Sabe aquele disco foda que pouca gente conhece? O Noisey decidiu fazer um garimpo e mostrar a história de algumas dessas raridades na coluna Disquecidos. Nesta edição destrinchamos o clássico Atrás do Por do Sol, de Lazzo Matumbi.
Há 30 anos, Lazzo, que já foi só Lazinho, Lazinho do Ilê, Lazinho Diamante Negro e hoje carrega no nome o Matumbi, uma pedra sagrada nigeriana, gravou uma das maiores obras-primas da autoestima negra na música brasileira. Este é um dos discos que mais se encaixam na proposta desta coluna. O terceiro disco do cantor, Atrás do Por do Sol (a falta do acento em pôr é proposital), é incrível, especial e hoje em dia é difícil de encontrar suas faixas até no YouTube. Nos sebos e lojas do gênero, o álbum não é tão celebrado quanto outros discos de reggae ou samba reggae. E há uma infinidade de pessoas que ainda não conhecem um dos mais potentes cantores da Bahia.
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Aos 61 anos, o baiano de Salvador Lázaro Jerônimo Ferreira tem no currículo seis discos solos, uma trajetória como cantor do Ilê Aiyê, três anos de estrada como percussionista de Jimmy Cliff, sucessos cantados por outros artistas, a influência ao reggae de Edson Gomes, a sobrevivência ao axé music e uma trajetória de décadas na militância negra.
Na semana passada, nos encontramos com o lendário baiano num hotel no centro de São Paulo. Abaixo, destrinchamos de cabo a rabo o incrível Atrás do Por do Sol e ainda falamos sobre a ganância na música baiana durante o final dos anos 1980 e início dos 90, as tretas com letras racistas, apropriação cultural, blocos afros, Abolição, racismo, entre outras coisas.
Noisey: Em que contexto este disco foi gravado. Como era a Salvador daquele tempo?
Lazzo Matumbi: Vou contar uma história meio maluca, mas que é a pura verdade. Em 1980 eu saí do Ilê Ayiê, e em 1981 eu comecei a minha carreira solo e vim morar em São Paulo. Um dia encontrei um amigo que me falou da revolução que estávamos fazendo no Carnaval lá em Salvador. Ele falou: “a gente percebe que vocês estão anos-luz na nossa frente”. Eu fiquei com aquilo na cabeça — eu não tinha consciência de que o surgimento do bloco afro na Bahia era uma coisa de auto-afirmação, era o levantar da auto-estima da comunidade negra, até porque a gente vinha do Carnaval e lá percebíamos essa coisa excludente, não declarada, mas disfarçada, da alegria.
Como foi esse caminho aqui em São Paulo?
Eu fiz dois discos pela Pointer (selo pequeno da WEA Discos). Dei a sorte de encontrar um cara chamado Moacir Machado, que me deu uma força e me apresentou a José Maurício Machiline. Aí eu fui abraçado por Rosa Maria, Filó, Miriam Batucada e fiz dois discos meus por aqui e neste período eu participei das Diretas Já. Cara, me bateu um negócio e eu quis voltar para Salvador. Eu acreditava que eu devia voltar e dar continuidade naquilo que eu comecei lá. Precisava estar presente.
E como estavam as coisas quando você voltou?
O processo ainda estava muito lento, porque Salvador ainda é uma cidade muito complicada nessa relação racial. Tem uma elite que domina a cultura e tem uma relação política com essa cultura que joga muito duro. Neste momento surge Roberto Santana e ele disse que ia produzir um disco comigo, Gerônimo e com um outro cara. Ele não queria falar quem era esse cara. Nós viemos descobrir, depois do trabalho lançado, que era o meu amigo Luiz Caldas, que tava cantando uma música que o movimento negro na Bahia tava batendo de frente, que é “Fricote”.
Naquela época a música causou mal estar?
