Como os conflitos afetam a vida de moradores da Rocinha
Rocinha ocupada pelas Forças Armadas. Foto: Matia Maxx/VICE

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reportagem

Como os conflitos afetam a vida de moradores da Rocinha

Conversamos com residentes da comunidade e trazemos relatos de uma guerra carioca.

Como nas vésperas da Copa e das Olimpíadas, novamente uma ocupação militar em comunidades do Rio de Janeiro coincidiu com a realização de um megaevento, o Rock in Rio. "Cariocas e turistas não devem deixar de ir ao evento por conta dos conflitos", afirmou inclusive o secretário de segurança pública do Rio, Roberto Sá, na coletiva que precedeu a ocupação militar da Rocinha, com suporte de 950 homens das Forças Armadas, no último dia 22.

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O prefeito do Rio Marcelo Crivela, por sua vez, soltou: "chegou a hora de dar um banho de loja na Rocinha". Dez dias após o começo dos conflitos, o prefeito visitou a comunidade. O governador Luiz Fernando Pezão não esteve no local.

Mas os conflitos na comunidade supostamente pacificada começaram antes. No último dia 17, um barulhento confronto entre dois grupos da mesma facção, o ADA, assustou moradores da comunidade. Após uma semana tensa, um novo conflito ocorreu na manhã da sexta-feira, dia 22.

Durante as primeiras horas daquela sexta, algumas notícias deram conta de que traficantes em fuga teriam ocupado o prédio do Detran, na Gávea (era boato), e que estariam escondidos nas matas do alto do bairro, área repleta de apartamentos e casas luxuosas.

Por volta das 15h, na mesma sexta, homens das Forças Armadas ocuparam as principais vias da Rocinha. Aquele 22 de setembro não parecia uma sexta-feira normal na comunidade. Ruas e becos estavam silenciosos, sem a confusão habitual de sons de funk, forró e sertanejo a todo volume, muito menos de motos ziguezagueando. Os inúmeros bares, restaurantes e casas de show espalhadas pela comunidade estavam vazios, ou simplesmente fechados. Deixei o morro por volta das 3h da manhã, uma hora antes do conflito recomeçar.

Na última terça (26), voltei à Rocinha e encontrei o rapper Weelf. Ele mora numa área considerada mais tranquila da comunidade, próxima a um antigo fliperama que, durante a infância do rapper, funcionava como base do tráfico. O prédio, por sua vez, foi ocupado pela polícia, transformando-se primeiro num DPO e depois em um centro de controle da UPP. A casa de Weelf e de seus vizinhos não foi revistada. No entanto, no conflito de sexta , um de seus amigos de infância foi alvo de uma bala perdida, ferido na região pélvica e segue internado.

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Local onde o amigo de Weelf foi baleado na Rocinha. Foto: Matias Maxx/VICE

Rachei um yakisoba com o rapper, que me explicou a dinâmica dos acontecimentos recentes.

"Essas duas últimas semanas foram turbulentas. O primeiro dia foi o mais tenso de todos, porque começou antes das 6 da manhã e foi até umas 11 — umas cinco horas de tiroteio pesado. Tenho 39 anos e nunca vi um tiroteio desses. O sistema não se posicionou de forma alguma, ficou aquela coisa solta no morro o conflito, podendo explodir a qualquer momento, a bala comer em qualquer outro lugar. Só mais de 24 horas depois que a polícia interveio. Então o primeiro dia e primeira noite foi de terror mesmo, porque pra nós moradores, quem não tem envolvimento com nada, tem medo de bala perdida, entendeu? Tem barulho que não dá pra distinguir o que que é, armas grandes, bombas, então a própria violência do conflito nos dá medo. Depois que a polícia entra, divide esse medo do conflito com a repressão da polícia. Porque o policial é treinado de uma forma hostil; ele acha que todo mundo é suspeito, não adianta ser trabalhador nem nada, porque a primeira mão é 'tudo vagabundo'. A polícia vem nervosa: eles são seres humanos, tem medo, e não só a disposição de achar que são super-heróis. O morro ficou tranquilo durante a semana toda, mas naquele clima de expectativa que a qualquer momento poderia voltar a ter tiroteio de novo. Aí na sexta de manhã voltou brabo, e a tarde entrou o exército. Quando o exército chega, vem mais medo ainda, porque a visão que a gente tem é que os caras vão vir mastigando, revistando todo mundo, batendo. Mas não: eles chegaram, ocuparam e liberaram a via. Acho que a via do túnel Zuzu Angel ter sido fechado foi o que motivou mandarem o exército, enquanto estava só dentro do morro no primeiro dia, o estado não se pronunciou pela defesa dos moradores, não fez porra nenhuma. Ficamos reféns da parada."

