Luxo, tretas e trabalho escravo: como será Catar-2022, a Copa-ostentação

A Copa de 2022 será a última a ser disputada com 32 seleções e a primeira fora do verão europeu – acontecerá em novembro e dezembro, quando as temperaturas no Catar são um pouco menos sufocantes. Mas, além do tradicional espetáculo dos craques, o primeiro Mundial realizado no Oriente Médio será um show de ostentação, um capricho de bilionários em busca de autoafirmação regional que já deixou marcas difíceis de apagar no maior evento esportivo do planeta.

A escolha do Catar com sede foi feita em novembro de 2010, na mesma votação que elegeu a Rússia como sede da atual Copa. Na votação feita apenas por membros do Comitê Executivo, o Catar precisou de quatro turnos para superar Estados Unidos, Coreia do Sul, Japão e Austrália, nesta ordem – a cada rodada o menos votado era eliminado. A candidatura catariana ganhou todos os turnos, mas só conseguiu maioria na última votação, 14 a 8 contra os norte-americanos.

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A campanha teve apoio direto do então presidente da Fifa, Joseph Blatter, que dizia abertamente: “o mundo árabe merece a Copa do Mundo”. E denúncias a rodo de corrupção, que terminaram por implodir a cartolagem – Blatter hoje está banido do futebol, assim como o francês Michel Platini, craque em campo e ex-presidente da Uefa, também acusado de receber suborno para apoiar a campanha do Catar. A investigação se estendeu por outras denúncias, como ilegalidades na venda de direitos de TV, abrangeu o FBI e chegou até os dirigentes brasileiros, como Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo del Nero – coincidência ou não, os três últimos presidentes da CBF. No ano passado, curiosamente, Blatter, já fora da Fifa, admitiu que a escolha “foi um erro”.

Mas nem essas denúncias e tampouco o descumprimento de promessas de campanha afetaram a escolha. Na época da votação, o país garantiu que pelo menos cinco dos estádios teriam uma tecnologia de refrigeração que se estenderia ao campo, garantindo a saúde dos jogadores – visto que as temperaturas por lá podem chegar a até 50 graus durante o dia durante junho e julho.

Só que a ideia não funcionou, e por isso a Fifa acabou aceitando a proposta de mudar a Copa para novembro, o que deve provocar um belo rebu no calendário do futebol nos próximos anos. Além disso, a festa será mais curta: em vez dos 31 dias das últimas edições, serão exatos 28, de 21 de novembro a 18 de dezembro. Ao menos nesse período as temperaturas prometem ser mais amenas, não passando dos 40 graus (nada que os jogadores não tenham vivido jogando ao sol do meio-dia da Califórnia em 1994, por exemplo).

Reduzindo distâncias

Se na Rússia os jogadores tiveram de encarar longas jornadas aéreas entre uma partida e outra, pelo menos esse problema não vai existir no Catar. O país é um território minúsculo, de pouco mais de 14 mil quilômetros quadrados, dividido em 10 municípios. Os 12 estádios prometidos inicialmente foram reduzidos a oito, mas nem por isso deixará de ser a Copa mais cara de todos os tempos: os gastos em infraestrutura estão estimados na bagatela de US$ 45 bilhões, quase R$ 180 bilhões na cotação atual. Uma das obras prevê a construção de uma cidade inteira, Losail, no entorno do Estádio Nacional, que terá capacidade para 86 mil habitantes e receberá a abertura e a decisão. Hoje, a cidade está 80% pronta, segundo os organizadores.

Será o cartão de visitas perfeito para a família real ostentar sua riqueza, vinda da exploração de petróleo e gás natural e expandida com investimentos financeiros espalhados pelo mundo nos últimos anos. O país é governado pelo emir Tamim bin Hamad Al Thani, 38 anos, chefe de Estado mais jovem do mundo e um apaixonado desde sempre por esportes, que assumiu o poder em 2013 após a renúncia do pai, Hamad bin Khalifa Al Thani, que por sua vez tinha dado um golpe de estado contra o próprio pai, Khalifa bin Hamad Al Thani (não confunda os nomes), em 1995. Mas a cabeça da Copa é o irmão mais novo do emir, Mohammed bin Hamad Al Thani, que liderou a candidatura junto à Fifa, já foi capitão da seleção de hipismo do país e organizou o projeto de expansão esportiva do Catar.