Sim, lá a gente entendia que ela descontruía tudo aquilo que nós tínhamos feito com o bloco afro. O Brasil todo falava em Badauê, em Ilê Aiyê, Gil cantou uma música que fazia referência a isso, Caetano também fez outra. E aí pinta essa música e toma toda a população, que de um certo modo eu não culpo, porque nós carregamos uma escravidão mental durante muitos séculos. Foram anos e anos de lavagem cerebral. Era — e continua sendo — difícil explicar que aquela música fortalecia uma coisa que não era legal pra gente. E eu tinha que fazer uma coisa que fosse um contraponto a isso. Essa música tomou conta do Brasil com o Chacrinha e o caramba a quatro e a gente percebeu que o nosso discurso afro, por mais que fosse uma coisa positiva para a gente lá em Salvador, e que poderia de um certo modo se espalhar pelo Brasil, ficou um pouco estigmatizada pela mídia. Parte da classe média se apoderou disso e começou a cantar as músicas cantadas nas quadras de bloco. Neste período surgiram duas bandas, a Banda Mel e Banda Reflexus e desaguou na frente com Daniela Mercury.
Ela acabou se tornando uma das principais representantes deste negócio que batizaram de “axé”, né?
Pois é. Tem uma música que ela canta que é de um amigão meu, o Toti Gira. Outro dia a gente estava conversando e eu falei: “Imagine você, que isso é um lamento seu com tudo o que está acontecendo e você escreve que a cor dessa cidade é você, que o canto dessa cidade é seu. Pô, cadê? Não acontece nada e a gente não canta?”.
É estranho mesmo uma mulher branca cantando essa música.
Exatamente. Essa é a reprodução do que a gente via na América do Norte com o rock, Elvis Presley e companhia. A gente tem que continuar fazendo o nosso próprio trabalho.
E como foi o surgimento do axé?
Não era um movimento organizado, foi uma coisa que surgiu e foi tomando corpo. As rádios já não tocavam mais os artistas que tinham uma linguagem mais cultural, mais poética, mais questionadora. E começaram a surgir os blocos e os artistas dos blocos cantando as músicas dos blocos afros. Não dava para dominar essa força dos blocos afros, ela veio por uma outra via. Muitos se renderam a esse jogo. Eu nunca fui contra nem a favor, sempre me mantive na minha.
“Você escreve que a cor dessa cidade é você, que o canto dessa cidade é seu. Pô, cadê?”
O que você ouvia nessa época, o que te inspirou?
Desde o início eu ouvia coisas muito diversas. Ray Charles, Al Jarreau, Marvin Gaye, que foi um dos caras que eu mais ouvi, Bob Marley, Jimmy Cliff, Stevie Wonder. Ouvia também [Wilson] Simonal, adorava quando ele estava junto com o maestro Erlon Chaves fazendo aquele som de orquestra, adorava ouvir os cantores de escolas de samba do Rio de Janeiro, porque me trazia a mesma imagem do lamento do blues, mesmo que o samba-enredo estivesse contando uma história longa, era um lamento.
É parecido com os lamentos cantados pelos cantores dos blocos afros também, não?
Exatamente. Eu lembro quando eu cantava no Ilê Aiyê que as pessoas achavam que eu cantava diferente. Elas me diziam que eu cantava de forma lamentosa, mas que não era dolorido. Um lamento que elas se sentiam fortificadas. E era exatamente isso, ali a gente não tava cantando um estilo musical, a gente tava cantando um comportamento e ele era traduzido em letra e música.
Qual a sua memória desta fase?
Eu me lembro muito de uma música que eu comecei a cantar, as pessoas abraçaram e se tornou um grande símbolo do Ilê Aiyê que é “Deusa do Ébano”. Eu começava a cantar porque eu tinha uma namorada lá embaixo que era linda, maravilhosa e eu cantava pra ela. Isso tomou corpo de uma forma incrível, porque batia gostoso. Ela participou do festival e não ganhou. Ela não tem um questionamento político, tem só uma adoração à mulher negra. Essa música não era de um militante, ela era de um dentista (Geraldo Lima) que ia para o ensaio de vez em quanto, ele nem aparecia muito, era um cara consciente.
