A diretora que usa o horror para falar sobre o Brasil
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A diretora que usa o horror para falar sobre o Brasil

Trocamos uma ideia com Gabriela Amaral Almeida, a cineasta que mostra sangue, violência e tensões sociais no seu primeiro longa-metragem “O Animal Cordial”.

Gabriela Amaral Almeida não deseja ser incensada. Tampouco agradar com “O Animal Cordial”, seu primeiro longa-metragem. “Falo pros meus amigos ‘vai ver, mas não precisa gostar’. Não tô dando uma festa de debutante”, diz a diretora. Para ela, o papo é outro. “Se o filme ou qualquer obra de arte consegue pautar uma conversa, mesmo que seja ‘gosto ou não gosto’, aí é que tá, esse é o papel da arte.” E o negócio vem rendendo antes da estreia, que rola nesta quinta-feira (9).

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“O Animal Cordial” tem violência, sequência de sexo, a tensão social de um país que nem com o uso de binóculo potente consegue enxergar qualquer sombra de um projeto de nação que una a todos e até romance. Com nomes como Murilo Benício, Camila Morgado, Luciana Paes e Irandhir Santos no elenco, a produção recebeu classificação indicativa de 18 anos e conta a história de um assalto num restaurante de classe média em São Paulo. É lá que em fim de expediente, dois sujeitos invadem o local pra roubar, se deparam com o dono do estabelecimento, o cozinheiro, a garçonete e três clientes, e o barato fica louco.

Conhecida pelo horror e pela fantasia nos seis curtas que dirigiu, Gabriela mescla na fita elementos do thriller e do italiano giallo (Dario Argento e Lucio Fulci, saca?), além de certa influência do norte-americano Quentin Tarantino e do canadense David Cronenberg. Aqui ela faz cinema como se ouvisse aquele famoso discurso de Zé do Caixão, na abertura de “À Meia Noite Levarei Sua Alma”, no qual ele diz “O que é o sangue? É a razão da existência”. Aos 37 anos, esta baiana entra pra valer no gênero chamado slasher – aquele em que, sim, tem sangue na tela.

A ideia pro filme, ela conta, surgiu num encontro com uma amiga, a artista plástica e parceira de direção em “Terno” (2013) Luana Demange. Enquanto jantavam num restaurante da Consolação, no centro de São Paulo, as duas emendavam um papo sobre o roubo ocorrido dias antes no local. Daí a pintar um enredo foi um pulo.

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“Pra mim, é inevitável começar a imaginar uma história a partir disso porque é quase como se fosse uma espécie de linguagem através da qual eu entendo as coisas do mundo”, explica Gabriela à VICE, em encontro num escritório na rua Augusta, também localizado na região central da cidade.

Da empolgação inicial, nasceu o argumento, mais tarde apresentado ao produtor Rodrigo Teixeira. Ele gostou e deu o sinal verde pras gravações: “faz que vou bancar”.

Escrever é algo que a cineasta afirma praticar todo santo dia. Tanto que ela prefere se definir uma escritora/diretora. Compreensível, pois não só filma, mas também cria roteiros pros seus trabalhos, pros trampos de outros e sob encomenda. Já produziu textos pra programas como “Sob Nova Direção”, da Globo, e “Me Chama de Bruna”, da Fox. Colaborou ainda com Marco Dutra em seu filme “Quando Eu era Vivo” e com Walter Salles, pra seu média-metragem “A Terra Treme”, um drama sobre a passagem do tempo e estrelado por Maeve Jinkings, que se passa em Mariana (MG) em meio à tragédia ocorrida em 2015 pelo rompimento da barragem de Fundão, administrada pela mineradora Samarco.

