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Música

O Adrian Gurvitz é um génio, mas, pá, quem é o Adrian Gurvitz?

O lixo dos outros é muitas vezes o nosso ouro.

Como quem pinta um X na porta dos leprosos, a música pop recorre à expressão

para marcar todos aqueles que, supostamente, nunca conseguiram dar continuidade ao sucesso estrondoso de um só

single

. A história repete-se vezes sem conta: nos anos 90, tivemos os Ugly Kid Joe, os Blind Melon e o rapper assustadoramente branco Snow. Durante a década de 80, as vítimas foram os Baltimora (“Tarzan Boy”), os Opus (com a incatalogável, embora eficaz, “Live is Life”) e os Katrina & The Waves. Todos eles, entre tantos outros, tiveram quatro ou cinco minutos para marcar a memória das massas e pouco mais que isso.

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Escusado será dizer que a maioria não é hoje relembrada sem comentários de troça ou ironia, em cerimónias de entrega de prémios ou sketches humorísticos. Ou seja, a máquina pop exibe a sua capacidade de renovação (e orgulha-se dela como de uma erecção) quase sempre tratando os seus valores passados com uma palmadinha nas costas e uma frase de despedida ao estilo de “olha, tiveste o teu tempo, mas agora és apenas uma

one-hit wonder”

.

Mas todo o conceito de

one-hit wonder

pode ser bastante enganador e até mesmo cruel: a indústria cria os seus próprios fenómenos e depois chuta-os para canto sem considerar sequer o que existe para além do tal êxito. A MTV, espelho dos piores vícios da indústria, entendeu desde cedo que podia prolongar a vida de uns quantos artistas e encurtar a vida de outros tantos como se fosse Deus. Os primeiros ficam com o respeito e os outros, depois de esgotada a euforia do

single

, sobram para ser enxovalhados. Mas o “respeito”, no universo MTV, não deve ser um valor de referência para uma pessoa normal. Além disso, os patrões da estação internacional, que actualmente só passa

reality-shows

da cagada, provavelmente conhecem muito melhor os

singles

do que as rodelas de longa-duração. Não os podemos culpar por isso: o negócio deles é vender canções e não discos completos, até porque “o álbum” é uma unidade que pura e simplesmente não encaixa no universo efémero da MTV.

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E é aqui que surge Adrian Gurvitz, genial compositor britânico e uma espécie de gloriosa anomalia no sistema criado para aprisionar

one-hit wonders

. Pois bem, aquele que o mundo reconhece essencialmente pela autoria da super-balada “Classic” e pelo longo cabelo encaracolado (dois símbolos absolutos da década de 80), é, afinal e contra todas as suspeitas, o figurão por detrás de uma riquíssima série de discos:

Sweet Vendetta

(1979),

Il Assassino

(1980) e

Classic

(o álbum de 1982 e suporte para o

single

homónimo). Todos os três serão pontos bastante representativos, ainda que ocultos, de um possível arco entre o delírio da música

disco

, dos anos 70, e o soft rock feito para a rádio, dos 80.

Se é verdade que “Classic” continua a ser uma canção perfeita e poderosíssima no seu discurso romântico, um homem obrigado a escrever um clássico e ainda por cima isolado no sótão, é igualmente necessário salientar que Adrian Gurvitz não depende apenas desse tema para se distinguir como um compositor de excepção. E aqui estamos apenas concentrados na sua carreira em nome próprio. Olhemos por exemplo para

Sweet Vendetta

e para a sua mão cheia de canções capazes de tirar uma pessoa do sério sem nunca deixarem de ser impressionantes estruturas de música pop. Passar os ouvidos por “Untouchable and Free”, “Free Ride” e principalmente “The Way I Feel” é o que bastará para verificar que os melhores métodos de produção e vários excelentes instrumentistas (alguns deles viriam a integrar os Toto) estiveram envolvidos na formação deste disco. Carregado de falsetes e adornado pelos arranjos de cordas do perito Marty Paich,

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Sweet Vendetta

é todo um fabuloso expoente de

disco sound

branco (na linha dos Electric Light Orchestra) bem disposto e descomplexado, mesmo quando, em 1979, o furor em torno do género dos tacões altos estava já um pouco nas lonas.

Depois de

Vendetta

, entra a década dos oitenta e, com esta, toda uma série de transições estéticas mais ou menos dolorosas, embora inevitáveis. Quem viu o filme

Boogie Nights

Jogos de Prazer

, provavelmente recordar-se-á da imagem do cornudo Little Bill a cometer suicídio com um revólver na boca, mesmo antes da chegada dos anos 80. O mesmo Little Bill que tinha ficado encurralado num final de década altamente confuso e que dificilmente aguentaria mais dez anos de excesso e adultério. Lançado no ano exacto da transição (1980),

Il Assassino

é também um álbum a ressacar de toda a pândega vivida debaixo da esfera de espelhos e entre lençóis de tecidos exóticos.

Composto por nove faixas (duas delas parecem descontextualizadas),

Il Assassino

funciona como uma espécie de disco semi-conceptual ou, se preferirmos, uma falsa banda sonora para um

thriller

imaginário com assassinos contratados e ricalhaças em fuga. As canções tratam da perda da inocência e de trips emocionais vividas em plena discoteca, mas toda esta carga filosófica não impede

Il Assassino

de chegar a um par de bombas prontas para fazer dançar a qualquer momento: “Seventeen” tem um

riff

com a precisão de uma bala certeira; “She’s in Command” é a década de setenta comida à dentada e todo um mundo de prazeres condensado em pouco mais de seis minutos.

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Ambas dão vida a um disco que também reserva espaços para interlúdios instrumentais (tudo em tons de vermelho nocturno) e canções mais introspectivas (como um assassino ainda indeciso perante a execução do dia seguinte). Mas, sujeito ao equívoco de ser demasiado

disco

e ainda pouco rock para o seu tempo,

Il Assassino

foi, ao que tudo indica, um enorme

flop

de vendas.

Quando chega às gravações de

Classic

, Adrian Gurvitz estaria provavelmente espicaçado (e ressabiado) pelo fracasso comercial de

Il Assassino

, que, para todos os efeitos, parece hoje o seu melhor disco e um verdadeiro

tour de force

em termos de arranjos. Como seria de esperar, a dimensão de

Classic

mede-se essencialmente pelo sucesso global do seu

single

homónimo. Contudo, não seria muito justo reavaliar esta temporada de Gurvitz sem destacar o valor (e a singularidade) de canções como “Hello New York” (doce nostálgico, com tudo no sítio certo) e até mesmo “Clown” (

single

não incluído no álbum). Esta última quase dói por tudo o que tem de

troll

(ou pré-

troll

), mas refresca os ouvidos por ser uma peça à parte no cancioneiro de Gurvitz e por toda aquela melancolia circense que destoa das muitas baladas urbanas deste tempo.

Confrontando todo o maldito estigma da

one-hit wonder

,

Sweet Vendetta

,

Il Assassino

e

Classic

serão, por esta altura, pretextos mais que suficientes para que Adrian Gurvitz mereça a sua própria reavaliação crítica. Os japoneses, ávidos colecionadores de música obscura e desconsiderada, estão na linha da frente como entusiastas dos méritos de Gurvitz e será por isso que os seus discos mais esquecidos foram mais tarde reeditados no Japão com toda a dignidade e luxo possíveis. Hoje chegam a atingir preços exorbitantes e isso mostra que alguém deve estar atento. O caso Adrian Gurvitz sobra assim como prova de que o vasculhar do lixo dos outros é tantas vezes a forma mais eficaz de encontrar o ouro para nós próprios.