Então, vamos falar do disco. Este álbum é de reggae, de samba ou de samba reggae?
Nem de reggae, nem de samba. Ele tem a mistura, eu sempre trabalhei com a fusão. Eu pego a célula do reggae na guitarra, amarro com uma batera de bossa nova, baixo de reggae, soul. Se você me perguntar que estilo eu tenho eu não sei dizer. Até hoje eu vivo fazendo essas misturas e as pessoas classificam. Teve um época que falaram que era do reggae e o pessoal do reggae falou que eu não fazia reggae roots.
Você abre o disco falando sobre sobre ancestralidade e escravidão em “Abolição”, que acabou de completar 130 anos. É um tema recorrente na sua obra. Qual é a verdade de Zumbi que você cita?
Zumbi foi um dos maiores, ou o maior líder, da comunidade negra. Ele ensinou para uma sociedade que veio depois dele que a gente pode viver nesse chão de forma igualitária independente da cor, se organizando, se ajudando. Isso é um grande exemplo, é algo superpositivo. Hoje a sociedade discute a questão racial, mas antes as pessoas diziam que a gente estava se vitimando. E a gente só queria uma sociedade mais igualitária. Seguimos assim ainda hoje. Pelas histórias, Zumbi tinha em seu quilombo todo tipo de gente: branco, índio, negro alforriado, negro rebelde, o cara que vendia o negro. Ele pra mim é um grande pai.
“Abolição” é um som foi feito em parceria com o Capinam.
Eu pedi essa letra a ele, e é uma coisa maravilhosa. Um amigo meu falou com ele e ele me deu uma letra que eu não gostei muito e não era exatamente o que eu queria falar. Eu sou muito criterioso com o que eu vou falar. Aí ele me mostrou uma segunda versão que é esta que eu canto.
É o mesmo da Tropicália? O poeta?
Exatamente.
“Me Abraça e Me Beija” também tem uma história que fala sobre o mesmo tema, né? Você pode explicar?
Eu queria fazer uma música que falasse de amor, mas que fizesse também uma reflexão, porque eu vejo que as pessoas ficam nessa euforia do 20 de Novembro. Eu queria chamar a galera pra um dengo e dizer que 20 de Novembro são todos os dias da nossa vida.
Como ela foi composta?
A primeira coisa que pintou foi o refrão. Ô, ô, ô. Vem correndo me abraça e me beija. Eu pensei “Cara, esse negócio dá pedal”. Aí começamos. Vem provar do meu encanto, vem dizer que eu não fui tanto, neném. Onda do mar me levou, que é a nossa história, me levou, mas hoje estou aqui. Onda do mar me levou e eu resisti. Eu não imaginei, no meio daquela euforia do axé music, que essa música ia pegar. Ela começou a ser tocada por um, por outro, Margareth [Menezes] regravou com Jimmy Cliff, ganhou corpo e pegou asa.
Como surgiu a ideia de gravar com o Gilberto Gil?
Este disco ia ser produzido pelo Gil, mas na época ele estava com uma agenda muito cheia e acabei não realizando esse sonho. Aí eu falei com um amigo e ele sugeriu que eu o chamasse para gravar no disco. Ele pintou no estúdio e ainda me falou assim: “Eu gosto desse jeito que você canta, Lazzo. Vou cantar assim também”. Tanto é que ele faz umas variações em todo dia é dia santo meu beeeeem.
O que essa canção tem a ver com “Me Abraça e Me Beija” gravada pela Banda Eva?