Se o projeto do diretor de “Central do Brasil” é político, Gabriela diz que “O Animal Cordial” joga no mesmo time. “É impossível me excluir da experiência social de ser uma brasileira, uma mulher, uma nordestina, de classe média. É um negócio que, se você exclui, faz narrativa de tubo de ensaio que não me interessa. Como minha organização parte do narrativo e do emocional, o humano é a primeira camada que você acessa ao assistir ao filme. E o humano nada mais é do que o contraditório. Tudo que tá ali são contradições que a gente tem. Aqui, a diferença de classe gera atrito. A diferença de cor, de regionalidade. O Djair [papel de Irandhir Santos], por exemplo, é um cozinheiro nordestino num restaurante paulistano, branco. Ele é a grande estrela, mas tá lá calado, silenciado, tendo as ideias usurpadas. Então, tem uma tensão regional ali que acho que hoje nem é tão mais pauta, mas quem é nordestino sente.”

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FÃ DE STEPHEN KING

Nascida em Feira de Santana, ela foi criada em Salvador, onde o pai, um engenheiro mecânico, e a mãe, uma professora primária, moravam. Acabou se formando em comunicação pela Universidade Federal da Bahia, embora não tenha se decidido pelo curso com a intenção de fazer grandes matérias jornalísticas, dar furos de reportagem ou apresentar telejornais. “Entrei na faculdade pra estudar o [Alfred] Hitchcock.” Apaixonada por “Psicose”, clássico do inglês lançado em 1960, Gabriela caçou um jeito de trabalhar com a obra do mestre do suspense. Mas, como descobriu rapidinho, ele já era estudado demais.

Aí a estudante viu outra luz no fim do túnel. A jovem embarcou, então, na tarefa de se debruçar sobre a literatura (e as obras adaptadas pro cinema) de Stephen King, de quem é fã. Recebeu incentivo de colegas e do professor Wilson Gomes pra seguir com os estudos. Ganhou também olhares de reprovação na universidade. “Quando escolhi estudar o Stephen King, na própria academia, havia pessoas que falavam ‘mas pra que você vai estudar isso?’. Era outro tempo, né? Todo mundo estudava coisas muito cult, e eu era meio que a bizarrinha. Agora tá na moda, mas antes não era assim”, lembra.

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Continuou. Primeiro, fez seu trabalho de conclusão de curso e depois uma tese a respeito do escritor. Tornou-se, assim, mestre em literatura e cinema de horror pela própria UFBA com uma pesquisa dedicada à produção de medo nos livros e filmes feitos com base nos títulos do norte-americano.

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E quando a conversa deságua em King, vai longe. A diretora pinça “Louca Obsessão” como seu romance favorito e faz questão de dizer que, no quesito produção inspirada na obra do autor, não tem pra ninguém: “É ‘Carrie, a Estranha’, do Brian De Palma”, diz. “Gosto de ver como ele acessou todas as questões femininas que o Stephen King colocou ali. É um livro absolutamente feminino, sobre o poder, a potência do feminino e como isso assusta. Acho que o De Palma traduziu isso pra imagem de uma forma tão bonita, tão assustadora. E pra uma mulher, pode ser assustador se dar conta dos poderes que tem. É um filme bem tocante.”

Entre os diretores que lhe marcaram, Gabriela cita ainda Nicholas Ray e John Ford, cujos faroestes passou a ver com o pai na infância e nunca mais os largou. “Suspiria)”, de Dario Argento, também entra na lista da diretora, que após a faculdade partiu pra Cuba a fim de se especializar em roteiro. Foram dois anos na Eictv (Escuela Internacional de Cine y TV), em San Antonio de los Baños, até voltar ao Brasil, em 2007. Chegou de mala e cuia a São Paulo e está na cidade até hoje.

O HORROR DO COTIDIANO

Mesmo com uma história já tão ligada ao terror, não assusta descobrir a relação que ela tem com “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, o original, dirigido por Mel Stuart. “Tinha ali um retrato da infância que não era bobo. Um lidar com a criança que exigia daquele personagem do Gene Wilder uma certa malícia. Pra mim, é a filmagem da malícia, da maldade, da esperteza infantil. E isso me atraiu.”

É natural, então, ver o sorriso que ela abre ao falar do assunto, bastante presente em seus trabalhos. “Acho que tá tudo na infância”, afirma.

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Esta época da vida é tema, principalmente, de dois de seus filmes. No média-metragem “Estátua!”, de 2014, a babá Isabel (personagem de Maeve Jinkings) está grávida de seis meses, em lua de mel com o bebê na barriga, mas pelos afazeres de sua profissão logo aparecem os problemas de ter de lidar com Joana (Cecilia Toledo), uma menina de temperamento difícil.