Um projeto que tem andado de vento em popa fora dos campos. O país, por meio de uma empresa que tem a família real entre os acionistas, é dono do Paris Saint-Germain desde 2012. A Qatar Airways, empresa aérea estatal, patrocina o Barcelona. Dentro de campo, porém, os resultados são pífios: o time nunca esteve nem perde de se classificar para uma Copa do Mundo, suas melhores campanhas na Copa da Ásia são dois quintos lugares na década de 1980 e os únicos títulos vieram na Copa do Golfo, em 1992, 2004 w 2014. O torneio, como o nome diz, reúne as oito seleções do Golfo Pérsico. A última conquista foi na Arábia Saudita e veio com uma vitória de virada sobre os donos da casa, por 2 a 1.No último ranking da Fifa, o Catar estava em 98º lugar, atrás de todos os participantes da Copa da Rússia.

No Brasil, a seleção do Catar ficou famosa por naturalizar o atacante Emerson – que ganhou o apelido Sheik justamente nessa época. Ele chegou até a defender a seleção em alguns jogos das Eliminatórias, mas o regulamento da época não permitia que um jogador mudasse de seleção se tivesse jogado nas categorias de base de outra – e o atacante tinha defendido o Brasil no Sul-Americano Sub-20 de 1999. A seleção do Catar acabou perdendo pontos no torneio e o atacante foi punido pela Fifa.

Projeto de longo prazo

A realização da Copa no Oriente Médio coroa definitivamente o projeto iniciado há pouco mais de quatro décadas por um brasileiro. João Havelange, presidente da então Confederação Brasileira de Desportos nos anos dos três primeiros títulos do Brasil, resolveu alçar voos maiores, e para isso não economizou: rodou o mundo e saiu atrás de apoio para destronar o então presidente da Fifa, o inglês Stanley Rous, numa votação que seria realizada em Munique, na Alemanha Ocidental, às vésperas da abertura da Copa de 1974.

Sua principal plataforma eleitoral era expandir o futebol pelo mundo além do eixo Europa-América do Sul, que controlava não só a realização das competições, mas a própria participação. Para isso, prometia ampliar o número de participantes da Copa, até então limitados a 16, a elite da elite. Prometia também dinheiro: com o auxílio de patrocinadores fortes, poderia financiar escolinhas de formação que fariam o nível dos jogadores no mundo todo crescer, até brigar de igual para igual com europeus e sul-americanos.

Como sabemos, Havelange venceu a eleição. Selou parcerias que existem até hoje com patrocinadores como a Adidas e a Coca-Cola, expandiu a Copa de 16 para 24 seleções, e depois para 32, criou competições de base – primeiro o Mundial de Juniores, hoje Sub-20, depois o de Juvenis (Sub-17 – e femininas. O Oriente Médio teve papel fundamental nessa expansão, desde o apoio à eleição do cartola brasileiro até a organização de diversos torneios, passando pela importação de craques e técnicos da elite do futebol.

Afinal, a época de ampliação do planeta bola coincidiu com o enriquecimento acelerado dos países do Oriente Médio, provocada principalmente pela crise do petróleo em 1973. Com dinheiro de sobra e uma paixão avassaladora pelo futebol, os xeques passaram a investir pesado em estrelas de todos os lados, principalmente do Brasil. Foi na Arábia Saudita que Rivellino se aposentou, por exemplo, e que Telê Santana passou boa parte do “exílio” entre as frustrações de 1982 e 1986.

A Copa da Espanha, aliás, marca a primeira – e mais bizarra – participação de uma seleção da região em um Mundial. O Kuwait se classificou, na primeira edição com 24 seleções, mas caiu num grupo complicado, com Inglaterra, França e Tchecoslováquia. Carlos Alberto Parreira, ele mesmo, o técnico que seria do tetra, foi convidado para treinar a equipe, que ficou marcada menos pela bola do que pela falcatrua do príncipe Fahd Al-Sabab, que conseguiu anular um gol com interferência externa 36 anos antes do VAR.

