.
Enquanto o boom de tecnologia no Vale do Silício fazia os aluguéis dispararem em São Francisco, mudanças culturais começaram a desalojar instituições LGBTQ e de sexo radical na cidade que já foi o fronte de políticas sexuais progressivas. A famosa livraria LGBTQ da Castro, A Different Light, fechou em 2011. O clube de stripers sindicalizadas Lusty Lady, em North Beach, encerrou os negócios em 2013, o mesmo ano em que o clube de sexo Mission Control perdeu seu contrato de aluguel em São Francisco. Em 2015, o bar lésbico Lexington Club foi fechado. E ano passado, o Stud por pouco evitou o mesmo destino.
Mickey Mod e Madeline Marlowe me disseram que nos últimos anos, o Kink Armory tinha se tornado um “espaço seguro” para uma cidade que estava perdendo locais assim. Apesar da ideia de um “espaço seguro” entre cenários de bondage numa fortaleza de paredes grossas parecer contraintuitiva, muitos viam o local dessa forma. A artista do pornô queer e escritora Jiz Lee (também conhecida como “Pony” da série da Amazon Transparent) me disse que “Tem havido muitas mudanças em São Francisco e na Bay Area nos últimos anos, resultando em menos espaços para sexo positivo, foco em queer e kink-friendly, etc… e os cenários do Armory estavam entre eles”.
Assim como a venda da mansão Playboy de Hugh Hefner ano passado, o fechamento dos estúdios do Kink.com no Armory sinaliza mudanças sísmicas acontecendo na indústria do entretenimento adulto. A Califórnia era o epicentro do entretenimento adulto norte-americano há décadas. Mas o “policial do pornô” Michael Weinstein está numa cruzada para colocar cada vez mais restrições na indústria, que em grande parte se autorregulava. Apesar de a “lei da camisinha” (Proposição 60) ter sido derrubada, os produtores pornôs não sabem o que esperar. Com essa incerteza pairando no horizonte, pedidos de permissão para filmagem de filmes adultos na Califórnia estão despencando.
No momento, Las Vegas parece ser a nova fronteira do pornô. Marc Randazza, um advogado da indústria do entretenimento que vem estudando a migração do pornô para Nevada, vê a ação do Kink.com “no contexto maior das empresas do entretenimento adulto procurando algo algumas horas a leste, vendo custos mais baixos para fazer negócios, um ambiente mais amistoso para a indústria, e mais tolerância social que na Califórnia. Eles perceberam que não tinham muito o que pensar antes de mandar a Califórnia se foder”. E Acworth fez exatamente isso.
Quando a Kink recebeu uma liberação em 2016 para usar o Armory para shows e outros eventos públicos, não fazia mais sentido financeiro usar a colossal citadela para o pornô. Bebida e nudez não se misturam aos olhos da lei, e regulamentações exigiam que a Kink fizesse escolhas difíceis — ou o Armory era um lugar onde as pessoas podiam beber, ou um lugar onde pessoas transavam diante das câmeras.
Desde a decisão de encerrar a produção de filmes no Armory, alguns diretores-chave da Kink, incluindo Marlowe, já montaram seus próprios estúdios em Vegas e vão continuar produzindo conteúdo para a plataforma Kink.com. As equipes de edição, tecnologia, marketing e administração da Kink vão continuar no Armory, junto com qualquer outro empreendimento sem nudez que Acworth e sua equipe inventarem. Mas gemidos nos cenários de TS Pussy Hunters, Men in Pain ou Electrosluts não vão mais ecoar pelas paredes de mármore do Armory. São Francisco não será mais tão kink sem ele.
Todas as fotos por Ulysses Ortega. Veja mais do trabalho dele aqui .
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Tradução: Marina Schnoor