Como um filme de James Franco entendeu errado a história de 'conversão' de um pastor 'ex-gay'

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Como um filme de James Franco entendeu errado a história de 'conversão' de um pastor 'ex-gay'

“Eu não queria que aquele filme se tornasse um filme”, diz o diretor do documentário contando o outro lado da história de 'I Am Michael'.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE Canadá. .

Quando se trata de histórias de vida inacreditáveis, a de Michael Glatze entra na mesma categoria do cara que morava com ursos e da Chelsea Manning tuitando livremente. Depois de devotar a maior parte da vida ao ativismo gay, Glatze renunciou publicamente a homossexualidade num site de direita em 2007, deixou seu parceiro de quase uma década e se tornou um pastor "ex-gay" em Wyoming.

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Glatze escreveu que estava "enojado" pela homossexualidade e sua natureza "pornográfica". "Não vejo mais as pessoas como gays", ele disse ao New York Times em 2011. "Deus nos criou heterossexuais. Podemos ter outras ideias na nossa cabeça sobre quem somos, e eu tinha, mas isso não significa que são verdade."

Quando uma versão de Hollywood da vida de Glatze estrelando James Franco saiu no começo do ano passado, os críticos não foram gentis. O New York Times chamou I Am Michael de "dramaticamente flácido", com um personagem central "impossível de gostar… cuspindo retórica religiosa de ódio num minuto e secando caras no outro".

O cineasta Benjie Nycum de Halifax também não gostou do filme, não só porque ele dramatizava seu rompimento doloroso e público com o homem que ele amou por quase dez anos. "No processo de revisão do roteiro [de I Am Michael], achei que a narrativa passava longe do que realmente aconteceu, e não tinha nuances", ele disse a VICE.

Com o diretor Daniel Wilner e os produtores Gillian Nycum e Patrick Dion, Benjie foi encontrar Michael e sua esposa no Wyoming para saber a história real por trás das motivações da guinada de 180º de Glatze, e como ele realmente se sente sobre isso hoje. O curta resultante, Michael Lost and Found, acabou de chegar ao Netflix depois da estreia no festival Inside Out de Toronto.

Falamos com Nycum minutos depois dele saber sobre as novas da Netflix, e ele comentou sobre onde a versão de James Franco da sua vida errou e as questões que ele ainda tem depois de sua visita ao Wyoming.

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VICE: Como esse documentário começou? Era um contraponto a I Am Michael desde o início?
Benjie Nycum: O roteirista e diretor de I Am Michael realmente queria me entrevistar. Resisti por um longo tempo – eu não queria que esse filme virasse um filme, mesmo. Principalmente por medo de que Michael estivesse num estado perturbado, que o filme pudesse causar problemas a ele. No processo de revisão do roteiro [de I Am Michael], achei que a narrativa passava longe do que realmente aconteceu, e não tinha nuances. Então acabei entrando em contato com Michael para saber se ele estava contente com a versão de sua história sendo contata. I Am Michael é uma história sobre uma pessoa tomando uma decisão – uma coisa muito gay vs. hétero. É sobre descobrir onde você pertence no mundo, e do meu ponto de vista, essa não é a história que aconteceu.

E o que aconteceu?
No meu mundo, foi um surto complexo que Michael teve ligado ao luto por ter perdido os pais e também estar fisicamente doente. Ele achou que tinha cardiomiopatia hipertrófica, que é basicamente quando seu coração explode instantaneamente – acontece muito com jogadores de basquete. O pai dele morreu disso quando Michael tinha 12 anos, então ele estava convencido de que tinha a doença… Disto, um padrão de ansiedade profunda emergiu, onde ele achava que morreria a qualquer momento. Quando sua saúde estava sob controle, acho que os danos mentais já tinham sido feitos. Acho que a soma de tudo isso – se desesperar, pensar na morte – talvez o tenha levado a querer culpar algo fora, sua sexualidade, e dar essas declarações públicas. Isso deu a ele um sentido a que se agarrar.

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O que passou pela sua mente assistindo James Franco interpretar Michael?
Eles não passaram o filme para mim, então vi no iTunes quando saiu em janeiro. Olhando para o movimento de ex-gays e o poder que ele tem sobre as pessoas, com terapias de conversão e tudo mais, é assustador ter um filme que conta esse tipo de história de conversão. A minha visão é que isso não foi uma passagem de gay para hétero, mas um processo evolutivo de uma crise mental. Francamente, não me importo com quem uma pessoa transa, se você é gay um dia e decide transar com uma garota no outro, por mim tudo bem, não tenho problema com isso. O problema é que Michael fez isso muito publicamente, com declarações muito negativas sobre ser gay.

Eu queria que as pessoas entendessem que há nuances aqui, que o Michael é uma pessoa complexa, que ele pode sentir remorso pelo que aconteceu, que é o que você vê em Michael Lost and Found. Eu esperava que ele pudesse descrever sua experiência como um episódio que teve sintomas muito parecidos com uma doença mental. Não sou médico, então tive que fazer perguntas cuidadosas. Eu perguntei "Você acha que estava exibindo sintomas de alguém sofrendo de uma doença mental?", e claro que ele disse "Sim, mas era mais que isso". Eu queria ser parte da história. Não apenas essa busca interna dele por pertencimento, que tinha a ver com a Bíblia, porque francamente acho que esses são apenas acessórios na história.

