Mais dez filmes que devias ver quando tudo o resto te aborrece

​Depois da óptima reacção popular ao primeiro apanhado de dez filmes recomendados (obrigado!), o George Lucas que há em mim não resistiu a voltar com um segundo volume de longas-metragens altamente recomendáveis. A verdade é que gostamos de vos ver felizes e a programação de cinema na TV continua a ser o barrete que se sabe, com excepção de umas coisitas simbólicas nos dois canais da RTP e uns quantos oásis no enorme deserto do cabo. Mas isto não é uma lista dedicada a determinado género ou década. Isso seria chato e bastante limitado. A selecção que se segue incide em todo o tipo de filmes que vale a pena dar a conhecer a um amigo. Considerem-se portanto amigos durante as próximas linhas. 

Electra Glide in Blue

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Terão sido vários os motivos que contribuíram para que, ainda hoje, Electra Glide in Blue mantenha o seu lugar entre os mais subestimados filmes dos anos setenta: a começar pelo título pouco chamativo e terminando num poster que não recorre a ladrões para justificar tantos polícias. É aliás muito difícil descortinar o tema de Electra Glide in Blue olhando apenas para as suas imagens promocionais: trata-se de um objecto de exploitation com polícias corruptos e malvados? Será um filme de acção limitado ao lado da lei? Festim camp com homens fardados da cabeça aos pés? Electra Glide in Blue esquiva-se a todo o tipo de expectativas fáceis e é sobretudo uma obra sem igual, até mesmo pelas circunstâncias que o rodeiam: foi o único filme do realizador James William Guercio (mais conhecido pelo seu trabalho como músico e produtor dos Chicago). 

O que Guercio faz extremamente bem, durante toda a duração deste policial atípico, é abordar grandes questões humanas (tais como a dignidade e a auto-superação) recorrendo a vidas comuns dispersas pela paisagem muito country do Arizona (impressionantemente fotografado por Conrad Hall). É óbvio que isto, a partir do momento em que envolve armas, passa a ser um precioso protótipo do cinema dos irmãos Coen. Além disso, qualquer avaliação estaria incompleta se não reconhecesse a forma genial como William Guercio aplica canções inteiras na composição de Electra Glide in Blue (a banda-sonora é naturalmente um estrondo). Recordemos que Convoy, de Sam Peckinpah, tentou, em 1978, transformar uma canção country num filme de proletariado e não se deu especialmente bem nisso. Inversamente, Electra Glide in Blue é um grande filme que muito facilmente poderia ter sido também uma tremenda canção.

Lenny

 Embora Lenny pareça por vezes demasiado distante e instável, para que algum tipo de empatia seja alcançada, essas características são muito mais opções do que propriamente falhas. A tradição da comédia habituou-nos à ideia de que um cómico deve fazer rir e assim deixar as pessoas descontraídas. Lenny dá a volta a essa noção ao retratar um comediante de stand-up (o histórico Lenny Bruce) como uma figura de intervenção complexa e cheia de contradições – alguém que deixa o seu público tenso e obrigado a pensar na sua própria culpa americana. Uma figura que aliás anda a mil durante todo o filme e que só poderia mesmo ser interpretada por um actor com o extraordinário fôlego de Dustin Hoffman (que no final entra em modo de overacting ainda assim justificado). Lenny é, além disso, um excelente filme sobre o sofrimento e a angústia que podem estar escondidos por detrás de uma performance em palco. A vertente pública da comédia surge como catarse para uma vida privada esburacada por relações falhadas e dependências. Nesse aspecto Lenny colhe todas as referências que John Cassavetes deu à linguagem de um cinema feito de pessoas e não de truques visuais. Sem tirar qualquer mérito a Bob Fosse, que é um grande analista do desencanto das vidas célebres, Lenny é sem dúvida um dos mais significantes ecos das marcas deixadas por Cassavetes e é por isso também um filme obrigatório.​​

Marathon Man

Sabendo que a função do thriller passa também por deixar o seu público desamparado de informação e de certezas em geral, Marathon Man é um marco no género, sobretudo pela forma como se atreve a manter as incógnitas da sua densa intriga até a um ponto em que o filme dá pistas ou então morre. Depois de abrir o jogo, Marathon Man pega em toda a energia feita de tensão acumulada e aplica-a em sequências que quase largam faíscas. John Schlesinger nunca teme explorar uma história de fundamento político recorrendo ao estilo abusado das bandas-desenhadas mais violentas. É nesse paradoxo que Marathon Man encontra toda a força que faz dele um thriller imenso. A banda-sonora de Michael Small (totalmente impiedosa com o coração das pessoas) e a grandeza recorrente de Dustin Hoffman completam o ramalhete.

