A história de como a arte da capa de Rap É Compromisso, do Sabotage, um dos maiores clássicos do rap nacional, caiu na responsa do Leprechaun rolou por força do destino. Tatuador e desenhista desde os 16 anos, Ricardo Luís Pereira de Souza cresceu como um headbanger paulistano, ao som pesado das guitarras. Mas foi no rap que fez seu nome e as maiores amizades. Ele sempre curtiu experimentar, e desse modo realizou coisas bem diversas em sua carreira. Tais como esculturas para o Natal Mágico da cidade de Artur Nogueira, no interior de São Paulo, onde atualmente vive, alegorias para a escola de samba Mancha Verde e logotipos para marcas.
A primeira arte de rap veio do mesmo jeito que as outras demandas: era trampo que chegava. Só que, dessa vez, não se tratava de um freela qualquer, e, sim, da capa de Todos São Manos, do RZO. Com o sucesso da parceria e a afinidade imediata nas ideias, ele ficou camarada dos caras, começou a dar rolê na cena do rap e a produzir coisas para diversos outros grupos, MCs, grifes e selos do circuito: CDs, clipes, estampas, logos, cenários de palco e tudo mais. Em 2000, quando os manos do RZO (Helião e Sandrão) e do Racionais MC’s apadrinharam o Sabotage, o nome do Leprechaun para fazer a ilustra surgiu naturalmente.
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No aquecimento para o lançamento do aguardadíssimo disco póstumo do Sabota, que poderemos finalmente ouvir nesta segunda (17) no Facebook Live do Spotify, fomos atrás do cara, que é sujeito bastante reservado, e nunca foi muito de holofotes. No entanto, depois de alguns contatos, conseguimos trocar uma ideia bem de boa com ele. Ao telefone, proseamos a respeito dos bastidores intrínsecos à concepção do desenho que acabou estampando Rap É Compromisso e de outras colaborações à cultura hip hop.
Noisey: Qual foi a primeira capa de rap que você fez e como entrou nessa?
Leprechaun: Na verdade, eu era do rock. Aí apareceu uma agência de propaganda pedindo pra eu fazer uma capa de um CD de rap. Eu nunca tinha trabalhado com isso. Era a capa do RZO. E eu morava perto dos caras, só que ficava esse intermédio pela agência. Aí chegou uma hora que resolveram me botar em contato direto com os caras, pra resolver com eles. Então eu conheci os caras, comecei a ir nos ensaios. Porque eu precisava escutar um pouco a música pra pegar o clima, até ali eu só tinha escutado Racionais, de rap. Foi quando criei a arte de Todos São Manos, em 1998.
No rock e no metal você chegou a fazer arte para alguma banda?
Eu já tinha feito algumas pra bandas de rock só, que era o meu circuito. Mas nenhuma pra bandas conhecidas, era tudo independente. Sempre trabalhei com desenho. Então eu fazia logomarca pra bandas, pra empresas…
Saquei. Você tem formação nessa área, então, de desenho?
Fiz desenho e propaganda & publicidade. Engraçado que na época eu queria ter feito Panamericana, mas não dava pro meu pai pagar e tal. O que aconteceu é que um cara de uma banda de rock me disse que conhecia um rapaz que estudava na Panamericana e que não tinha tempo de fazer os desenhos. Então ele começou a pagar pra eu fazer. Naquele ano eu fiz desenhos pra uns 20 caras que estudavam na Escola Panamericana de Artes. Então é como se eu tivesse estudado lá, né, entre aspas [risos].
[risos] Podecrê! Mas aí então como te chamaram pra fazer a arte do RZO?
Um dos rapazes, quando se formou, montou uma agência de propaganda e me indicou pro trampo do RZO. Ele achou que não era bem um trampo pra ele fazer e passou pra mim.
A pegada que você trouxe do rock foi passada para o rap, de certa forma?
Eu levei pro rap um pouco dos traços das capas de rock, talvez mais do punk, na verdade. Tem algumas capas de discos nacionais desenhadas, bem antigas, que vejo como referências, tipo Martinho da Vila. É um estilo que eu gosto.
‘Não tenho foto. Não deixo os caras tirarem foto de mim. Mas tenho o RG, serve?’. E me sacou três RGs, véio! [risos]. Cada um com um nome diferente.
Quando rolou o trampo do Sabota você estava focado no quê?
