Mais de 14 mil detenções de menores foram registradas no estado de São Paulo em 2016. Os dados são da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), sobre o número de apreensões em flagrante entre janeiro e agosto de 2016, data da última atualização estatística da pasta. Considerando o período, o número de jovens detidos representa cerca de 60 das prisões diárias no estado.
Dois jovens detidos na unidade da Serra da Cantareira da Fundação Casa (FC) contaram à VICE, no primeiro semestre de 2016, como trabalhar com o tráfico de drogas, mesmo na constante iminência da prisão, era mais lucrativo do que ter um emprego no ambiente formal. Ambos reincidentes, os menores também falaram sobre a vida na periferia da capital paulista e a falta de estrutura familiar.
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O primeiro jovem ouvido pela reportagem contava, na ocasião, com 17 anos e há três meses estava preso enquanto aguardava uma transferência para um sistema prisional fechado na chegada da sua maioridade. O motivo mais recente da detenção foi o tráfico de drogas. “Eu estava lá traficando. Nisso, veio um polícia à paisana, de roupa normal e tal. Ele veio e pediu uma droga. Nisso que ele pegou [o entorpecente], apresentou a arma e falou que era [policial] civil.”

Um dos infratores ouvidos pela reportagem foi preso por tráfico. Foto: Lucas Dantas/ VICE
Com o menor, estavam outros dois comparsas. Na época da entrevista, um dos parceiros de crime já havia sido transferido para outra unidade da Fundação Casa. O outro, como era primário, saiu do Fórum direto para a liberdade assistida.
No caso do menor entrevistado pela VICE, como já era reincidente, ficou internado em uma unidade da FC. Ele foi encaminhado, junto com as drogas — segundo o menor R$ 2 mil de cocaína em pinos — para o 4º DP de Guarulhos.
A polícia achou a cocaína dentro de uma casa, em um terreno nas proximidades do ponto de vendas ilícitas do adolescente.
Eu sempre procurei esse jeito mais fácil [de ganhar dinheiro] para tentar ajudar o meu pai.
O primeiro menor ouvido pela VICE conta que, quando foi pego pela terceira vez, era subgerente do tráfico na região. Por causa disso, ganhava R$ 500 por semana, fora as gratificações dos “plantões” realizados. Garantiu que, por mês, faturava, no mínimo, R$ 5 mil. “Entre o final de 2015 e 2016, nos feriados de Natal e Ano Novo, consegui tirar uns R$ 1,9 mil a cada um dos dias.”
A família do menor é constituída pelo pai, irmã de 19 anos e irmão de 16. A mãe os abandonou quando o adolescente tinha três anos. “É mais fácil, pelo que vemos, o pai abandonar a família e não a mãe [deixar os filhos], não é?”, afirmou sobre o abandono “não convencional”.

Um dos menores infratores na Fundação Casa na unidade da Serra da Cantareira. Foto: Lucas Dantas/ VICE
O menor crê que por causa disso o pai tenha se tornado alcoólatra. “Ele não consegue arranjar emprego. Sempre que ele consegue um [serviço], o alcoolismo não deixa ele continuar.”
Ao ser questionado se acha mais fácil vender drogas do que trabalhar, o detento me disse: “É mais fácil por um lado. Dá com a colher [o crime] e tira com a concha. Agora que estou preso, de novo, penso que meu pai bebe com a desculpa de que estou aqui”. O menor acrescentou ainda que uma promotora de justiça o alertou que vender drogas também destrói as famílias dos usuários. “Eu sempre procurei esse jeito mais fácil [de ganhar dinheiro] para tentar ajudar o meu pai”, justificou.
Perguntado se valia mesmo a pena a vida no tráfico, o menor disse: “Não vale mais a pena [traficar], pois farei 18 anos logo. Aí muda a pena, posso pegar até 12 anos de prisão”, afirmou, consciente da diferença de punições impostas no Brasil a menores e a maiores de idade. “Vou passar a vida inteira atrás das grades? Não vale a pena.”
A vida no crime dá com a colher e tira com a concha.
O menor afirmou que, apesar de já ter traficado drogas pesadas, só fuma maconha. Falou também que o irmão frequenta uma igreja, estuda e, quando consegue, trabalha na feira para conseguir dinheiro. A irmã trabalha com carteira assinada em uma loja.
O jovem detento também disse que foi apreendido três vezes por tráfico de drogas — todas no mesmo endereço. A primeira cana foi feita pela PM, quando ele tinha 15 anos. Entrou na vida do crime quando tinha 13. Até ser detido pela primeira vez, afirmou que o pai o batia. “Eu era o alvo dele.” Mas após a primeira apreensão, o patriarca não colocou “nunca mais” as mãos no garoto.

