Comendo Feijoada em Londres com o Marky

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Música

Comendo Feijoada em Londres com o Marky

Caipirinha, feijuca e uma conversa com o DJ mais famoso do drum and bass brasileiro, que lançou seu primeiro disco solo, 'My Heroes'.

Nosso primo europeu hipster vegetariano colecionador de vinil e inglês Angus Harrisson aproveitou que o Marky estava lá em Londres e muito afim de comer uma feijuca para conversar com o nosso querido DJ, que agora se consagra definitivamente como produtor com o lançamento do seu primeiro LP oficial com faixas autorais, o recém lançado My Heroes. Traduzimos o papo e deixamos intacta a relação que o Angus faz entre a feijoada (vegetariana) que ele estava comendo e o próprio ímpeto artístico e carisma infinitos do Marky por dois motivos: 1. É engraçado demais ver um gringão mandando uma feijoada pela primeira vez; 2. O Angus acertou na mosca o tom. Leia a entrevista e sinta-se privilegiado por poder comer feijoada quando quiser (e tiver dinheiro).

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"Você é vegetariano? Por quê?". O DJ brasileiro e lenda do drum and bass DJ Marky está me olhando atentamente. Eu nem sempre me saio bem respondendo essa pergunta mas, felizmente, enquanto começo a reunir todas as minhas desculpas ambientais, ele começa a rir. "Não, tô brincando, eu não tô nem aí. Mas não conseguiria — odeio legumes."

Chegando perto do lançamento do primeiro LP solo da sua carreira de mais de 20 anos, Marky e eu nos reunimos no Floripa, um restaurante brasileiro com o pé direito alto em Shoreditch (no East End de Londres) repleto de todos os tipos de estilos carnavalescos que você associaria a América do Sul. Nos encontramos aqui, em parte, para falar sobre seu novo disco, o My Heroes, e também para sentir o gostinho brasileiro. Desde que surgiu na cena internacional na virada do milênio, Marky tem sido procurado constantemente. Quando apareceu pela primeira vez no Reino Unido, trouxe com ele um padrão de mixagem que até então era desconhecido, misturando break-beats de forma tão hábil e cheia de finesse que o fez ser coroado 'Melhor DJ Revelação' pelos críticos britânicos depois de apenas um ano no país. Ainda que deixando o Brasil, isso significa deixar para trás o conforto do lar e, principalmente, a comida. "Quando fico num só lugar por um tempo ou estou longe de casa por alguns meses, sempre dou um jeito de achar comida brasileira. Às vezes sinto falta do meu feijão com arroz".

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O primeiro prato a chegar na nossa mesa foi o 'pão de queijo'. Marky me encoraja a pegar um e eu o faço, dividindo a bolinha em duas e colocando direto na minha boca. É delicioso, e ele parece feliz em ver que meu primeiro contato com o gostinho brasileiro está dando super certo. "O chef deve ser brasileiro, isso aqui está realmente muito bom. Saca, no Brasil, as pessoas comem isso de manhã enquanto tomam café". Penso que poderia me acostumar com isso, antes de começarmos a atacar os outros pãezinhos. Depois de limpar o prato, Marky olha e diz, "meu médico disse que eu deveria começar a fazer dieta, então provavelmente não deveria ter feito isso."

A história do Marky, mesmo que você já tenha ouvido antes, é bem massa, principalmente levando em conta como ele era novo quando começou a mixar. "Eu tinha dez anos de idade. Comecei a ouvir esse programa na rádio e ficava impressionado como ele não falava, apenas colocava duas faixas na mesma velocidade transformando-as numa só. Foi ali que tive vontade de aprender". A experiência que ele conquistou nunca foi formal, e sim sempre graças a encontros do acaso ou a influência das pessoas ao seu redor. "Eles abriram um clube perto da minha casa e um dia, quando estavam limpando, fui até lá de bike. Tinha um cara tocando uns discos e eu entrei bem de fininho, olhei para o equipamento, vi esses gravadores reel to reel e pensei, 'porra, eu preciso comprar isso!".

