Como quem pinta um X na porta dos leprosos, a música pop recorre à expressãopara marcar todos aqueles que, supostamente, nunca conseguiram dar continuidade ao sucesso estrondoso de um sósingle. A história repete-se vezes sem conta: nos anos 90, tivemos os Ugly Kid Joe, os Blind Melon e o rapper assustadoramente branco Snow. Durante a década de 80, as vítimas foram os Baltimora (“Tarzan Boy”), os Opus (com a incatalogável, embora eficaz, “Live is Life”) e os Katrina & The Waves. Todos eles, entre tantos outros, tiveram quatro ou cinco minutos para marcar a memória das massas e pouco mais que isso.Escusado será dizer que a maioria não é hoje relembrada sem comentários de troça ou ironia, em cerimónias de entrega de prémios ou sketches humorísticos. Ou seja, a máquina pop exibe a sua capacidade de renovação (e orgulha-se dela como de uma erecção) quase sempre tratando os seus valores passados com uma palmadinha nas costas e uma frase de despedida ao estilo de “olha, tiveste o teu tempo, mas agora és apenas umaone-hit wonder”.Mas todo o conceito deone-hit wonderpode ser bastante enganador e até mesmo cruel: a indústria cria os seus próprios fenómenos e depois chuta-os para canto sem considerar sequer o que existe para além do tal êxito. A MTV, espelho dos piores vícios da indústria, entendeu desde cedo que podia prolongar a vida de uns quantos artistas e encurtar a vida de outros tantos como se fosse Deus. Os primeiros ficam com o respeito e os outros, depois de esgotada a euforia dosingle, sobram para ser enxovalhados. Mas o “respeito”, no universo MTV, não deve ser um valor de referência para uma pessoa normal. Além disso, os patrões da estação internacional, que actualmente só passareality-showsda cagada, provavelmente conhecem muito melhor ossinglesdo que as rodelas de longa-duração. Não os podemos culpar por isso: o negócio deles é vender canções e não discos completos, até porque “o álbum” é uma unidade que pura e simplesmente não encaixa no universo efémero da MTV.E é aqui que surge Adrian Gurvitz, genial compositor britânico e uma espécie de gloriosa anomalia no sistema criado para aprisionarone-hit wonders. Pois bem, aquele que o mundo reconhece essencialmente pela autoria da super-balada “Classic” e pelo longo cabelo encaracolado (dois símbolos absolutos da década de 80), é, afinal e contra todas as suspeitas, o figurão por detrás de uma riquíssima série de discos:Sweet Vendetta(1979),Il Assassino(1980) eClassic(o álbum de 1982 e suporte para osinglehomónimo). Todos os três serão pontos bastante representativos, ainda que ocultos, de um possível arco entre o delírio da músicadisco, dos anos 70, e o soft rock feito para a rádio, dos 80.Sweet Vendettaé todo um fabuloso expoente dedisco soundbranco (na linha dos Electric Light Orchestra) bem disposto e descomplexado, mesmo quando, em 1979, o furor em torno do género dos tacões altos estava já um pouco nas lonas.Ambas dão vida a um disco que também reserva espaços para interlúdios instrumentais (tudo em tons de vermelho nocturno) e canções mais introspectivas (como um assassino ainda indeciso perante a execução do dia seguinte). Mas, sujeito ao equívoco de ser demasiadodiscoe ainda pouco rock para o seu tempo,Il Assassinofoi, ao que tudo indica, um enormeflopde vendas.
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Se é verdade que “Classic” continua a ser uma canção perfeita e poderosíssima no seu discurso romântico, um homem obrigado a escrever um clássico e ainda por cima isolado no sótão, é igualmente necessário salientar que Adrian Gurvitz não depende apenas desse tema para se distinguir como um compositor de excepção. E aqui estamos apenas concentrados na sua carreira em nome próprio. Olhemos por exemplo paraSweet Vendettae para a sua mão cheia de canções capazes de tirar uma pessoa do sério sem nunca deixarem de ser impressionantes estruturas de música pop. Passar os ouvidos por “Untouchable and Free”, “Free Ride” e principalmente “The Way I Feel” é o que bastará para verificar que os melhores métodos de produção e vários excelentes instrumentistas (alguns deles viriam a integrar os Toto) estiveram envolvidos na formação deste disco. Carregado de falsetes e adornado pelos arranjos de cordas do perito Marty Paich,
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Depois deVendetta, entra a década dos oitenta e, com esta, toda uma série de transições estéticas mais ou menos dolorosas, embora inevitáveis. Quem viu o filmeBoogie Nights–Jogos de Prazer, provavelmente recordar-se-á da imagem do cornudo Little Bill a cometer suicídio com um revólver na boca, mesmo antes da chegada dos anos 80. O mesmo Little Bill que tinha ficado encurralado num final de década altamente confuso e que dificilmente aguentaria mais dez anos de excesso e adultério. Lançado no ano exacto da transição (1980),Il Assassinoé também um álbum a ressacar de toda a pândega vivida debaixo da esfera de espelhos e entre lençóis de tecidos exóticos.Composto por nove faixas (duas delas parecem descontextualizadas),Il Assassinofunciona como uma espécie de disco semi-conceptual ou, se preferirmos, uma falsa banda sonora para umthrillerimaginário com assassinos contratados e ricalhaças em fuga. As canções tratam da perda da inocência e de trips emocionais vividas em plena discoteca, mas toda esta carga filosófica não impedeIl Assassinode chegar a um par de bombas prontas para fazer dançar a qualquer momento: “Seventeen” tem umriffcom a precisão de uma bala certeira; “She’s in Command” é a década de setenta comida à dentada e todo um mundo de prazeres condensado em pouco mais de seis minutos.
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Quando chega às gravações deClassic, Adrian Gurvitz estaria provavelmente espicaçado (e ressabiado) pelo fracasso comercial deIl Assassino, que, para todos os efeitos, parece hoje o seu melhor disco e um verdadeirotour de forceem termos de arranjos. Como seria de esperar, a dimensão deClassicmede-se essencialmente pelo sucesso global do seusinglehomónimo. Contudo, não seria muito justo reavaliar esta temporada de Gurvitz sem destacar o valor (e a singularidade) de canções como “Hello New York” (doce nostálgico, com tudo no sítio certo) e até mesmo “Clown” (singlenão incluído no álbum). Esta última quase dói por tudo o que tem detroll(ou pré-troll), mas refresca os ouvidos por ser uma peça à parte no cancioneiro de Gurvitz e por toda aquela melancolia circense que destoa das muitas baladas urbanas deste tempo.Confrontando todo o maldito estigma daone-hit wonder,Sweet Vendetta,Il AssassinoeClassicserão, por esta altura, pretextos mais que suficientes para que Adrian Gurvitz mereça a sua própria reavaliação crítica. Os japoneses, ávidos colecionadores de música obscura e desconsiderada, estão na linha da frente como entusiastas dos méritos de Gurvitz e será por isso que os seus discos mais esquecidos foram mais tarde reeditados no Japão com toda a dignidade e luxo possíveis. Hoje chegam a atingir preços exorbitantes e isso mostra que alguém deve estar atento. O caso Adrian Gurvitz sobra assim como prova de que o vasculhar do lixo dos outros é tantas vezes a forma mais eficaz de encontrar o ouro para nós próprios.