Como os ugandenses driblaram o bloqueio governamental de suas redes sociais
Crédito: Bwette Daniel Gilbert

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Tecnologia

Como os ugandenses driblaram o bloqueio governamental de suas redes sociais

No dia da eleição, autoridades de Uganda bloquearam a comunicação do país para manter o poder vigente e, sem querer, fortaleceram o ativismo local como nunca antes.

Numa quinta-feira de fevereiro, ao se dirigir às cabines de votação para escolher um novo presidente, os ugandenses participaram da batalha política mais acirrada do país desde a instauração da democracia multipartidarista em 2005. Eles descobriram que o acesso às mídias sociais e aos serviços de pagamento digital haviam sido suspensos. Era, souberam depois, parte de um bloqueio de três dias instituído pelo governo.

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Quando a poeira baixou, o presidente Gen. Y.K. Museveni, no cargo há 30 anos, havia sido reeleito, o que garantiria mais cinco anos de poder para seu partido, o Movimento de Resistência Nacional (NRM, na sigla original). Não só isso: o líder do maior partido de oposição do país havia sido preso, e relatos de compra de votos e uso de força policial excessiva dominaram a mídia.

Para o país com a população mais jovem do mundo — 77% dos habitantes da Uganda têm menos de 30 anos — a tecnologia móvel é crucial para a comunicação e o comércio

Mesmo diante de tantos de poder, foi a tentativa de bloquear redes sociais e aplicativos como o Facebook, o Twitter e o Whatsapp que gerou mais revolta. Para o país com a população mais jovem do mundo — 77% dos habitantes da Uganda têm menos de 30 anos — a tecnologia móvel é crucial para a comunicação e o comércio. Durante o período de três dias, quase 1.5 milhões de pessoas, ou 15% da população com acesso à internet, baixaram softwares VPN para acessar as redes sociais, onde os debates sobre a eleição continuaram a acontecer.

"Quando uma lei ou ordem é injusta, a obrigação de todo ser humano pensante é rejeitá-la" disse Akiteng Isabella, uma ativista da Uganda Youth Network. "Que isso sirva de lição — o governo deve entender que essa população jovem e criativa não será mantida como refém."

Um centro de votação em Kampala, no fim das eleições. Crédito: Bwette Daniel Gilbert

O governo não emitiu nenhum alerta sobre o bloqueio. Foi só após a comissão eleitoral mandar as empresas telefônicas proibirem o acesso às mídias sociais que as autoridades emitiram comunicado: segundo os governantes, o fim do acesso foi uma medida preventiva que visava proteger o país de supostas ameaças, além de impedir a "desinformação" e suspender as propagandas políticas no dia das eleições.

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Algum tempo depois, o governo divulgou um comunicado informando que qualquer tentativa de acessar o Twitter e outras plataformas seria considerada como "traição".

"Algumas pessoas utilizam essas plataformas de forma indevida", disse Museveni em uma entrevista. "Elas usam as redes sociais para espalhar mentiras. Quando se quer ter um direito, é preciso usar ele adequadamente."

Líderes de todo o continente africano conheceram o poder das mídias sociais durante a Primavera Árabe de 2010 e a Primavera Africana de 2014, quando o presidente da Burkina Faso, Blaise Compaore, foi retirado do poder após levante popular. Um recente bloqueio do acesso à internet no Burundi gerou, entre os ugandenses, a preocupação de que o bloqueio fosse permanente.

O ativista Daniel Turitwenka conta que "todo mundo" usou aplicativos alternativos e outros métodos para driblar o bloqueio, "mesmo aqueles que não sabiam muito sobre tecnologia".

As primeiras tentativas de driblar o bloqueio incluíram o Firechat, um aplicativo que funciona sem internet e que já foi utilizado por ativistas e manifestantes em lugares como Hong Kong e Iraque. Mas a dificuldade de instalar o aplicativo fez com que as pessoas escolhessem o concorrente criptografado do Whatsapp, o Telegram, um aplicativo de mensagens criado para impedir o acesso de "agências de segurança russas".

@policy actually we've been trending all day via #UgandaDecides, thx to vpns. Egg on face for @UCC_Official and all the telecoms
— victor kyobe (@victorkyb) 18 de fevereiro de 2016

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Para acessar as mídias sociais, muitos ugandenses usaram a Rede Virtual Privada (VPN, na sigla original), sistema que redireciona a rede de um determinado usuário para computadores localizados em outros países, permitindo que dissidentes escondam sua localização e que pessoas assistam Netflix em países onde o serviço é proibido. "A TrueVPN recebeu 220.000 novos usuários em quatro horas — e essa nem é a rede privada mais utilizada."