Na época do convite pra fazer a do Sabota eu estava fazendo tatuagem. Comecei a tatuar com 16 anos. Terminei o curso de desenho e propaganda e montei o estúdio de tatuagem. Aí apareceram alguns trampos de desenho, logomarca, e fui pegando também. Mas na verdade eu estava já pra abandonar o desenho e ficar só com a tattoo mesmo. Quando pintou o trampo do Sabotage eu já estava com 23 anos.
Mas eventualmente pintavam os trampos de desenho, ilustração…
Pintavam. Aí nessas apareceu o rap e, no paralelo, trabalhos pra escolas de samba. Fiquei quase oitos anos trampando no carnaval, fazendo desenho pra escola de samba. Quase rolou de fazer uma arte pro Charlie Brown Jr também, mas acabou não dando certo.
O próprio Sabotage chegou e te passou umas referências pra capa?
As primeiras ideias não vieram do Sabota, porque quem produzia ele era o RZO. Nos ensaios e no rolê que eu dava com o pessoal do RZO eles já falavam que estavam trazendo um cara da Zona Sul pra produzir, e que queriam que eu fizesse a capa dele. Aí o Helião e o Sandrão vieram com um monte de ideias, e aquilo não era nada do que o Sabotage queria.
Essa foi a deixa pra você desenvolver uma proximidade maior com ele?
Ele me ligou do Canão, me chamou pra ir pra lá, me apresentou pro pessoal tudo do Canão. Aí eu falei pra ele que precisava de uma foto pra fazer um desenho do rosto dele na capa. Só que o ele disse: “Não tenho foto. Não deixo os caras tirarem foto de mim. Mas tenho o RG, serve?”. E me sacou três RGs, véio! [risos]. Cada um com um nome diferente: “É só você escolher qual você quer.” [risos] Peguei um lá, fiquei com o documento um tempo.
Legal que a partir dessa simples 3×4 você reconstituiu o rosto dele em outra perspectiva…
Sim! O que eu tentei passar com aquele retrato, em que ele aparece com uma pose de quem está chegando de mansinho pra sabotar, era a vontade dele de conseguir infiltrar o rap não só na periferia. Essa foi a sabotagem dele, de colocar o rap em todo lugar. Foi ele quem abriu o caminho. Eu entendi dessa forma na época. Por isso fiz o desenho dando a ideia de que era pra todo mundo ficar quieto que o Sabotage estava chegando. Na capa, ele só fez a exigência de que eu colocasse uma bandana e escrevesse “Brooklyn / Sul”. Só isso.
Você fez diferentes versões dessa proposta?
Eu fiz outras capas dentro dessa ideia, só que ele sempre levava pro RZO ver. E eles não queriam. A capa já estava pronta, mas eles vetaram. Mas nessas ele já estava negociando o Racionais, já não sairia mais pelo RZO. Foi quando eu levei pro Blue e pro Brown e eles gostaram e falaram: “Faz tudo, mano. Faz a arte, as fotos, tudo”.
Você acha que se o disco saísse com outra capa, a arte seria tão emblemática?
As propostas de capa que o RZO havia passado para mim, sinceramente, não teria impacto nenhum. Ia ficar muito vago, não ia ficar legal. E depois a capa estourou. Até hoje, anos depois, eu vejo por aí. Tem gente que não sabe nem quem é o Sabotage direito, mas reconhece o desenho.
Você ficou bem amigo do Sabota, né? Lembra-se de alguma história engraçada com ele?
Ficamos super amigos. Ia nos shows com ele. Uma mão teve um show lá na quebrada do Capão Redondo, nós fomos buscar ele, e era uma caravana, tinha uns cinco carros. Precisamos parar numa farmácia pra alguém comprar algo. Nessas, de dentro do carro ele viu o irmão dele, com deficiência mental, que estava sumido fazia três anos! Ele saltou do carro gritando “Meu irmão! Meu irmão”. Levamos ele embora, compramos roupa, chinelo, pois ele estava descalço, levamos pra casa do Zezinho, perto de onde rolaria o show, tomou um banho… Foi muito louco isso aí.
Com o rap eu nunca ganhei dinheiro. Pelo menos naquela época, não. Pra você se dedicar a esse barato você tem que estar acompanhando, e eu não estava.