Phase IV

De onde surgiu exactamente este Phase IV? É provável que alguém coloque a si mesmo essa questão a certa altura de um filme de puro confronto científico entre o Homem e as Formigas, sem vencedores fáceis ou um melodrama consistente para manter viva a atenção. São aliás poucas as cedências Hollywoodescas feitas por Phase IV, que, na sua essência, aposta muito mais em mostrar como duas espécies tão diferentes podem levar a cabo um duelo taco-a-taco feito de estratégias complexas. Sem ser extraordinário no desenvolvimento de personagens, Phase IV aproxima-me do brilhante quando examina a forma como se estudam mutuamente estes adversários improváveis. Provavelmente foi produzido com dinheiro da Paramount destinado a gratificar o trabalho de Saul Bass, um dos mais engenhosos criadores de posters e opening credits de sempre, que aqui assume as funções de realizador. Hoje encaixa perfeitamente em qualquer conjunto de filmes transgressores da década de 70.

Prince of the City

Prince of the City é mais um daqueles filmes que falhou na bilheteira e na conquista de uma reputação sólida pelas melhores razões. Até hoje ainda não conheceu uma consagração à sua medida e, mesmo assim, é um policial situado em Nova Iorque que não fica a dever nada a tantos outros decorridos na mesma cidade. Filmado a partir de um argumento inspirado por factos verídicos, este Prince of the City conta a história de um polícia que aceita, embora contra a sua vontade, levar a cabo escutas a favor de uns quantos membros do Departamento de Justiça pouco preocupados com as vidas queimadas nas investigações. Isso não significa nada de extraordinário até ao momento em que Sidney Lumet aproveita toda a complexidade disso para traçar um aprofundado perfil psicológico do seu personagem principal: um detective Daniel Ciello, que Treat Williams agarra ferozmente, talvez consciente de que tinha nas mãos o grande personagem da sua carreira. Mas Treat Williams nunca foi uma estrela (este seu papel chegou a estar apontado a DeNiro) e aqui vemo-lo num registo demasiado ambíguo para que seja capaz de ter o público do seu lado ou contra ele (aquilo que, no fundo, coloca os actores na memória das pessoas). Nada disso porém impede que o Ciello de Treat Williams (bem apoiado por um elenco sem furos) mereça um lugar entre os grandes polícias de Nova Iorque representados em filme, assim como Prince of the City merece muito mais do que ser um policial algo esquecido na sombra de 1981.

Seconds

Deve ter sido por volta da sua metade que Seconds me deixou convencido de que estava a ver um sci-fi existencialista capaz de marcar a sua época e de estabelecer uma fórmula para ser aproveitada nas seguintes décadas (o que até acabou por acontecer). Até aí todos os seus argumentos variavam entre o majestoso e o muito promissor: logo de início, os créditos do mestre Saul Bass efectuam a transição necessária para uma dimensão deformada e, durante a hora que se segue, ficamos amarrados a uma história de um senhor de idade que, depois de ser desafiado por um amigo aparentemente morto, decide trocar o seu corpo por outro mais jovem. Mas nem tudo corre bem e é aí que se instala o desconforto. Posto isto, a variedade de recursos visuais que John Frankheimer explora para obter uma sensação de “prisão psicológica” é pouco menos que sinfónica e isso faz com que Seconds, mesmo em momentos mais desinspirados, seja uma fabulosa experiência de considerável valor psicadélico. Mas Seconds, assim como o sucedâneo The Matrix, falham na obtenção de um desfecho satisfatório para as grandes questões existenciais a que se propõem (no caso do primeiro, a questão é: “Queremos rejuvenescer, sim, mas estaremos dispostos a pagar o custo disso?”). É curioso que ambos os filmes recorram a excessivas cenas de orgia (ainda assim a de Seconds é muito melhor) quando se esgotam as respostas para uma equação difícil. Longe de ser um filme perfeito, Seconds merece mesmo assim ser visto nem que seja pelo avanço que representa na ficção-científica.

The Bad and the Beautiful

Partindo da ideia de que Hollywood é um lugar altamente propício ao apodrecimento de toda a ética, tal como já mostrava “Sunset Boulevard” em 1950, o realizador Vincente Minnelli leva “The Bad and the Beautiful” um pouco mais longe. Mas só desafiando o que já estava feito, com “Sunset Boulevard”, é que Minnelli chega a um estupendo filme sobre como a gratidão exige uma humildade que é praticamente inexistente na indústria de Hollywood (e essa visão é implacavelmente premonitória). Consegue esse feito com um excelente rendimento muito por causa da complexidade monstruosa de um personagem (um Jonathan Shields majestoso na rendição de Kirk Douglas), que, apesar de por vezes parecer diabólico e tirânico, é o mais capaz de dar, numa realidade paralela em que toda a gente só quer para si. Para agitar o seu jogo de personagens, Minnelli preenche a sua história de ambições ao rubro, com um subtexto sobre o peso de um nome de família no meio artístico (e a desgraça que por vezes há nisso), e todo um retrato panorâmico e ácido dos bastidores da produção de filmes vários. No final sobram poucas dúvidas de que este se trata de um soberbo filme sobre fazer filmes.