Crime por necessidade e revolta. Foto: Lucas Dantas/ VICE
Voltando aos 13 anos. Por conta das agressões sofridas por parte do pai, o adolescente saiu de casa e foi morar com um amigo, já envolvido com o tráfico. Quando começou na vida do crime era o que se chama de “vapor” [vendedor de drogas nas ruas]. A cada cem porções de droga vendidas, ficava com 30% do lucro.
Amigos do pai do menor, que iam comprar drogas com o adolescente, o convenceram a voltar para casa. “Me falaram que o meu pai estava mal, chorando. Fico com muito dó dele, por causa dos problemas dele com o álcool.”
Após retornar para casa, o jovem ficou “um tempo” sem traficar e voltou a estudar. Na escola, fumava baseados e, em 2014, voltou ao mundo do crime. Foi quando foi preso pela primeira vez. Após ser solto, o pai mudou o comportamento, pedindo ajuda ao filho. “Daí resolvi continuar no tráfico, para ajudar o meu pai. Mas a vida no crime é como eu já te falei, dá com a colher e tira com a concha.”
Em 2015, o menor foi preso pela segunda vez, na ocasião por investigadores da Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes (DISE).
Entrei no crime por necessidade e também por revolta.
O segundo interno da Fundação Casa entrevistado pela VICE, este de 16 anos, também somava três detenções — sendo a primeira por roubo e as demais por tráfico de drogas.
A apreensão mais recente do garoto também havia sido feita depois da ação de policiais civis disfarçados. Pediram dois pinos de cocaína ao menor e, quando ele entregou a droga, afirmou ter sido jogado no chão. “Daí um dos policiais colocou a [pistola] 45 em minha cabeça e falou ‘perdeu’. Aí eu falei, calma senhor, perdi, perdi. Daí me algemaram e me levaram para o 4º DP de Guarulhos.” Nas duas vezes em que foi preso por tráfico, contava com 15 anos. Completou 16 dentro da Fundação.

Quadra de esportes na Fundação Casa. Foto: Lucas Dantas/ VICE
O adolescente afirmou ter entrado no crime “por necessidade” e também “por revolta”. A família passava apertos financeiros, como falta de comida. Pelo fato de não conseguir emprego formal, o jovem decidiu entrar para o crime, roubando e traficando. “Fiz tudo para ajudar a minha família.” O pai é separado da mãe e paga uma pensão acordada verbalmente com o menor: “Não foi nada arrumado pela Justiça, senhor”.
O jovem conta que começou no tráfico como olheiro e, depois, foi promovido a vapor, cargo ocupado até a última apreensão dele. Explicou que, antes de ser detido, trabalhava um dia sim e dois não. A cada turno, disse ele, faturava entre R$ 800 e R$ 1,2 mil.
O dinheiro era usado para ajudar em casa e também para o adolescente se “presentear” com tênis e roupas de marca. Disse se arrepender da vida criminosa por causa da família.
Da mesma forma que o outro adolescente ouvido pela reportagem, afirmou pretender estudar, conseguir um bom emprego, ganhar dinheiro limpo, fazer um curso de inglês, outro de computação e ainda frequentar uma faculdade, sem fazer ideia de qual curso frequentar. Disse “gostar e entender bem” matemática e revelou já ter aprendido alguma coisa de inglês.
A primeira cana do segundo adolescente ouvido pela reportagem durou 45 dias, a segunda sete meses e seis dias. E, na ocasião da entrevista, o adolescente passaria pelo mesmo processo do outro menor ouvido pela reportagem: ficando entre seis meses e três anos atrás das grades. Da segunda para a terceira detenção, ficou apenas 35 dias na rua.