Os ugandenses baixaram uma série de VPNs; as redes mais procuradas incluem a Cloud VPN, a Tunnelbear VPN, a VPN express e a Cloud Ark VPN. Os downloads do Tor, navegador que garante o anonimato de seus usuários, também aumentaram significantemente durante o bloqueio.

Nas mídias sociais, usuários postaram opiniões sobre irregularidades do processo eleitoral e divulgaram informações sobre os resultados parciais das votações e possíveis fraudes eleitorais. Os usuários também divulgaram informações sobre paralisações e estradas bloqueadas, assim como a localização e o comportamento da polícia frente aos manifestantes da oposição.

"Justiça tem a ver com igualdade, respeito e dignidade — três coisas que não foram respeitadas nos últimos dias", disse Isabella. Embora não tenha sofrido nenhum tipo de coerção durante as eleições, ela apontou uma série de irregularidades pertinentes ao processo eleitoral.

"Fichas chegando aos locais de votação às duas da tarde, candidatos derrotados sendo anunciados como ganhadores, 'policias voluntários' criando centros de compra de votos, o assassinato e prisão de pessoas inocentes, o uso indiscriminado de gás lacrimogêneo — não houve nada de justo nesse processo, tampouco no tratamento da população", falou.

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Durante as eleições, as ruas estavam cheias de policiais. Eles estavam divididos em grupos de 10 a 15 homens presentes em cada local de votação. Entre os encarregados de organizar o processo eleitoral estavam os "protetores comunitários" — unidades de suporte recrutadas e selecionadas pelo NRM encarregadas de mobilizar as comunidades locais. A proximidade desses grupos com o partido no poder lhes rendeu o apelido irônico de "defensores do crime", além de fazer com que a Anistia Internacional exigisse sua suspensão durante as eleições.

Um manifestante em Kampala. Crédito: Bwette Daniel Gilbert

Mesmo assim, a presença física do governo nas ruas não foi nada comparado à sua presença no meio digital.

"Foi tão ridículo que eu demorei a acreditar; além disso, o motivo que eles deram foi ainda mais absurdo. Segurança, sério? Se a questão fosse realmente segurança, postos de gasolina, lojas de produtos agrículas e lojas que vendem facas também deveriam ter sido fechados", disse Isabella.

Muitos viram essa medida como uma resposta do governo às mensagens negativas sobre o NRM que circulavam na internet. O site inglês Article 19 definiu o bloqueio como uma tentativa sistemática de "cercear a liberdade de expressão e o acesso à informação durante o período de eleição", além de uma medida injustificada e exagerada.

Massive crowds all on the streets of Kampala, celebrating Museveni's re election #UgandaDecides pic.twitter.com/boedGSS0PR
— KeV✊ (@kevrx) 20 de fevereiro de 2016

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Frente ao que o vice-diretor da Anistia Internacional chamou de "nada mais do que uma tentativa de censura", os ugandenses lançaram mão de uma série de táticas para continuar a expressar suas opiniões, driblando o bloqueio e correndo risco de serem perseguidos.

Os posts sobre a situação política do país se reuniram em torno da hashtag #Ugandadecides ("#aUgandadecide" em português). Nada disso era segredo — a mídia cobriu todo o evento, mas sem explicar como era possível acessar as redes VPN. Enquanto isso, um serviço informal dominava as ruas de Kampala — por 5000UGX (US$1.50), clientes podiam acessar um hotspot e baixar uma rede VPN em seus smartphones.

No entanto, todos sabiam que romper o bloqueio poderia trazer consequências graves. Quando a comissão de comunicação descobriu que as pessoas estavam acessando as redes sociais por meio de aplicativos criptografados, o seguinte comunicado foi transmitido na WBS TV Uganda: "Nós vamos rastrear todos aqueles que estão usando aplicativos criptografados e prendê-los por traição!"

"Muitas pessoas burlaram o bloqueio antes que as possíveis penalidades fossem divulgadas", disse Bwete, um fotógrafo.

O bloqueio das redes sociais atingiu outras partes da vida digital.