Pô, que sorte! Acharam o cara do nada…
Teve uma outra mão, quando a gente foi levar ele num outro som. Paramos no bar do Zezinho. A gente sempre parava lá, pois ele era super amigo nosso, falecido. De repente ele sumiu ali das quebradas. Deu o horário do show, nada dele, procura daqui, procura dali… Todo mundo já começou a ficar desesperado achando que tinham desaparecido com o Sabotage… Quando ele surge do nada, de boa, com uma bandeja, trazendo um bolo de fubá e um café: “Ah, eu estava lá em cima, uma tiazinha me parou na rua e me levou pra casa dela pra comer um bolo.” Ele foi comendo bolo até a hora do show. [risos] Era muito boa gente. Acompanhei a gravação do filme O Invasor, com ele. Quando ficou pronto ele me chamou pra ver, assisti na cadeira do Beto Brant, o diretor.
Com que galera do rap você fez mais amizade?
Mais com o Sabotage, a gente frequentava a casa um do outro, éramos amigos mesmo. Só que com todos quem trabalhei eu tive amizade.
Cita um pessoal aí com quem você já trabalhou, então, pros leitores terem uma dimensão.
RZO (Todos São Manos), Espaço Rap (Coletânea Volume 2), Código Fatal (Guerra Fria), Balanço Rap, do Ice Blue, 509-E – o Dexter me ligou lá do Carandiru –, Conexão Carandiru – outro grupo do Dexter com o Afro-X –, Di Função – que é bem conhecido –, Pseudônimos, Eclesiastes – que é um rap gospel, legal também –, Consciência Humana, Condenação Brutal, Combinação Lethal – fiz as duas capas. Fiz desenhos pra marcas também, pra Subsolo, Caos, Zambia (selo), Preto Tipo A, Pixaim, XXL. E vários trampos de palco pro Racionais, além de uns desenhos.
Nunca rolou nada de capa pro Racionais?
Capa, não fiz. Fiz logomarca, uma linha de roupas que produziram. De marcante, fiz os símbolos da caveira e os palhaços.
Você também produziu e dirigiu uns clipes em animação, correto?
Fiz do Império ZO, “Corte do Diabo”, e, depois que o Sabota faleceu, eu falei com o produtor dele, perguntei se ele tinha pensado em alguma coisa, pra homenagear. Escolhemos “Sai da Frente”, porque ela era mais curta, ficaria mais fácil pra desenhar. Isso tudo foi feito na irmandade mesmo, pra homenagear, ninguém ganhou por isso. E foi na época do VMB, nós corremos pra terminar, mas não deu tempo de entrar pra concorrer. Acabamos entregando o clipe depois.
Você não é um cara muito de ficar se promovendo no meio, né?
Depois que o Sabotage morreu, eu fui me afastando. Aí logo depois esse Zezinho, que eu te falei, onde a gente sempre parava, lá na zona sul, foi assassinado também. Mantive contato só com algumas pessoas.
Mas por onde você circula o pessoal tá ligado na sua trajetória, na sua contribuição pro rap?
É engraçado, porque às vezes eu estou em algum lugar e alguém fala da capa do Sabotage, mas eu nem me importo, fico na minha. Deixo rolar. Mas pelo menos falam bem.
Nunca li matérias dando detalhes sobre esse lance da arte da capa…
Na época saiu nuns jornaizinhos de rap, umas três, quatro matérias. Depois fiz pra Globo, pra Record, mas é um negócio que eu não gosto, é meio esquisito. E do meu trampo atual também vira e mexe surge uma entrevista, alguma coisa, mas eu prefiro ficar de boa. Não vou em estreia, nada.
Atualmente, com o que você está envolvido? Não tem mais feito capas de disco?
Só estou em escultura agora. Capa de disco, a última que fiz foi a Black Total, uma coletânea.
Mas se aparecer alguém pedindo, você faz? Ou desencanou desse lance?
Faço, cara. O Dexter saiu da cadeia, e eu fui falar com ele, fiz uns logos pra ele do Oitavo Anjo. Porque a gente só se conhecia por telefone. Ele me chamou pra correr com ele. Só que eu estava numa situação que, assim, com o rap eu nunca ganhei dinheiro. Pelo menos naquela época, não. Pra você se dedicar a esse barato, você tem que estar acompanhando, e eu não estava. Daí eu falei: “Olha, Dexter, o que você precisar, pode me ligar que eu faço pra você, mas, correr junto, não vai dar, não.” Preferi ir pro outro caminho.
Ficha técnica:
Sabotage, Rap é Compromisso
Desenho da capa: Leprechaun
Projeto gráfico do CD, vinil e pôster: Bigu Responsa @ CND
Fotos: Zanone Fraissat