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Como a serial killer Aileen Wuornos se tornou uma heroína cult

Wuornos é considerada por alguns como a santa padroeira dos socialmente e politicamente excluídos que se recusam a ser pisoteados.
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Ilustração por Hunter French; imagem original via Shutterstock.

Pouco antes de Cardi B lançar seu single “Press” em maio, ela revelou a polêmica arte de capa da faixa – uma recriação da infame foto de Aileen Wuornos vestida com um uniforme da cadeia, com as algemas levantadas na frente do pescoço. Wuornos era uma trabalhadora sexual que se apaixonou por uma mulher, e passou uma década no corredor da morte nos EUA depois que um júri a considerou culpada de sete acusações de homicídio em primeiro grau, mesmo com ela afirmando que cometeu esses crimes em legítima defesa. A história lúgubre de uma assassina de homens e trabalhadora sexual causou um frenesi implacável na mídia que perdurou até depois de sua morte por injeção letal em 2002, quando a imprensa chamou Wuornos de “a primeira mulher serial killer”.

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O apelo midiático em torno da figura da "lésbica raivosa que assassinou homens de família" foi tão intenso a ponto de pessoas que supostamente deveriam ajudar na defesa de Aileen, como o primeiro advogado a fazer sua defesa e alguns de seus familiares chegarem a vender os direitos da história para a produção de livros e filmes de Hollywood. Um ano após sua execução, Monster foi lançado nos cinemas, contando toda a história de Aileen - e foi mais celebrado pelo processo de "enfeiamento" que Charlize Theron, atriz que interpretou Aileen, passou do que pela história em si.

O documentário Predatory Prostitute (Prostituta Predatória, em tradução livre), dirigido por Junniper Flemming, narra a exploração midiática em torno da história de Aileen e a estigmatização de trabalhadores sexuais.

Enquanto alguns críticos consideraram a homenagem de Cardi B a Wuornos de mau gosto, em certos cantos da internet a resposta foi de comemoração. “Isso aí, Aileen Wuornos!!”, uma fã tuitou. Se referindo a um tuíte anterior de Cardi B, outro respondeu: “Fontes dizem que a personagem de Cardi B de 'Press' é inspirada numa notória serial killer chamada Aileen Wuornos. Achei genial pra caralho”. Ativistas como Dani Love, defensora da liberação das mulheres negras e direitos dos trabalhadores sexuais conhecida online como @BlackSapphic, viram a imagem como um símbolo poderoso de solidariedade e sobrevivência diante da violência masculina. “Isso é muito político”, ela tuitou. “Na verdade, apoio fortemente. Respeito. Estou impressionada.”

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Décadas depois da morte de Wuornos, algumas pessoas argumentam que a história dela merece um exame mais empático e com mais nuances. Nascida numa família de classe trabalhadora em Michigan, Wuornos teve uma infância marcada por violência horrível, pobreza e abuso sexual. Quando se voltou para o trabalho sexual para sobreviver, enquanto Wuornos pegava carona pelas estradas da Flórida, como ela afirmou no tribunal mais tarde, ela sobreviveu a estupros e mais violência. No decorrer sua prisão, julgamento e seu tempo no corredor da morte, ela disse que os homens que ela matou tinham tentado atacá-la sexualmente, e que ela atirou neles em legítima defesa.

Apesar de o testemunho dela ser contraditório em alguns pontos – ela acabou declarando “sem contestação” para cinco acusações de assassinato – os simpatizantes dela, muitos familiarizados com a violência que trabalhadores sexuais encaram rotineiramente, ainda acreditam na palavra de Wuornos.

“Essa mulher foi uma trabalhadora sexual lésbica que matou um cliente que ela achou que estava ameaçando sua vida”, Love disse a VICE. Para Love, a homenagem de Cardi a Wuornos mandou uma mensagem poderosa – especialmente diante da própria experiência da rapper como stripper, muitas vezes encarando ameaças de clientes perigosos. “A Aileen é foda, assim como a Cardi”, disse Love.

Essa pode ser a primeira vez que uma artista do alto escalão invoca a imagem de Wuornos como um símbolo de desafio, mas trabalhadores sexuais, lésbicas, feministas, sobreviventes de violência sexual e pessoas cujas identidades cruzam com essas experiências, discretamente veem Wuornos como uma heroína cult e ícone feminista há algum tempo. “Hoje marca os dez anos da morte de Aileen Wuornos, um lindo ser humano que sempre terá um lugar no meu coração por sua força e coragem de viver com a mão de cartas horríveis que a vida lhe entregou, e com situações que estavam completamente fora do seu controle”, dizia uma postagem do blog agora defunto Feminist Rag de 2013, depois postada num fórum de Direitos dos Homens.

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“Sempre fui meio obcecado por Aileen Wuornos porque uma das minhas tias também era prostituta de parada de caminhoneiros”, disse o ator e drag queen Willam Belli a Billboard em 2018, logo depois de lançar um clipe de paródia inspirado em Wuornos. “Eu fiz tudo que ela fez, menos matar pessoas. Já me prostituí. Já descolori o cabelo. Já caminhei pela I-95. Fiz tudo isso.”

Num e-mail para a VICE, Belli disse que sente empatia pelo trauma e abuso que Wuornos enfrentou. “A infância de abuso e negligência prejudicou seriamente as chances dela de se tornar um membro produtivo da sociedade”, disse Belli. “Ela foi responsabilizada por suas ações no tribunal, mas espero que as pessoas que a transformaram num indivíduo problemático também tenham recebido algum tipo de punição cármica, isso se as balas de Aileen já não tenham feito isso.”