Cidadãos cuja renda dependia do Mobile Money, uma plataforma digital disponibilizada pelas empresas telefônicas para pagamentos online, não puderam fazer transações ou pagar suas contas de água e eletricidade.

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O bloqueio aconteceu por causa de questões de segurança, disse o Diretor Executivo da UCC, Godfrey Mutabazi. "Recebemos relatos de que as redes sociais estavam sendo utilizadas para a compra de votos", disse ele à NTV Uganda. Em outra declaração, Mutabazi disse que o bloqueio foi necessário "para evitar um ataque terrorista iminente".

O fechamento dos bancos durante a eleição já havia sido anunciado, mas impedir o acesso ao Mobile Money atrapalhou, além de tudo, o próprio processo político — os candidatos que haviam sacado dinheiro dos bancos e depositado no Mobile Money não puderam transferir para seus agentes nos pontos de votação.

"Não podemos falar das mídias sociais sem falar do Mobile Money", disse Isabella. "Quanto dinheiro está sendo ganho, quantos ugandenses usam esse serviço. É como fechar todo o sistema bancário do país por três dias."

Uma bomba de gás lacrimogêneo lançada pela polícia durante um protesto próximo à sede da oposição em Kampala. Crédito: Bwette Daniel Gilbert

De acordo com o Banco Mundial, cerca de 84% dos ugandenses moram em áreas rurais, o que estimulou o crescimento dos sistemas bancários móveis. Com mais de 17 milhões de usuários, o Mobile Money tem sido crucial para a economia do país desde março de 2009.

"O boda-boda (termo que designa um condutor de táxi-bicicleta, muito comum na Uganda) do bairro está passando fome, assim como a mulher de quem ele compra comida", disse Isabella. "Isso é uma irresponsabilidade enorme da parte do governo. O que aconteceu com a obrigação de garantir o sustento dos cidadãos?"

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Na segunda-feira, após Museveni ter sido eleito com 60.8% dos votos, Kizza Besigye, líder do FDC, foi preso após violar sua ordem de prisão domiciliar para participar de um protesto pacífico contra o resultado das eleições marcado no Twitter. Considerado uma ameaça à segurança pública, Besigye havia sido previamente condenado à prisão preventiva.

Após chegar ao poder como líder de guerrilha oposto aos regimes brutais dos ex-presidentes Idi Amin e Milton Obote, o presidente Museveni virou uma celebridade; nos anos 80, o ex-presidente Bill Clinton afirmou que Museveni, responsável pela nova segurança e estabilidade do Estado ugandense, era o símbolo de uma "nova geração" de líderes africanos. Seu compromisso com a democracia e justiça, destacado em seu Discurso de Posse de 1986, soa muito diferente hoje, em meio a críticas à longa duração do seu mandato e acusações de abuso de poder.

Apesar do importante papel de Museveni como aliado dos EUA, o Departamento de Estado norte-americano emitiu uma declaração expressando preocupação em relação ao bloqueio que, segundo eles, "abalava a integridade do processo eleitoral". Um abaixo-assinado online pede que Obama não reconheça Museveni como líder democrático.

Uma bicicleta é engolida pelo gás lacrimogênio em Kampala. Crédito: Bwette Daniel Gilbert

Em 2011, o governo egípcio bloqueou o acesso à internet após uma série de protestos. Em janeiro de 2015, o governo da Nigéria suspendeu todas as comunicações móveis após protestos violentos contra o presidente Mahamadou Issoufou. O governo de Chade bloqueou o acesso ao Facebook e outras redes sociais por dias após um estupro coletivo que resultou em protestos e manifestações.

"As redes sociais são um estilo de vida, não dá para simplesmente bloqueá-las", disse Daniel Gilbert Bwete, um fotógrafo ugandense que mora em Kampala. "Elas são uma prioridade na nossa vida, mesmo durante o processo eleitoral. Precisamos cuidar dos nossos negócios e falar com nossos amigos e parentes."

Badru Kiggundi, o presidente do Comitê Eleitoral de Uganda, declarou a vitória de Museveni. Mas ao buscar formas de contornar a censura, os jovens de Uganda também saíram vitoriosos.

"O bloqueio às redes sociais fortaleceu o ativismo na Uganda e trouxe à tona uma criatividade nunca antes vista", acrescentou Bwete. "Ele nos obrigou a ir além, a encontrar outras alternativas dentro do espaço político."

Tradução: Ananda Pieratti