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"Tenho 39 anos e nunca vi um tiroteio desses."

"Sábado e domingo havia bastante militares pelas ruas. A cada 50 metros você via tropas de 20 a 50 soldados, tanques, jipes. E hoje [terça] já tem menos. Acredito que em uma semana o exército vai estar fora daqui, o que abre precedentes pra novos conflitos. Quem chegar primeiro vai ocupar o tráfico e quem chegar depois vai querer tomar o tráfico. Só quem está na parada que sabe mesmo o que está acontecendo. Há rumores e tal, mas para mim é papo de otário falar quem tá forte e quem tá fraco. Acho que o morador é muito neutro pra poder dar palpite nessas coisas, só quem é bandido mesmo sabe o que está acontecendo. Quem tá aonde e quem não está. Pode ser que a inteligência da polícia saiba mais, mas morador não sabe tanto assim não."

Cena da Rocinha ocupada pelas Forças Armadas. Foto: Matias Maxx/VICE

"O povo que vive na favela tem anticorpos pra essas coisas, aprende e já se adaptou. Tem amigos de fora que às vezes oferecem a casa, 'passa um tempo aqui cara, até passar isso'. É porque eles não tão acostumados, a gente está. O problema pra gente é quando tem o tiroteio, ai é o terror. Passou, fica tranquilo, todo mundo volta pra rua, vai a padaria, ao bar, e também fica aquela incógnita de quando é que vai ter outro [tiroteio], o que que vai acontecer depois. E isso não é só aqui na Rocinha, acontece em todas as favelas do Rio. Enquanto não tiver uma política séria a respeito da descriminalização das drogas, é só hipocrisia, só babaquice. Porque o traficante favelado não lucra com isso, deve ter alguém muito grande que lucra muito com isso pra deixar essa parada rolar dessa forma, não um pé de chinelo de favela. A parada é mais ou menos isso: estamos aí, estamos em paz, mas essa paz aí é de fumaça. Evito andar dentro dos becos, porque você pode encontrar qualquer tipo de surpresa. Dizem que tem uns caras não sei de que grupo ainda entocados aí. Então quem está entrando nos becos é só quem é inevitável, quem mora neles. Quem precisa do beco pra cortar caminho está preferindo fazer o caminho maior pelas ruas."

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"Essa paz aí é de fumaça"

Na mesma terça, de passagem por uma rua que reúne os bares mais movimentados da comunidade, conversei com um cozinheiro que preferiu não se identificar. De origem nordestina, J. mora no morro há 42 anos e reclama da queda do movimento. Segundo ele, a área reúne cerca de mil e quinhentas pessoas nos fins de semana, mas quando estive lá, na última terça (26), o espaço estava às moscas. A caixinha semanal que gira em torno de R$ 380, virou cerca de R$ 65 depois do fim de semana. "Atrasei o aluguel, sorte que a proprietária é daqui também e entendeu."

Pizzalit fechada, na sexta (22). Foto: Matias Maxx/VICE

Cheguei então na Pizzalit, um estabelecimento a mais de 20 anos em funcionamento na Rocinha e que tem música ao vivo nos fins de semana. Lá, converso com o proprietário Sérgio Soares, eleito recentemente presidente da associação comercial da Rocinha. Perguntei como os episódios recentes impactaram os negócios na comunidade:

"A gente interpreta como uma situação que só está se repetindo. A última guerra que teve entre duas pessoas que queriam ocupar a hierarquia no tráfico local teve muitas mortes, inclusive de pessoas que nem eram da comunidade. Isso foi 2004, na época do Dudu contra o Lulu. Mas a verdade é que o comércio já vinha muito difícil, situação no país complicada, desemprego ascendente, então as camadas mais pobres acabam sendo afetadas. Agora, depois do primeiro tiroteio, já parou tudo, primeiro dia ficou todo o comércio fechado. Isso tem quinze dias. A gente ficou na expectativa a semana toda, sem o menor tipo de movimentação. A gente tinha eventos de música, samba, show em casas de festas, isso tudo foi cancelado no primeiro fim de semana em que ocorreu o confronto. A consequência disso foi toda uma semana sem movimento, e antes e depois da entrada das forças do exército já tinha toda uma movimentação de policiais locais à procura de tentar capturar ou dar fim àquela situação."