Eric Lee comanda a loja de roupas online Comeonstrong, onde vende designs originais como uma camiseta justapondo a imagem icônica de Wuornos algemada com o slogan da campanha presidencial de Hillary Clinton “I'm With Her”. Lee criou a imagem em 2016, depois da Convenção Nacional Democrata na Filadélfia. Na época, ele estava trabalhando a dois quarteirões do Centro de Convenções, e lembra do burburinho constante pró-Clinton. “Eu estava cansado das agendas de araque dos políticos neoliberais”, disse Lee. “Políticos de carreira que fingem se importar com os pobres enquanto apoiam legislações que os matam. Eu queria dizer alguma coisa sobre isso e por acaso estava lendo muito sobre Aileen Wuornos na época. Ela era a definição de excluída.”

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Três anos depois, Lee diz que a camiseta “I'm With Her” ainda é uma de suas criações mais populares. “A história dela fala da experiência dos trabalhadores sexuais neste país, que estão em perigo constante com clientes, estigma social e o estado punitivista”, ele explica. “Bernie Sanders votou pelo FOSTA-SESTA [um pacote de leis aprovado em 2018 contra o tráfico sexual criticado por criminalizar ainda mais trabalhadores sexuais], que tornou o trabalho sexual menos seguro. A camiseta estimulou mais o diálogo sobre a intersecção dessas questões do que podia prever.”

Mas o interesse de Lee por Wuornos vai além de ser um fã superficial. Sobrevivente de ataque e abuso sexual, ele diz que ler sobre a vida de Wuornos o ajudou a identificar as formas que a masculinidade tóxica alimentou a violência e abuso que ele experimentou na mão de homens, além de reconhecer esses padrões em si mesmo. “Tive que reconhecer e desaprender esse comportamento de aceitar homens horríveis”, disse Lee sobre como a história dela foi como uma catarse para ele. “Eu tinha fantasias sobre mutilar e assassinar meus agressores, profanar o túmulo desses monstros”, confessa. “Pode ter sido um surto psicótico, legítima defesa ou as duas coisas, não importa porque tenho empatia por ela. Eu estava 'com ela'.”

Mas como não é socialmente aceitável ou seguro desejar a morte de estupradores, muitas vítimas nunca têm espaço para reconhecer esses sentimentos. “É importante normalizar esses pensamentos porque as pessoas que têm essas fantasias muitas vezes estão com medo, ou se sentem mal consigo mesmas por ter esses pensamentos, e como resultado tentam enterrar esses sentimentos”, disse Serani. “Sobreviventes podem ter medo de se tornar como seus agressores e ter algo em comum com eles, mas não têm.”

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Sendo assim, histórias como de Wuornos podem oferecer um exemplo poderoso de uma sobrevivente que desafiou a política de respeitabilidade em torno da vitimização. “Wuornos fez o que quase todos outros sobreviventes de violência sexual não fazem, que foi agir por seus impulsos de vingança”, disse Serani. “Quando você lê ou assiste histórias como a dela, algumas pesquisas sugerem que suas fantasias de vingança são transferidas ou deslocadas para estes exemplos. Encontramos conforto ou satisfação quando vemos alguém mau receber justiça pelas mãos de outra pessoa.”

Claro, alguns sobreviventes não vão, compreensivelmente, celebrar a violência real de Wuornos. Antes de sua sentença, a equipe de defesa de Wuornos argumentou que a infância e adolescência traumáticas dela produziram consequências sérias em sua saúde psicológica; testemunhas especialistas da defesa disseram que Wuornos exibia sintomas consistentes com transtorno de personalidade antissocial e transtorno de personalidade borderline, complicando o retrato apresentando pela acusação alegando que ela agiu racionalmente em todos os assassinatos. (No final, essas considerações psicológicas não conseguiram voltar o júri contra recomendar a pena de morte.)

Ainda assim, não há como negar que a história de Wuornos ilumina as estruturas e circunstâncias sociais que podem empurrar as vítimas para uma posição onde sentem que retaliação é a única opção. “É muito fácil para a sociedade pintar mulheres e pessoas oprimidas como vilãs quando elas reagem de maneiras descontroladas, que muitas vezes são violentas, mas é importante observar como o capitalismo, o patriarcado heterossexual e misoginia a colocaram em muitas posições que a transformaram numa assassina”, disse Love. “Ela foi uma vítima de muitas opressões estruturais. O trabalho sexual é um campo sem proteção, que permite que a violência aconteça. Trabalhadores sexuais não podem procurar a polícia, porque a polícia está diretamente ligada à opressão de grupos marginalizados que muitas vezes se intercalam com trabalho sexual: mulheres, pessoas não-brancas, pessoas LGBTQ.”

Enquanto relatos de homens poderosos que abusam de mulheres vulneráveis continuam a surgir, é difícil negar que sobreviventes desejam histórias de vingança – histórias onde as vítimas não só sobrevivem ao abuso, mas revidam. “Acho que parte da atração dela pra mim, neste momento cultural, é que Aileen Wuornos foi uma mulher que os homens temeram”, disse Bailey. A memória de Wuornos oferece esperança de que homens horríveis como Jeffrey Epstein, Brett Kavanaugh e incontáveis outros receberão o que merecem. “Uma prostituta assombrando homens em vez de ser assombrada é uma história profundamente reconfortante.”

Wuornos se recusou a ser silenciada, e para alguns, ela segue como um ícone, uma santa padroeira dos socialmente e politicamente inconvenientes que se recusam a ser pisoteados. “Ela reagiu quando todas as chances estavam contra ela” disse Love. “Ela disse 'Não desta vez'.”

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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