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Quais eram as coisas negativas que ele estava dizendo publicamente?
Ele disse que foram seus relacionamentos gays que o deixaram doente e fariam ele ir para o inferno, esse tipo de coisa. Em I Am Michael ele faz essas declarações. Como ele explicou em Michael Lost and Found, isso gerou interesse – ele recebeu 600 e-mails. Isso deu um propósito a ele, o que pode ser muito importante para alguém que está perdendo o controle. Infelizmente foi numa plataforma negativa.

Foi estranho estar na mesma sala que Michael e a esposa quando a versão deles do que aconteceu é tão diferente da sua?
Bom, para começar, adoro a esposa dele, acho ela uma mulher incrível, ela é alguém com quem eu gostaria de conviver, consigo me ver atraído por ela. Então, dessa perspectiva, fiquei aliviado que o Michael tenha essa pessoa em sua vida. Segundo, sim, vê-lo foi uma experiência cheia de emoções, e também estávamos tentando gravar um documentário e manter nossa equipe focada.

Vê-lo de novo, e conectar todas essas coisas, foi estranho, foi constrangedor, mas também foi um grande alívio de várias maneiras. Minha maior preocupação era com a saúde dele, que ele se torne uma pessoa saudável que está em paz, e ao mesmo tempo, vi um jeito de reverter um pouco do dano público que ele causou. Quanto a com quem ele tem um relacionamento, isso não importa para mim. Só quero que ele seja feliz.

Então você acha que esse é um bom cenário? Que ele está em paz?
Por um lado, você pode assistir Michael Lost and Found e achar que talvez o Michael já tivesse respostas prontas. Por outro você pode pensar que esse é o momento em que ele começa sua jornada de volta – não de volta a ser gay – mas uma jornada de volta para onde ele pode existir de maneira saudável numa sociedade, sem fazer postagens problemáticas num blog, sem dar entrevistas a organizações fundamentalistas cristãs que querem contar a história de conversão dele. Em vez disso, ele pode ser capaz de dizer que há mais nuances nisso, que é algo muito mais complexo, que nenhuma "conversão" realmente aconteceu. Acho que todo mundo tem capacidade de amar qualquer um, e sinto como se ele soubesse isso também. Todas as coisas que ele disse publicamente, talvez sugerindo que uma conversão sexual total era possível, não acho que ele acredita nisso. Acho que isso era parte de um problema complexo com sua saúde mental na época. Eu esperava ver um pouco desse progresso, e acho que alcançamos isso.

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Podemos falar do ativismo de vocês quando ainda estavam juntos? Qual era sua missão?
Nossa missão inicial, e isso evoluiu, começou depois que escrevi um livro chamado XY Survival Guide, para adolescentes gays. Foi no ano 2000, meio que antes da internet, e foi publicado através da revista XY onde Michael trabalhava. E isso colocou em movimento a ideia de estabelecer essa noção de que a juventude queer ficaria bem na sociedade. Isso foi antes do movimento "It Gets Better". Nosso objetivo era deixar claro que os jovens queer eram pessoas normais que mereciam todos os benefícios que outros recebem nessa idade, e que cresceriam para ser membros produtivos da sociedade. Começamos nosso site Young Gay America, e fomos entrevistar garotos para mostrar que você não precisa se mudar para Nova York ou São Francisco, ou qualquer outra cidade, para ser gay e se assumir. Você pode fazer isso na sua cidade natal.

Você ainda ficou com dúvidas? O que você ainda está processando?
Acho que essa história continua, ela está muito viva. A primeira coisa que eu queria deixar registrado é que I Am Michael não é o final da história. Muita gente me escreve pensando que tudo no filme aconteceu na vida real. Tem uma cena de sexo a três, e não tenho nada contra dizer que estive num relacionamento a três, mas não pegamos uma pessoa qualquer num bar gay. Foi uma corte de seis meses onde já éramos amigos. Ele não queria nos separar, então éramos apenas três gays morando juntos.

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Em parte porque o filme não fez sucesso, estou bem. Eu tinha muito medo que isso se tornasse algo grande. Mas eles levaram muito tempo para conseguir vendê-lo, não fizeram uma grande estreia nos cinemas, e tudo que eu queria fazer era ter algo que pudéssemos colocar no YouTube para as pessoas verem se ficaram curiosas. Acho que pouca gente realmente se interessa por essa história, mas quem se importa realmente se importa. Compreensivelmente, especialmente pessoas que sofreram com conversões ou com o movimento ex-gay. Para garotos sujeitos à conversão houve um dano real, é um assassinato. Para essas pessoas, é muito importante que a história certa seja contada. Então admiro a parte artística e a tentativa de contar uma história [em I Am Michael], é só que todo mundo tem uma versão diferente da história. Vivi isso, vi isso acontecer todo dia. Sei como e por que isso aconteceu, mas mesmo o roteirista diria isso, essa é só minha versão da história. Então o que posso fazer? Tudo que eu podia dizer é "Tenho que fazer um filme".

A entrevista foi editada para melhor entendimento.

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Tradução: Marina Schnoor

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