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A partir do reel to reel, Marky progrediu através de "decks baratos e toscos" até seu primeiro Technics. "Comecei a entrar numas competições de scratching, tentando mixar o máximo de faixas possível em cinco minutos, e ganhei a última. O prêmio era tocar numa balada". É uma declaração interessante sobre suas habilidades na mixagem, as quais o Marky na verdade acha que poderia ser considerado um obcecado quando era moleque. "O dono da balada me assistia tocando o mesmo set toda semana, tentando fazer com que ficasse perfeito, até o ponto que a plateia sabia qual era a minha seqüência. E aí ele me demitiu! Ele disse, "você precisa aprender uma lição, o trabalho de um DJ é ensinar a plateia o que é música boa, as habilidades são importantes mas o principal são as faixas", e então, naquele dia, eu parei de praticar".

Apesar da habilidade professoral não ser tudo, durante toda a nossa conversa o Marky falou diversas vezes sobre algumas de suas frustrações sobre quão fácil o ofício se tornou, abrangendo tudo desde a tecnologia do beat-matching — que ajuda a colocar as mixagens no lugar sem precisar da ajuda de seletores — até os DJs que confiam plenamente na sua familiaridade com as faixas que levantam a pista a fim de ajudá-los a criar um set. Ainda assim, ao contrário de muitos seletores veteranos que constantemente se lamentam do estado atual das coisas, o Marky simplesmente acha triste que as pessoas não descobrem mais tantas músicas novas através dos DJs. Essa pressa para ouvir um disco inovador é algo que ele ainda se lembra desde o início de sua carreira.

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"Nunca vou esquecer de quando ouvi 'Wickedest Sound' do Rebel MC". Nenhuma outra faixa é como esta, ela é muito louca. Quando o Rebel MC a fez, ela era completamente diferente de tudo que estava por aí, mas ainda soa diferente hoje em dia". O entusiasmo do Marky facilmente preenche o ambiente, projetando uma alegria pueril enquanto ele conta, animado, sobre o efeito que o MC e outros artistas desta época tiveram sobre ele. "Não era jungle, não era exatamente breakbeat, mas era um protótipo a ser seguido. Sou apaixonado por esses sons britânicos desde o início e, quando o Prodigy lançou o Experience em 1992, a cena de breakbeat começou a bombar de verdade."

Foi essa cena de breakbeat que levou o Marky a ser descoberto pelos pioneiros britânicos do drum and bass, DJ Bryan Gee e Jumping Jack Frost. "Eles viram algo diferente na forma como eu tocava, uma energia. Acho que eles perceberam que eu era muito apaixonado pela música, e então me chamaram para vir até aqui. Eu recusei". Eu pauso brevemente e paro de mastigar a entrada que estava prestes a demolir. "De primeira eu neguei! Queria estar em casa. Eu sou bem relaxadão. Não sou preguiçoso, mas gosto de me sentir confortável. Mas eles disseram 'você tem que ir… sério, você tem que ir'".

Nesse ponto da nossa conversa, nossa mesa foi revigorada com nosso prato principal: feijoada. O prato típico brasileiro favorito do Marky. Ao ver o tamanho da minha porção, eu automaticamente me arrependi de ter comido a entrada com a determinação digna de um esfomeado de meia-idade num bufê de casamento. É um prato gigantesco, repleto de arroz, couve, salsa e uma tigela cheia de feijão preto com caldo grosso. A do Marky veio acompanhada de porco e a minha de tofu — algo que o deixa pouco convencido a medida que eu começo a remexer a tigela.

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É uma bênção o Marky ter decidido vir para o Reino Unido, e sua chegada representou um grande poder dentro da comunidade de drum and bass. O que ele trouxe, ao lado de sua mixagem imbatível, foi uma leveza e foco nos beats que possuem melodia e groove. É algo que ele sente falta na maioria dos formatos atuais do drum and bass. "As novas faixas ou são muito focadas no pop, ou muito underground, agressivas e minimalistas. Existe esse gap, você pode fazer um drum and bass para agradar os nerdões, mas que a galera que ainda não é familiarizada com o gênero também vai se amarrar. É música para as baladas! Quero ver as pessoas dançarem, e não sentadas num sofá na área de fumantes."