A França vencia o jogo por 3 a 1, em Valladolid, quando Platini (olha ele aqui de novo) tocou para Giresse, que marcou. Mas os kuwaitianos reclamaram: só pararam na jogada porque se confundiram com um apito, que não era o do juiz. Lá das tribunas, o príncipe dizia para não aceitarem o gol – até que ele decidiu descer para o campo e tretar pessoalmente com o árbitro, Miroslav Stupar, da União Soviética. O juiz achou melhor não contrariar o xeque e anulou o gol – a França depois marcaria outro e selaria a goleada em 4 a 1, mesmo. Há quem diga ter visto um apito maroto no meio das roupas do príncipe. Parreira voltaria à região para mais duas Copas: treinou os Emirados Árabes em 1990 e a Arábia Saudita em 1998, quando teve a duvidosa honra de ser o primeiro técnico demitido durante um Mundial – após derrotas para Dinamarca e França.

Até hoje a melhor campanha de uma seleção do Oriente Médio numa Copa é da Arábia Saudita, que em 1994 venceu dois jogos, contra Marrocos e Bélgica, e chegou às oitavas de final, onde caiu diante da Suécia. Ficou para a história o golaço de Said Al Owairan contra os belgas, driblando meio time desde a defesa, gol que lhe rendeu a alcunha “Maradona das Arábias” pela semelhança com o gol de Diego contra os ingleses, em 1986. Nesta Copa, os sauditas apanharam da Rússia na estreia, deram trabalho ao Uruguai e conseguiram vencer o Egito, num jogo de eliminados.

Busca por autoafirmação

A Arábia Saudita é contumaz anfitriã da Fifa. Praticamente inventou a Copa das Confederações e já organizou dois Mundiais de categorias de base. Os Emirados Árabes também sediaram torneios de jovens e neste ano hospedarão pela quarta vez o Mundial de Clubes. Já o Catar só recebeu uma competição da Fifa, o Mundial Sub-20 de 1995, quando a Argentina de Sorín derrotou o Brasil de Caio Ribeiro por 2 a 0 na final – o hoje comentarista global foi eleito o melhor jogador do torneio.

Parece estranho que a Copa chegue ao Oriente Médio justamente no menor e historicamente menos boleiro país da região. Percebe-se, assim, que a decisão de se candidatar e receber as principais seleções de futebol do mundo passou não só pela ostentação, mas pela necessidade de afirmação de poder político-econômico dentro da sempre conturbada região.

O Catar passou a maior parte do século 20 sob domínio britânico. Conseguiu sua independência política apenas em 1971, quando começava a se aproveitar da riqueza garantida pelo petróleo, descoberto na década de 1940. Mas o grande salto foi dado na década seguinte, com a descoberta de campos gigantescos de gás natural que deixaram o país, neste século, entre as cinco maiores rendas per capita do mundo: o país tem cerca de 2,5 milhões de habitantes, que ganham em média US$ 100 mil por ano, ou oito vezes mais que um brasileiro.

Mas nem tudo são flores. O país é acusado pela Anistia Internacional de usar trabalho escravo nas suas obras, inclusive as da Copa, feitas por imigrantes pobres de países próximos, como o Nepal, a Índia e o Bangladesh, e de esconder mortes por acidente de trabalho – o governo nega, mas o processo tem sido de pouca transparência, como quase tudo lá, já que se trata de uma monarquia absolutista, onde a vontade do emir é lei – é ele, por exemplo, que escolhe todos os integrantes do Conselho Consultivo que faz as vezes de parlamento.

Para piorar, o país, que foi ponto de apoio na primeira Guerra do Golfo e hoje tem instalada uma enorme base aérea norte-americana, tem andado às turras com seus vizinhos, especialmente com a Arábia Saudita, único com quem tem fronteira terrestre. Os sauditas romperam laços diplomáticos, assim como Egito, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Líbia, Iêmen e Maldivas, dizendo que o governo do Catar apoia grupos terroristas, como a Irmandade Muçulmana, no Egito, e o Hamas, na Palestina, além de dar suporte a grupos rebeldes na Líbia e na Síria. No mês passado, saiu a notícia de que a Arábia Saudita ameaça construir um canal em todos os 60 km de extensão da fronteira, o que transformaria o Catar, na prática, em uma ilha.

É nesse cenário nada pacífico que o país se prepara para receber a maior festa do futebol mundial daqui a quatro anos e alguns meses: ao mesmo tempo em que pretende exibir sua opulência ao mundo, precisa da Copa como prova de força e resistência nos embates regionais. Será certamente inesquecível – resta saber por que motivos.

Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas , sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.

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