Já em seu próximo longa, “A Sombra do Pai”, que estreia no Festival de Brasília, em setembro, uma criança é a personagem principal. Dalva (Nina Medeiros), de oito anos e fã de filmes de terror, tenta trazer a mãe morta de volta à vida pra melhorar a relação com o pai, um pedreiro (Julio Machado) que mora com a garota numa vila operária, está caminhando pra depressão e ainda se vê prestes a perder a ajuda preciosa da irmã (Luciana Paes), que vai se casar.

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É o horror do cotidiano que bate forte nos filmes de Gabriela. No curta “Uma Primavera”, de 2011, tudo o que uma mãe (Lúcia Romano) quer é comemorar o aniversário de sua filha Lara (Natália Paz Parnes) num piquenique tranquilo. Pra adulta da história, porém, o passeio no parque ganha todos os contornos do casamento do céu e do inferno que pode ser a maternidade.

Em “A Mão que Afaga”, de 2012 e estrelado por Luciana Paes, não é diferente. A sensação de pavor aqui está na dureza do trabalho da protagonista ou na “solidão das pessoas dessas capitais”, como canta Belchior na música “Alucinação”.

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Esse sentimento vem desde o primeiro trabalho dela comandando o set, “Náufragos”, de 2010, codirigido com Matheus Rocha. Nele, uma idosa interpretada por Haydil Linhares – em sua última aparição no cinema – se depara com as questões físicas e psicológicas da idade. E uma dúvida: onde é que se enfiou o marido?

A diretora se emociona ao recordar a temporada de filmagens de sua estreia. “Quando se vê uma atriz apresentando uma emoção que você consegue induzir e capturar através da câmera, é um negócio que está muito perto do mágico”, afirma, se referindo a Haydil, que morreu no mesmo ano de 2010, sem ver a obra pronta.

Gabriela continua a linha de raciocínio, falando que é nisso que se apega quando se segue fazendo filmes. “Ver e rever essa magia acontecer.”

Explica ainda o que o gênero – pelo qual diz não ter fetiche – significa pra ela. “É uma maneira como sinto a vida e os personagens vêm disso, com seus medos e questões. Porque o horror ou terror, essencialmente, é você colocar um personagem ou um grupo enfrentando a morte. A questão central é a sobrevivência, o conseguir escapar da dor. E essa questão me interessa.”

ESTADO MENTAL ATUAL

Agora, em “O Animal Cordial”, Gabriela coloca Murilo Benício em frente ao espelho, encenando respostas que dará a um jornalista com aquele sorriso do Coringa transplantado no rosto do dono de um restaurante. O perigo é iminente, as situações de conflito idem. Como nas metrópoles brasileiras, tudo pode acontecer.

Mas no que o personagem de Benício, o Inácio, foi inspirado? “Na ideia da nossa sociedade sobre o que deve ser o masculino. Na prisão que é a masculinidade. No modelo de sucesso, de sobriedade, de conhecimento, de macheza, de beleza que tem de ser alcançado. E assim como o Inácio é criado à luz disso, a Verônica [Camila Morgado] é criada à luz disso também. De um feminino imposto, que se cala, que não tem voz, que tem a vontade silenciada”, responde.

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Com mortes e muito sangue, o filme levantou polêmica, algo com o que a diretora não concorda. “Eu não entendo. Juro. Não tô inventando nada que a tragédia grega já não tenha feito pior. Se você lê “Édipo” [Rei, de Sófocles], Édipo dorme com a mãe, mata o pai. Então, vamos dar uma lidinha. [Em] “Medeia” [de Eurípides] também. São maneiras de expor o horror do humano pra que não ele venha à tona. Pois aqueles sentimentos são nossos sentimentos.”

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Na conversa, ela vai além das discussões estéticas sobre a obra. “Uma criança de 12 anos é baleada de uniforme à luz do dia no Rio de Janeiro e isso choca menos do que um filme absolutamente alegórico? O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, sabe? Desculpa, mas a gente é bastante bruto, violento, não cordial.”