Sério, é incrível que um nome tão amplamente celebrado como o dele levou tanto tempo para fazer um disco de estúdio, mas definitivamente valeu a pena esperar. Este gap ao qual ele se refere, de criar breakbeat e drum and bass com uma alma instantaneamente acessível, está em todos os cantos do My Heroes. "Na verdade, eu não tinha ideia que ia fazer um disco, mas comecei a pensar: tenho todos esses discos na minha casa, conheço essa música, então por que não começar a samplear? E então a primeira faixa que criei foi a 'Silly'".

"Silly" é a introdução de disco mais apropriada que você pode imaginar, misturando o ouvido clínico do Marky para melodia com um beat dinâmico e contínuo. Parecia que ele sabia que ela estava destinada a ser uma vencedora assim que começou a tocar o sample na sua casa. Depois de deixá-la tocando sem parar durante o almoço, ele se deparou com seu filho cantando a música no carro na ida para a escola, assim como sua faxineira quando voltou para casa. "Então eu pensei, 'meu Deus — acho que tenho algo aqui."

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Família é outra palavra que vem à tona diversas vezes durante a nossa conversa, com a inspiração inicial para o LP vindo de um lugar extremamente pessoal. "Primeiro eu tinha a capa do disco em mente — uma foto da minha mãe com meu pai. Perdi meu pai há três anos. Sempre quis fazer algo para os meus pais. Eles compraram tantos discos, sempre estive rodeado de música boa. Marvin Gaye, Miles Davis… então eu queria muito fazer algo pra eles". Dito isso, o presente será uma surpresa para uma das estrelas da capa, "Minha mãe não sabe que está na arte do disco. Vou surpreendê-la com isto."

Marky tem feito um bom trabalho com essa energia constante quando fala de música, porque a essa altura eu estou a três caroços de feijão de distância de um coma profundo. Feijoada, se um dia você tiver a chance de experimentar, é uma refeição que parece ter tanta coisa boa junta que você provavelmente não vai sentir vontade de comer de novo nos próximos três dias. É rico e texturizado, o que pode contribuir para causar um apelo tão grande num produtor que parece dedicado a criar músicas com o máximo de sabores possível. "Os produtores hoje em dia são obcecados com synths e, na minha opinião, a música não são muito groovy. Sempre tive uma necessidade de trazer este groove de volta".

Minha conversa com o Marky foi caracterizada por isto, um homem numa missão de resgatar a alegria que sentiu quando era um jovem seletor, de uma cena que ele se viu cansado graças a chegada dos CDJs e produções no Ableton. Eu genuinamente acredito que ele nunca pensou em fazer um disco, e sim o impulso o pegou de jeito, trazendo até nós sua música através do amor e experiência. "Quando comecei a trabalhar, fiz cinco ou seis faixas numa semana. Apenas saquei a vibe". Há um sorriso que nunca sai de seu rosto, especialmente quando o assunto é o My Heroes. O disco é o cume da celebração e a descontração em tocar música com os amigos e família. E em prova disso, ele me diz, todos os seus amigos que trabalharam com ele no disco se recusaram a receber qualquer pagamento. "Eles ouviram as músicas e queriam fazer parte daquilo."

É um gesto apropriado. O Marky acrescentou muito ao drum and bass e esse LP pode ser o seu maior presente até então. Uma tentativa colorida, brincalhona e totalmente bem-sucedida de reintroduzir uma alma dançante aos porões dos clubes ao redor do mundo. Quando chegamos ao fim da nossa refeição, engolindo arrotos sinistros e sentindo de verdade que preciso dormir por uma semana, percebo que é melhor nos despedirmos. Ao sair pela porta decorada do Floripa e chegando na rua, damos um aperto de mãos. Para um herói tanto nesses lados do globo como no Brasil, Marky foi uma companhia bem tranquilona. "Não vejo a hora de descolar o vinil!", digo a ele. "Excelente", ele sorri, "fico feliz que tá rolando um revival de vinis. Pelo menos eu sei que hipsters vegetarianos como você comprarão."

Siga o DJ Marky no Twitter e adquira o My Heroes aqui.

Siga o Angus no Twitter.

Tradução: Stefania Cannone