Nada. Eu coloquei este título, porque não tinha nenhuma outra canção com este nome. Eu acho até que pelo fato desta música ter ganho corpo, não na minha voz, mas na voz de outros artistas, tinha uma necessidade — e aí é uma questão de estratégia política, racial, social — de abafar aquela música que fala de uma coisa que não estávamos afim de falar. Aí surge uma música com o mesmo nome, tocada com a Banda Eva. Como a minha música era tocada de forma espontânea nas rádios, porque eu não pagava jabá, ela ficava sempre bem atrás. A outra canção foi mais massificada. Eu não me incomodo com isso não. Se eles dizem que tem “Me Abraça e Me Beija” eu tenho “Me Abraça e Me Beija” aqui.
A terceira música, “Cidade do Amor”, é uma homenagem a Salvador. Como ela foi feita e o que te inspirou a escrevê-la?
Essa música é de Leguelé Marques e Wilton Coelho, que já são falecidos (nos créditos do álbum ela é creditada a Lazzo e W. Coelho). O Leguelé era um cara das antigas que fazia música. Um dia ele me procurou com essa música e falou que fez pensando em mim. A letra é linda. Você vê que ela tem uma pegada bem reggae. Hoje eu já toco ela mais soul.
Mas a que me parece mais na Jamaica é a música seguinte, “Mexa-se”
Na influência eu pequei, porque eu não sabia que não era permitido usar detalhes de uma música influenciada e não fazer a referência. Eu teria que colocar nela: adaptação feita influenciada pela música “Stir it up” de Bob Marley. Quando eu descobri o que dizia a letra entendi que precisava dar uma cutucada na galera, porque ela tava dançando reggae, mas não tava entendendo o que estava sendo dito. Falei com Teni Versoza e fizemos esse som.
Ao mesmo tempo que ela tem uma influência enorme do reggae, tem uma cuíca que marca a faixa inteira. De quem foi essa ideia?
Essa cuíca era para dar exatamente a conotação de que eu nunca tirei o meu pé do samba. Eu faço essa fusão musical, mas minha base foi sempre o samba, eu não deixo de colocar o groove do samba.
Todas as músicas do lado B do disco são em parceria com o Gileno Félix e ele começa com “Atrás do Pôr do Sol”, faixa que dá título ao álbum.
Ele me deu essa música de presente. Um dia ele me procurou e disse “Parceiro, acordei com essa coisa na cabeça” e me cantou a melodia. Era lindo, era o amor que gostaríamos de falar para a nossa nega sem nenhum tipo de bandeira. E decidimos cantar o amor.
“Eu queria sempre, através da música, levar uma mensagem de que a gente podia, e pode, transformar isso numa coisa muito maior, mais unitária. E esse amor parte principalmente da comunidade negra.”
Por que foi escolhida para batizar o disco?
Eu tenho uma ligação muito forte com o Sol. Os caras até falam que eu sou maluco, porque eu tenho mania de dizer que o Sol é o meu pai. No verão é exatamente onde eu me sinto fortificado.
A segunda música deste lado é “Entre Mil Constelações”, outra faixa romântica. Que vibe vocês estavam para escrever nessa pegada ? “Não podemos deixar nosso amor morrer, não não”.
Eu queria sempre, através da música, levar uma mensagem de que a gente podia, e pode, transformar isso numa coisa muito maior, mais unitária. E esse amor parte principalmente da comunidade negra. Eu observei que se você for negro e estiver em qualquer parte do mundo, passa um outro homem negro ou uma mulher negra e te cumprimentam, sem te conhecer. Te falam “Oi, boa tarde. Como vai?” Isso é normal e não é normal nas outras pessoas. Eu ia para os Estados Unidos sem falar bulhufas de inglês e um cara passava por mim e me cumprimentava, às vezes eu tomava o maior susto. E isso é também uma coisa da Bahia, por ela ser um pouco África e aí se estende a todo mundo. Lá, o cara te conhece 10h na praia, seja quem você for, e ao meio-dia você está sentado na mesa de almoço da casa dele. A família pergunta “Quem é esse daí?” e ele responde “É, meu amigo. Qual é seu nome mesmo?”.