E se tem problematização de alguns, pode ter elogios de outros, claro. Nessas, três dias antes de trocar ideia com a VICE, Gabriela tinha rachado o bico ao ouvir falar em possibilidade de Oscar numa coletiva de imprensa realizada no shopping Frei Caneca. À vontade, ela não se aguentou e riu. Muito. E que o filme acabara de ser exibido em sessão repleta de jornalistas.

Em nosso encontro, ela também estava de bom humor, deslizando entre o incisivo, o firme e o divertido. Só uma pergunta a tirou do sério. Quando questionada a respeito de seu estado mental atual, gargalhou. “Ai meu Deus do céu! Como é que responde isso?”, soltou, ainda entre risadas. Por fim, já refeita, se saiu dizendo que era o de indignação.

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Naquela tarde chuvosa, em São Paulo, a diretora mirava seu arsenal pra notícia de que 200 mil bolsistas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) poderiam ficar sem o benefício a partir de agosto de 2019 devido à eventual redução de verbas pro Ministério da Educação (depois, em debate no Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, o ministro afirmaria que as bolsas seriam mantidas). Afinal, ela mesma foi bolsista nos tempos de pesquisa na graduação e no mestrado da faculdade. “É inadmissível que o trabalho intelectual de um país – que já é difícil de ser feito – seja cortado assim.”

EXORCISMO

Gabriela volta da varanda com uma pergunta, invertendo os papéis. “Você quer saber o nome de meu próximo filme?” Com certeza. Então, fico sabendo que o projeto se chama “A Cadeira Escondida” e é uma fábula sobre exorcismo. Segue forte o horror no trabalho dela, sim.

Trampo esse que o produtor Rodrigo Teixeira costuma definir como febril. Mas ela prefere desconversar, falar em desromantizar a parada. “Tô sempre com um projeto, mas é o que eu te digo: se me surge uma ideia ou uma sensação ou uma questão que me tome de alguma forma, ou eu condiciono com o que tô fazendo ou, se houver possibilidade, paro e me dedico àquilo. O processo de escrita tem vários estágios.”

No set, parece ser adepta das camadas. Quem conta é Luciana Paes, que está no elenco de três de suas produções. À VICE ela diz que, pra seu papel em “O Animal Cordial”, o de Sara, havia roteiro e uma espécie de além-roteiro, com vida pregressa e fora do alcance das câmeras. Ou seja, Luciana tinha de aprender do que a personagem gostava, o que ouvia e lia, pra enfim conseguir levar ao pé da letra o que a diretora queria representar na tela.

“Ela me falava ‘preciso do seu corpo’”, lembra a atriz. Assim, com esse combo, pegou o tom de interpretação romântica da garçonete, encravado dentro de um filme de terror.

Gabriela vê a hora de filmagem como uma “concentração relaxada”, no qual estar atenta a sugestões e colaborações é fundamental. “Minha relação com o roteiro tem muito a ver com uma fé nos pressupostos da história, mas também com uma fé no imprevisível, no talento das pessoas que tão ali. Se você tiver muito tenso em relação à execução do planejamento, perde o mais bonito da experiência, o estado de espírito que a própria situação do set traz.”

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E o momento de seu gênero predileto no Brasil a anima. “Quando comecei a estudar horror e terror, nunca pensei que a gente passaria por isso, que produtores estariam interessados nisso.” Ela lista colegas que investem e viram suas lentes pro pavor, entre eles, Juliana Rojas, que filmou “A Sinfonia da Necrópole”, Anita Rocha da Silveira, responsável por “Mate-me Por Favor”, e Kleber Mendonça Filho, de “O Som ao Redor”. Além disso, acrescenta, “é uma produção muito profícua no curta-metragem. O que tem de curta de gênero é uma beleza!”.

Pra quem já ouviu piadas e comentários nada agradáveis a respeito e era vista como “a bizarrinha”, nada mal, não? “Mas não precisa gostar, principalmente, o tipo de filme que eu faço. Não espero que as pessoas falem “que lindo, eu me emocionei!”, pontua, aos risos.

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