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"A Rocinha é emblemática, ela tá nesse enclave entre a nata da burguesia brasileira"

"Com a chegada do Exército você percebe que só toda essa descrença das pessoas que ficaram definitivamente enclausuradas em casa. A expectativa que eu posso te falar é que não tem plano, não tem uma meta, não tem um objetivo a curto e médio prazo. Ninguém sabe o que está acontecendo. Isso em relação ao que a gente enxerga das autoridades. O fato é que já vi antes, conversando aqui, inclusive com policiais, sabia da falência do governo estadual e sua consequência nas Unidades de Polícia hipoteticamente Pacificadoras, seria o caos, seria exatamente este desdobramento. Porque o policial, sem receber salário… A consequência foi o que a gente vive, e não é só aqui não, não é só na Rocinha não, é que a Rocinha é emblemática, ela tá nesse enclave entre a nata da burguesia brasileira, quando acontece aqui metade do que acontece em favelas da zona norte por uma questão óbvia eles têm de intervir com Exército, Marinha, Aeronáutica."

"A expectativa é que não tem plano, não tem uma meta, não tem um objetivo a curto e médio prazo."

Junto a chegada da UPP, algumas franquias como a se instalaram na comunidade, assim como operadoras de internet e TV por assinatura. Perguntei a Sergio se a UPP afinal foi um bom negócio para comunidade.

"Aqui sempre teve um movimento econômico. Você vê, o transporte é local, a maioria das pessoas que operam vans moram ou tem família aqui, com os mototaxistas a mesma coisa, a maioria mora aqui, consome aqui, faz o dinheiro circular aqui. TV por assinatura, provedores de internet, é tudo na informalidade, a Rocinha toda tá cabeada com eles, e acredito que são mais eficientes que as operadoras, em termos de instalação e manutenção. Mas a verdade é que eu avalio, que se fosse um país, a Rocinha após a entrada da UPP perdeu 50% do seu PIB. Se eu te citar os exemplos de negócios escusos que aconteciam, além do tráfico de drogas, tinha o pessoal de 71, os caça niqueis, contravenção, jogo do bicho que funcionava livremente, e que hoje são reprimidos, são uns nove seguimentos que tinham um fluxo bem natural aqui dentro, o ambiente perfeito para a proliferação desses tipos de atividades ilícitas. Então imagina que de um dia pra noite você estanca isso tudo, e o revés agora é assustador. Você imagina quantas pessoas não viviam em torno de cada membro do tráfico, parente, amante, filhos, enteados, uma quantidade grande de gente com poder de compra, e aí vai, a avaliação que eu faço da UPP é essa. É engraçado porque o fim da UPP começa na Rocinha, com o Amarildo."

"Comparada a um país, a Rocinha após a entrada da UPP perdeu 50% do seu PIB"

Você tinha um governo corrupto e inescrupuloso, que não tinha nem como cuidar do bem público porque eles tinham empresas dentro do governo em todas as atividades do governo. Mas você vê que na segurança pública, a ideia de você ocupar um espaço que é ocupado pelo poder paralelo, é perfeita. Tivemos intervenções na Rocinha durante os governos Lula e Dilma, coisas que não existiam há 50 anos, ruas foram construídas, uma iniciativa de quem governa para os mais pobres. Independente de populismo ou de mentira política, mas foi uma intervenção num beco que não passava uma pizza, e hoje tem uma rua lá. Imagina você morar num lugar aonde não batia luz do sol, que era um dos maiores índices de tuberculose do país, aí vem o governo federal e cria uma rua. O único postinho de saúde que a gente tinha era na Rua 1, a Dona Maria Helena fantástica, que sempre esteve lá a frente, agora temos uma UPA e uma Clinica da Família. Eu entendo assim, a gente teve intervenções na comunidade que precisavam continuar, para você dar civilidade."

Durante a semana, enquanto o exército patrulhava a Rocinha, várias operações policiais foram deflagradas em outras comunidades atrás do paradeiro de Rogério 157. Primeiro no morro do Turano e do Borel, conectados a Rocinha pelas matas da Floresta da Tijuca. Em seguida vieram operações no Complexo do Alemão e no Complexo da Maré, o traficante não foi encontrando, mas drogas e armamentos foram apreendidos. Segundo o blog Crime News, Rogério teria fechado com o Comando Vermelho, maior e mais antiga facção criminosa do Rio de Janeiro, que controlava a Rocinha até 2004. Antes mesmo do que previsto pelos moradores com quem conversei nesta reportagem, na madrugada desta sexta-feira, as Forças Armadas começaram a se retirar da comunidade da Rocinha. Segundo seus porta-vozes, a ação do exército seria para acabar com a guerra e não capturar criminosos, função atribuída às forças de segurança pública do estado.

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