Na sequência tem “Lá vem os Homens”. Quem são esses homens? É uma referência ao período da escravidão ou aos policiais de hoje?
É tudo, principalmente a polícia, mas ela faz uma referência também aos homens do Exército na época da Ditadura Militar. Esse toque de dizer “Cuidado, que sempre do seu lado vai ter alguém te observando”. Em algum lugar a gente está vivendo isso e, como jornalista, você sabe muito bem. Se você escreve alguma coisa fora do roteiro alguém vem e “opa”.
Tem uma frase que me chamou muita atenção que é “amigo não vá, o mundo é corpo inteiro”.
E é mesmo. Em qualquer lugar que você vá pode saber que vem bomba.
A última faixa, “Lamento”, também fala de uma reparação desde a escravidão. Essa “falsa igualdade” que você cantou em 1988 mudou hoje?
É a mesma. Quem gravou essa música na época foi Rosa Marya Colin.
Por que os discriminados continuam sendo os suspeitos?
Pois é, porque eu passo num lugar e sou suspeito. Uma vez eu estava passando na Avenida Paulista e duas senhoras me viram — na época eu andava com o cabelo dreadlocks —, e elas seguraram a bolsa. Aquilo está dito, não precisa falar mais nada. Se eu estava em pé na esquina o camburão da polícia passava e me pedia o documento. Por que eu sou suspeito? É a minha cor que diz que eu sou suspeito? Por que você não trabalha isso na sua cabeça? É muito louco isso. É um Brasil que precisa ser descoberto.
Você aparece na ficha técnica como produtor, técnico em gravação e mixagem, arranjos e arranjos de metais. Como você conseguiu fazer tanta coisa?
Em todas as minhas músicas eu já venho com o arranjo pronto, as viagens de metais, a viagem da música. Aí na hora da ficha técnica eu acabo fazendo tudo. Não que eu não quisesse, mas na época não tinha um grande produtor para estar ali comigo e a minha opinião acabava prevalecendo. Cara, este disco é como se fosse uma necessidade de seguir firme e forte para dar continuidade à luta. Antecedendo a isso eu tinha a possibilidade de ser produzido por um cara chamado Roberto Santana, que passou a bola para [Gilberto] Gil e que devido ao corre corre dele acabou não acontecendo. Chegou um momento que eu falei “ou eu dou um passo para a frente ou vou ficar esperando cair do céu um produtor”, e foi quando eu estalei e percebi que estava na hora. Comecei a produzir sozinho, chamei a banda, falei que não tinha dinheiro pra pagar, e entramos no estúdio. Eu não tinha nem experiência do que era estúdio, por isso eu levei um ano. Os músicos que tocavam comigo na época reclamavam muito, porque eu gostava de fazer laboratório, eu pegava uma música e passava o dia inteiro ensaiando pra deixar ela toda trabalhadinha. Eu fui no estúdio nessa viagem. Encontrei um técnico de som muito legal chamado Chocolate, um cara que tem um coração gigantesco e que falou. “Velho, eu já percebi a sua pegada”. Ele morava no Rio e tinha feito discos de grandes estrelas, como Tim Maia. Ele me deixou à vontade pra gravar.
Eu sinto uma sonoridade diferente em relação aos outros álbuns. Ele é menos estudião, a voz tá menos limpa. É isso mesmo?
Exatamente. A gente tinha recursos precários e não sabia como fazer e até hoje se você me perguntar eu não sei. Isso pra mim é tão prazeroso, porque eu me senti capaz e mesmo com coisas defeituosas eu segui. Na Bahia tinha uma coisa muito louca de esperar o tal produtor e quando ele chegava vinha cheio de marra, botando defeito em tudo. E às vezes ele botava tanto a mão que não era mais a sua música, era a música dele. Eu tive como produtor Elodi, que era uma grande violonista e o grande maestro Eduardo Assad, que era um grande pianista. Mas como ele concebe o reggae se ele não sente o reggae?