Mais de 38% dos menores presos em São Paulo são acuados de tráfico. Foto: Lucas Dantas/ VICE
O segundo menor ouvido pela VICE disse que quando sair, irá procurar um emprego. No entanto, deixou claro que se for preciso, voltará para o crime.
Revelou que na segunda prisão, foi flagrado com 95 pinos de cocaína, 96 de crack e 35 trouxas de maconha. “Aí o policial perguntou se eu só tinha isso [de drogas]. Daí ele falou para eu pegar mais que me liberava. Mas não tinha mais droga, só a da bolsa. Daí ele falou que, já que não tinha mais droga, eu estava preso.”
Disse ainda que são feitos acordos com policiais da área, para fazerem vista grossa para o tráfico. “Mas o valor pago, só o patrão e os policiais que recebem dele sabem.”
38% dos jovens detidos em SP são presos por tráfico de drogas.
Nos oito primeiros meses de 2015, foram apreendidos, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), 13.515 adolescentes infratores em flagrante. Comparando com o mesmo período deste ano, quando 14.546 menores foram presos, há um aumento percentual de 7,6%.
O último boletim da Fundação Casa sobre a população de menores infratores encarcerados, de seis de outubro deste ano, indica que 9.664 adolescentes cumpriam medidas socioeducativas no estado. Deste total, 4.183 (43,28%) estavam em cana por causa de roubos e 3.759 (38,8%) por conta de ocorrências de tráficos de drogas.
A diretora do Centro de Internação Provisória “Serra da Cantareira”, Célia Maria Dias, afirmou que a maioria dos menores apreendidos contam com família e, como muitos afirmam a ela, realizaram crimes pela “adrenalina” de fazer algo proibido. No entanto, ponderou que existem as exceções. “Há os que não têm família, ou ainda que o pai ou a mãe estão presos. Aqui em Guarulhos ficamos muito assustados, pois há lugares onde estes meninos moram que é uma miséria.”

Garotos não descartam voltar pro crime caso não consigam emprego depois da detenção. Foto: Lucas Dantas/ VICE
Dias também explicou que equipes analisam a situação dos menores. Caso os infratores tenham condições de responder às acusações em liberdade, a equipe sugere isso à Justiça que, tendo acesso ao relatório dos analistas da FC, geralmente acata as proposições do documento. “Nós não podemos olhar somente o delito cometido pelo menor. Precisamos entender a situação [social, econômica e familiar] dele. Vários elementos são considerados, não que isso minimize o fato [crime cometido].”
A diretora ainda disse que há casos de crimes “mais leves” em que o menor não precisa necessariamente ficar atrás das grades. “Há outa questão. Caso o menor não tenha conhecimento de como é a rotina dentro de uma unidade prisional, ele certamente será vítima de bullying dos outros garotos.”
Não podemos olhar somente o delito cometido pelo menor. Precisamos entender a situação [social, econômica e familiar] dele.
Além da análise feita pelas equipes da FC, o judiciário baliza sua decisão de privar a liberdade do adolescente, ou não, com base no processo em que o infrator é acusado. “Nós fazemos uma sugestão para subsidiar a escolha que cabe ao juiz [da Vara da Infância e da Juventude].”
A encarregada de área técnica da unidade Serra da Cantareira, Ana Paula Soares, complementou que é analisada a “periculosidade” do ato infracional para que uma avaliação seja feita e, posteriormente, uma sugestão seja formulada favorável ou contrariamente à apreensão do menor.
Usou como exemplo um caso de roubo em que o infrator ameaçou e agrediu as vítimas de forma brutal. “Quando analisamos os casos, levamos em consideração o histórico [criminal] do menor e as características da ação dele durante o ato infracional analisado.”
A diretora Célia Maria Dias, por fim, disse que os infratores costumam corresponder ao que se espera deles, incluindo comportamentos delinquentes e de rebeldia. “Nós observamos os menores e investimos para mostrar a eles o que eles têm de melhor. Já se você tratar como se fossem um caso perdido, também correspondem a isso.”
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