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Música

Fomos lá e vimos: Laraaji + Sun Araw

O Sol surgiu na noite.

O relógio aponta para lá das 21 horas duma chuvosa terça-feira quando me encontro a caminho do Teatro Maria Matos, no coração de Lisboa, para uma noite de Sol. Não é que a terra estivesse em rotação contrária às regras ou que um qualquer evento cientificamente inexplicável se aprestasse a suceder, a não ser que consideremos um espectáculo musical de Laraaji com Sun Araw como um acontecimento que nos escapa à racionalidade. A verdade é que, à partida para o encontro musical, desconhecia quase na totalidade estes dois artistas. Quase porque, numa pesquisa rápida pelo Google, aprendi que Sun Araw é um projecto de rock psicadélico e experimentalismo, encabeçado pelo norte-americano Cameron Stallones (Magic Lantern, Vibes, Pocahaunted); e que Laraaji é um genial manipulador de zither, proveniente dos EUA, que também se desdobra em explorações estético-sonoras. Ora, sendo ambos conceitos assentes em experiências e improvisos, deixei-me igualmente levar pela descoberta. Acompanhado de uma valente carga de água, chego ao teatro à hora marcada. A caminho do auditório, percorrendo o extenso corredor principal do edifício, vou deixando para trás dezenas de pessoas, separadas em pequenos grupos, que conversam em baixo volume, enquanto aguardam para que o espectáculo se anuncie. Numa primeira observação prognostico no bloco de notas: “Sala lotada”. O que se veio mais ou menos a confirmar. Não terá sido o auditório a encher, mas sim a bancada amovível montada propositadamente para o evento no centro da sala. Estou acompanhado de perto de 200 pessoas e, diante de nós, está uma panóplia de fios, instrumentos, e objectos digitais banhados por uma cor quente, em tudo semelhante ao Sol, que transborda de uma mesa escondida debaixo de uma manta bordada a texturas tribais e tons de céus africanos. Logo aí sentimos uma espécie de mudança no clima e preparamo-nos para percorrer uma série de trilhos ainda primitivos. As luzes descem, dá-se um silêncio ensurdecedor na sala e surge em palco Cameron Stallones, na guitarra e teclado, acompanhado de Alex Gray, na MPC e computador. O espectáculo está dividido em três partes — começa Sun Araw, a quem depois se junta Laraaji e termina com este a solo com o zither. Posicionados nos seus objectos de expulsão sonora, Sun Araw arranca a noite com um conjunto de sons curtos, pontuados por glitches líquidos, pausados, e tonalidades 32-bit, bem ao jeito do digitalismo dos primórdios informatizados. Há sons metálicos, uma guitarra totalmente desprovida das funções que lhe conhecemos e um mundo pixelizado, numa linguagem que nos soa bem e que apenas Stallone e Gray sabem comunicar. Sun Araw é desordenado, brinca com toques simples em teclados distorcidos e reprogramados, mas mantendo, paradoxalmente, um equilíbrio milimétrico que nunca se perde, nem quando Laraaji se junta já com uma linguagem diferente, mais tribalista, até primitiva, no sentido em que utiliza objectos manuais como colares em madeira ou sinos de vento, dali retirando uma harmonia que nunca pode ser igual, mas que se sabe intrometer entre os tons electrónicos de Araw. Há uma conversação a três, à qual assisto com redobrada atenção, para que nenhum pormenor me escape ao ouvido, como se tivesse entrado em mundos dissemelhantes que se transpuseram e encaixaram em toda essa experiência.   A performance ou demonstração sonora (concerto não é a definição mais acertada) aproxima-se da hora e meia quando Stallones e Gray abandonam o palco e fica Laraaji encarregue dessa viagem por terrenos de contemplação, quentes, de apreciação pausada e contrastantes com o que foi a electrónica não-linear de Sun Araw. Com toda uma indumentária alaranjada (o visual também sem intromete no sonoro nessa lufada quente), Laraaji manuseia baquetas, escovas de bateria, marimbas (thum-piano) sob o zither e faz uma demonstração musical que se desenha na mente através de formas e objectos e que nos obriga a uma absorção fascinada do desconhecido. E tenho para mim que, mesmo que os apreciadores de Laraaji aqui presentes já saibam ao que vêm, nunca estarão à espera desta longa viagem exótica, pontuada por uma voz de vocação tribal e primitiva. A absorção sonora dá-se de forma natural e nem dou pelo rodar de duas horas de um espectáculo que me foi uma estreia no género. Laraaji e Sun Araw são a conjugação de dois mundos de pólos opostos, mas que quase se tocam, como imanes. E por mais que a noite seja de copiosas chuvas, a performance termina com um sentimento de fervor solarengo pós-exploração transcendental.