Entre os percussionistas, assim como em muitos outros discos baianos também, tinha o Carlinhos Brown. Qual era a presença dele nos estúdios nessa época?
Na Bahia em cada esquina tem mil percussionistas e ele era da WR. Seria loucura ele não estar. A gente chamou ele pra dar um axé e colocar qualquer coisa que ele estivesse viajando. Ele estava no começo da carreira dele e logo depois se tornou essa grande estrela que é hoje. Pra mim foi superinteressante ter ele ali.
E qual era o combustível para a criação?
Na época era muita maconha, porque estávamos influenciados pelo reggae. Eu me lembro que o baterista ficava com uma Bíblia na mão, um cigarro de maconha entre as páginas e outro aceso. Ele ficava ali na dele, sem euforia. E quando ele começava a tocar era um absurdo. Era um processo criativo em conjunto. O reggae chegou no Brasil em 1970, mas ele ganhou corpo nos anos 1980 após o show de reggae que teve de Gilberto Gil e Jimmy Cliff na Fonte Nova. Antecedendo a isso eu só me lembro de Chico Evangelista, cantando “Rastapé”.
Daquele disco com o Jorge Alfredo, né? Bahia Jamaica.
Exatamente. Não me lembro de outras coisas antes. Aí quando o Gil gravou “No Woman No Cry” deu pra ver que ele entendeu a parada toda. Foi uma música que o Brasil abraçou. Depois surgiu o Edson Gomes.
Vocês beberam na mesma fonte, né?
Ele era do Recôncavo. Eu lembro que ele tinha uma namorada na época que me disse que tinha um cara em Cachoeira que o apelido era Tim Maia, era o Edson Gomes. Quando ele ver esse groove ele vai pirar. Eu tive uma grande influência na apresentação do reggae pra ele. A gente ensaiava na casa de um menino chamado Nengo Vieira e o cara ouvia Bob Marley o dia inteiro. Eu montei uma banda chamada Estúdio 5, com quem eu gravei meu primeiro disco Viver, Sentir e Amar. Fui pra Salvador e na época teve um show na cidade e Zezé Motta participou. Os caras estavam eufóricos pra sair pra vida, pra tocar e ela falou no show “Essa banda de Lazzo é uma maravilha, vou levar junto comigo”. Os caras cresceram o zóião e na hora do meu show eles começaram a tocar mal pra caramba. Eu criei a banda e eles jogaram contra mim. Eu saí da banda e depois começaram a tocar com Edson Gomes, aí depois ele montou a Cão de Raça.
Como você chegou a esse repertório?
É um repertório de músicas que tinham sido compostas ali por perto e que faziam reflexões ao que estava acontecendo. Ele começou a ser feito em 1986 e lançado em 1988.
100 anos da Abolição.
Exatamente.
Por que é difícil encontrar seus discos nas plataformas digitais?
De tanto reclamarem eu contratei uma menina agora para ver isso.
Você sabe quantas cópias foram vendidas?
Não.
As gravadoras nunca falam, né?
Nunca falam e talvez até pelo fato de eu ser tão displicente na preocupação com isso eu nunca me toquei.
Ele deu dinheiro na época?
Não. Eu queria botar o material na rua.
Você gravou o disco de forma independente e demorou um ano. E a grana?
No final, eu tava com a dívida até o topo. Eu tava devendo uma baba a Wesley Rangel. Aí Roberto Santana sugeriu que eu participasse do selo de Rangel, chamado Nosso Som, e ele estava lançando uma editora chamada Nova República. Ele pediu que eu editasse com ele e aí ele viabilizou a distribuição.
Por que este foi o único disco seu que saiu pelo selo Nosso Som?
A Nosso Som não vingou, cada um foi pra seu lado.