The Parallax View

A vitória de “The Parallax View” assenta sobretudo numa convicção que ajudou a engrandecer outros tantos filmes: os Estados Unidos da América, apesar de todos os seus males e de um sistema político corrompido, não deixam de ser um espantoso palco para uma conspiração. É esse o fundamento que torna espectacular cada um dos minutos de “North By Northwest” e é por aí que “The Parallax View” conquista o seu lugar entre os mais marcantes thrillers políticos de uma década (a de setenta) que os teve em larga quantidade (na ressaca do atentado de John F. Kennedy). Mas, onde “North By Northwest” utiliza alguns dos mais emblemáticos cenários norte-americanos (Rushmore) a favor do entretenimento (ou não fosse Hitchcock o seu realizador), “The Parallax View” foca a mesma América, com uma perspectiva majestosa semelhante, no sentido de mostrar a dimensão do que se perdeu (ou estaria a ser perdido) com tantas divergências políticas e a metade de um país interessada em aniquilar a outra. Com tudo isto garantido, é mais fácil perdoar uma série de deslizes a “The Parallax View”: nomeadamente a explosão de um avião fora de cena, com recurso a um ridículo tremor da imagem (um recurso quase Ed Wood), e erros de continuidade como o mágico desaparecimento da lama no rosto de Warren Beatty a certa altura. Nada disso contudo afecta um filme que até inclui uma cena de lavagem cerebral, como já não víamos desde “A Laranja Mecânica”.

Picnic at Hanging Rock

Em primeira instância, o que sobressai em “Picnic at Hanging Rock” é a riqueza das suas alegorias e o rigor com que gere o seu mistério (tão grande como o próprio rochedo do título). Esta história de inocência perdida decorre num ambiente talvez demasiado delicado para ser violado por pistas óbvias e momentos sensacionalistas, mas toda essa serenidade aparente não é mais do que uma camuflagem para um acontecimento de contornos horrorosos. Na configuração do puzzle que apresenta, o realizador Peter Weir estava ainda longe daquela postura muito caprichosa dos realizadores que hoje fazem filmes profundamente estranhos e enigmáticos, embora muitas vezes sem solução plausível. Não é esse o caso, mesmo que “Picnic at Hanging Rock” seja muito mais generoso na vertente visual e na invocação de algumas frases-chave, do que no fornecimento de pistas destinadas a um encaixe básico e inevitável. A própria natureza do argumento é demasiado ambígua para que, sem demais questões, tenhamos certezas absolutas sobre se este é um romance de época ou um filme de terror em que praticamente todo o terror surge serenado pelas pan pipes da banda-sonora. “Picnic at Hanging Rock” possui a capacidade ilusória do verdadeiro cinema e é suficientemente amplo para nos fazer repensar objectos pop (póstumos) tão diversos como a série Twin Peaks, o vídeo “Everybody Hurts”, dos R.E.M., ou até mesmo a canção “Jardins Proibidos” (que dei por mim a cantar poucos depois de ter visto o filme).

Chato’s Land

Sem ser um western especialmente interessante, “Chato’s Land” vale sobretudo como documento da grandeza incomparável de Charles Bronson, que não precisa sequer de muito mais que vinte minutos de filme para ocupar todos os restantes. No papel do meio-Apache, que faz a vida negra a uma dúzia de cowboys, Charles Bronson simboliza impecavelmente toda a hostilidade que o invasor encontra ao entrar por território desconhecido. Michael Winner não precisa sequer de abusar da presença de Bronson para criar medo, porque a sua assombração está em toda a parte de um western que, à excepção da primeira cena, decorre sempre a céu aberto e em clima de constante ameaça. Bronson não fala em inglês durante todo o filme, nem precisa de falar. O seu rosto e o seu bigode são várias vezes focados pela câmara e isso chega para perceber que ali está o homem com quem ninguém deve arranjar confusão. Bronson ainda é um símbolo do hardcore, porque o merece. Subversivo quanto baste e surgido no arranque da década da contra-cultura, “Chato’s Land” é um western tão punk-rock quanto possível na grande indústria. Devia ser filme de culto dos Rage Against the Machine.