Brancos progressistas não entenderam nada de 'Corra!'

FYI.

This story is over 5 years old.

Entretenimento

Brancos progressistas não entenderam nada de 'Corra!'

A única interpretação justa é: todos os brancos são a Rose.

Contém spoilers, óbvio. Inclusive, por que você ainda não assistiu esse filme, hein?

Vi muitos artigos de opinião por aí dizendo que o verdadeiro terror do filme de estreia de Jordan Peele, Corra!, é o feminismo branco. É verdade. Mas também vi um terror se estendendo da tela e enchendo cinemas lotados; as risadas banais e a falta de noção de liberais progressistas brancos. Posso rir em Corra! porque as situações constrangedoras pelas quais Chris passa são cenários comuns do meu cotidiano. As risadas incrédulas tornam essas situações suportáveis. Os liberais brancos que vi gargalhando disso perderam o ponto e aparentemente viram o filme só como uma comédia, não um comentário sobre suas próprias falhas.

Publicidade

Digo liberais porque duvido que o pessoal da direita clássica ou alternativa vai se aventurar a sequer chegar perto do filme depois de descobrir o tema. Eles provavelmente vão chamar o filme de antibranco e discurso de ódio, enquanto continuam soprando ar quente na aeronave precária sustentando Trump no ar. São liberais brancos que vão assistir Corra! como exercício de suas crenças “radicais”, sua capacidade de navegar entre identidades políticas e sair delas cheirosinho. E são os liberais brancos que vão habilmente se afastar do tema para se verem apenas como espectadores, e não como perpetradores capazes de exercer as mesmas macro e microagressões pelas quais Chris (interpretado por Daniel Kaluuya) passa, nas mãos da família progressista de classe média da namorada branca (Rose, interpretada por Allison Williams).

Tenho uma verdade desconfortável para os brancos comemorando Corra! — é um ótimo filme e fico feliz que os críticos em vocês apreciaram a arte. Desde que entendam que vocês são a Rose. Todos vocês.

Antes de Trump, sempre imaginei sobre o quê liberais brancos conversavam com os amigos com opiniões diferentes das deles. Aqueles começando cada observação racista com “Não sou racista, mas” ou “Vou bancar o advogado do diabo aqui”. Para futuras referências, não seja modesto. Assuma. Você é o diabo. Quando estão perto de pessoas não brancas, vocês ficam quietos e ouvem nossos traumas. Eles usam o rótulo de aliados com orgulho, como o símbolo que os separam dos tipos que adoram uma bandeira confederada. Mas quando pessoas de outras raças estão ausentes, e depende dos nossos “aliados” falar sobre igualdade, racismo e opressão, quão alta é a voz deles? Claramente não tão alta assim, considerando o que aconteceu em 8 de novembro de 2016 nos EUA.

Publicidade

Foto via screenshot.

Está cada vez mais claro que para liberais brancos, ser um aliado é um papel para ter de leve na consciência e preencher uma cota autoimposta de boas ações. Ninguém é mais capaz de colocar racismo numa hierarquia de menos e mais que os brancos. Não para melhorar a situação dos oprimidos, mas para seu próprio bem, então eles nunca são vistos como estando no mesmo nível que racistas DE VERDADE. Mas essa é a pegadinha — racismo é racismo. Jorrar merdas racistas é tão ruim quanto ficar quieto quando a merda racista voa no ventilador. Como a Rose fica em silêncio quando seu irmão estilo Milo começa a comentar sobre a genética de Chris, liberais brancos vão balançar a cabeça e franzir a testa quando ouvem sobre violência policial contra negros e mesmo assim escolher não dizer nada quando sua voz é mais necessária. Por quê? Porque é mais fácil se dar um tapinha no ombro por não ser “o pior”, do que realmente ficar desconfortável e reconhecer que de muitas maneiras você é tão ruim quanto “os outros”.

Racismo não tem graça, exceto para aqueles que veem isso numa escala de 1-10. Para liberais brancos, piadinhas sobre as proezas de homens negros na cama são inteligentes e irônicas. Pais me perguntando sinceramente por que meu inglês é tão bom são um desgosto, sim, mas perdoáveis porque eles estão curiosos, só isso. Avôs perguntando sobre a mecânica do nosso cabelo e dizendo “Posso?”, enquanto passam a mão nos nossos cachos são sem noção, mas bem-intencionados. Eles são de outra época, você vai dizer. E são mesmo! Uma época onde diversão era se juntar para um linchamento ou vaiar manifestantes lutando por direitos iguais. Gente branca “boa” é o pior tipo de gente branca. Muitos de vocês são inteligentes o suficiente para saber que racismo não é só coisa de livro de história e dias estrategicamente escolhidos de consciência. É uma experiência do ano todo, de toda semana, de todo o dia, e ainda assim você escolhe tratar isso como uma entidade estrangeira que aparece de vez em quando, e só das maneiras mais descaradas e violentas. Rose estava namorando um cara negro e na cabeça dela provavelmente ela nem o via como negro. Ela não via a cor dele; só que ela o amava. Conversa fiada. Quando um policial branco pede a identidade de Chris na estrada, ele sabe muito bem que precisa cooperar porque as interações de um negro com a polícia muitas vezes acabam tragicamente. Rose escolhe falar nessa hora, não percebendo que enquanto ela pode se safar, Chris poderia facilmente ser preso por algo que ela disse. Por quê? Por causa do racismo.

Publicidade

Nos momentos finais do filme, quando o carro da polícia chega com as sirenes ligadas, muitos de você devem ter ficado felizes pela sorte de Chris. Agora ele podia contar para a polícia o que tinha acontecido e ficar em segurança! Mas posso te garantir que para todo negro assistindo, incluindo eu, o coração foi parar na garganta, porque eu sabia que qualquer policial saindo daquele carro veria uma mulher branca ferida, um homem negro ferido olhando para ela, e provavelmente, se Chris tivesse sorte, ele seria preso ali mesmo, ou simplesmente atirariam nele e não fariam perguntas. Liberais brancos ainda encontram conforto nos mesmos sistemas que nos oprimem. Fingindo que ações meia-boca dos melhores de vocês vão aliviar o golpe das piores é uma mentira que precisa parar de ser regurgitada.

Não há diferença entre Lena Dunham e Magyn Kelly, exceto que uma usa retórica racista para amplificar sua plataforma e a outra É retórica racista. Velma Dinkley e Aryan Barbie podem parecer opostos, mas muito pode ser tirado do fato que nenhuma das duas nunca acusou abertamente o racismo (fora algum tweet performático), mas de diferentes maneiras elas contribuíram para isso. Uma como um meio para um fim racista, outra numa tentativa lamentável de fazer humor. As reações de brancos empolgados com Corra! são apenas um microcosmo de uma narrativa maior de brancos bons e brancos maus. No final das contas, vocês compartilham a mesma camuflagem que os protege da realidade, que você entende que está fodida, mas com a qual você está confortável demais para realmente querer ver derrubada. Assim como Rose, bebendo seu copo de leite, fones de ouvido a fechando para o resto do mundo, você está contente em estar de fora, ouvindo The Time of my Life.

Siga a Tari no Twitter.

Matéria originalmente publicada na VICE Canadá.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.