Esse disco é muito conhecido na Bahia e tem verdadeiros hinos. Por que você acha que ele não despontou no Brasil inteiro?
Ele não despontou, primeiro, porque não tinha uma gravadora, era um disco independente. Segundo, porque quando ele surgiu tava num momento de euforia que ia na contramão exatamente da afirmação da negritude. O próprio Roberto Santana, que foi o cara que lançou, poderia ter jogado mais pra cima, mas todo mundo ficou na manha. Na Bahia eles diziam que o disco tinha uma sonoridade estranha. Mas isso não me incomodou muito, porque como eu nunca tive esse apoio de grandes produtores, grandes gravadoras, eu sempre me aquietei. De passo em passo a gente chega. Hoje eu estou com 37 anos de história musical, 61 anos de idade. O corpo, a vontade física não obedecem mais como quando eu tinha 20 anos, mas com certeza a minha musicalidade é uma criança que está começando a engatinhar e cada vez que eu faço uma coisa nova eu fico muito feliz. Eu não faço música como ela estava sendo feita na Bahia. Ela era imediata, para se tocar no Carnaval e no ano seguinte já era preciso ter uma nova. Eu faço som para daqui 10, 15, 20, 30 anos e por isso estamos aqui falando sobre este álbum.
Por que ele continua sendo tão atual?
Talvez porque eu não tenha esse compromisso com modismos, eu tenho compromisso com a música. Ela tem que ser feita para você ouvir hoje e daqui 20, 30, 40 anos. Eu tô falando de um Brasil que não se vê, que não se enxerga. De um Brasil indígena que não olha para o índio. Eu tô falando de um Brasil que hipocritamente se acha europeu e que não é. Se a gente entendesse que somos um país riquíssimo. É o Brasil deixando de lado o indígena, abominando o africano e se achando europeu. É uma coisa caricata o tempo todo. Isso me incomoda como cidadão.
Você acha que o fato de você falar de temas como escravidão, racismo e exaltar os negros te atrapalhou? Atrapalhou, porque a nossa sociedade é hipócrita e não gostava de tocar nesses temas. Eu via amigos meus que quando viam minhas músicas ou me ouviam falar sobre isso já diziam “Lá vem Lazzo”. Achavam que eu era vitimizado, que estava me doendo. Não estava me doendo, eu tenho orgulho de mostrar para uma sociedade inconsciente o quanto é bom ser filho de África, ser oriundo de África, ser oriundo daqueles índios que moravam aqui no Brasil antes e que as pessoas continuam matando na calçada como se fosse animal.
A Abolição é tema também de “14 de Maio”, sua música mais recente. O professor Hélio Santos define esta data como a mais longa da história do Brasil e você traduz isso esta canção. 30 anos depois a situação continua a mesma?
Continua. Hoje podemos dizer que o assunto está mais na pauta, mas a situação continua a mesma. O fato do assunto estar na pauta é para dizer que a solução não está em nós negros só, está em toda a sociedade. É preciso se debruçar em cima do problema, porque ele atinge a todos nós. A partir do momento que a gente entender isso e se ver no espelho desta maneira, a gente terá uma grande nação. Essa música é resultado de uma música que eu fiz com Jorge Portugal em 1985, “Alegria da Cidade”, que Margareth Menezes gravou e tomou um corpo tamanho que durante esses anos todos eu canto ela sem gravar. De uns tempos pra cá eu comentei com o Jorge que estava incomodado com ela, porque naquela época era interessante falarmos que nós éramos a alegria da cidade, porque estávamos ligados ao Carnaval, apesar de estarem nos tomando nossa música, nossa viagem musical, nossa magia, nossa energia. Com o decorrer do tempo ficou parecendo que eu estava assinando embaixo circo e pão. Eu não sou só a alegria da cidade. Apertei ele, passou um tempo, lá pra 2013, 2014, ele me disse “o dia seguinte ao 13 de Maio”.
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