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Adeus, Alexander Shulgin

Nunca haverá outro Alexander Shulgin, mas ele criou tanto e inspirou tantos que não é preciso.

O laboratório de Shulgin. Foto por Hamilton Morris.

Às cinco horas da tarde da segunda-feira, Alexander Shulgin morreu em sua casa em Lafayette, Califórnia, cercado por amigos e pela família. Ele deixa sua esposa e colaboradora Ann Shulgin. Aos 88 anos, sua morte não foi inesperada – sua saúde física vinha se deteriorando nos últimos anos – mas ainda assim trouxe uma enorme tristeza para incontáveis pessoas que o conheceram e o amavam. Nas próximas semanas, muitas coisas serão escritas sobre as realizações brilhantes que formaram a vida e a carreira de Sasha – sobre quem escrevi para a VICE. Tive a sorte de visitar a casa de Sasha e Ann muitas vezes, de comer na cozinha deles, conversar sobre química em seu laboratório e ajudar a cuidar de seus cactos no jardim. Deixando de lado informações biográficas básicas, vou tentar compartilhar rapidamente algumas coisas importantes memoráveis sobre o mestre e sua obra.

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Ele encarnava os ideais científicos que todo jovem pesquisador deve buscar.

Shulgin escreveu artigos para os periódicos científicos de maior impacto e geralmente fazia isso de seu laboratório em casa. Ele transcendeu os limites do que era legalmente e cientificamente aceitável, não para enfiar o dedo na cada do establishment, mas porque ele acreditava em liberdade científica e cognitiva. Mais importante, ele não estava disposto a fazer concessões que ele sabia que iriam impactar o escopo de seu trabalho – ele estava interessado na mente de humanos (e não de roedores) e direcionou sua pesquisa de acordo. Shulgin compartilhou de forma generosa seus dados e hipóteses para beneficiar futuros investigadores – direções para novas áreas a explorar aparecem em Pihkal e Tihkal. A única coisa mais importante para Shulgin do que sua pesquisa era garantir que isso seria levado adiante. (Por exemplo, Sulgin insinuou que a triptamina 5-Br-DMT derivada de uma esponja marinha poderia ser psicoativa para humanos, e ficou muito contente quando isso foi demonstrado e publicado no ano passado.)

Ele era um professor desnecessariamente gentil com jovens, estúpidos e estranhos.

A primeira vez em que enviei um e-mail para Alexander Shulgin, quando eu ainda era um calouro universitário, fiz isso por impulso num momento de reverência. Eu não tinha ainda o tempo ou o conhecimento de química para ler inteiramente Pihkal e Tihkal ou suas mais de 100 outras publicações científicas, e estremeço de vergonha quando penso nas perguntas que fiz naquele e-mail. Basta dizer que elas não mereciam resposta alguma ou, se muito, uma citação desconsiderada de onde encontrar a informação solicitada. Em vez disso, ele me respondeu com gentileza e interesse genuínos. E não fui o único: conheço dezenas de outras pessoas que foram recebidas abertamente por Sasha quando ele não tinha nada a ganhar com isso. Ele tratava questões de doutores, estudantes de colégio e criminosos condenados com a mesma consideração e respeito.

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Ele era um escritor científico incrível.

Shulgin é geralmente lembrado mais como psiconauta do que como escritor científico, mas é difícil encontrar alguém que possa escrever de modo mais convincente sobre as maravilhas da síntese orgânica e da exploração científica, incluindo Primo Levi. Por exemplo:

A extensão de duas cadeias carbônicas de mescalina por metilação alfa para três cadeias carbônicas de TMA aproximadamente dobram a potência do composto. O que faz parecer uma possibilidade completamente lógica que, estendendo-se mais um átomo de carbono, para a cadeia de quatro carbonos de alfa-etil-mescalina, isso possa dobrar novamente. E seguindo essa progressão lógica, a potência dobrada em cada átomo de carbono adicional, o fator poderia ser 2 para a 7ª potência pela octila alfa (ou 256x para mescalina, ou um miligrama como dose efetiva) e com uma cadeia lateral de 70 carbonos do grupo alcano (alfa-heptacontilmescalina) seria necessária apenas uma molécula para ficar intoxicado. Era uma fantasia muito rica. Como composto ativo, para onde isso iria no cérebro? Com uma cadeia lateral de 80 carbonos, poderia um milésimo de uma simples molécula ser suficiente para uma pessoa? Ou poderia uma única molécula intoxicar mil pessoas? E quão longa uma cadeia em posição alfa teria que ser para que, meramente escrevendo sua estrutura num pedaço de papel, já bastasse para ficar chapado? Talvez apenas conceber a estrutura em sua mente já fosse o suficiente. Afinal de contas, é isso que faz a homeopatia.

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Sua pesquisa ia muito além do ecstasy.

O papel que Shulgin teve na redescoberta e na popularização do ecstasy é o que a mídia geralmente enfatiza, mas há muito mais a se aprender com as dezenas de compostos que ele sintetizou que nunca atingiram um amplo uso em humanos. Sua criação 2C-SE foi a primeira e única droga psicoativa a apresentar o elemento selênio. Ele foi o pioneiro das drogas psicoativas pesadas com beta-D, sua bem-sucedida tentativa de alterar a atividade da mescalina através da substituição do deutério por átomos de hidrogênio na posição beta da molécula. Além dessas investigações cuidadosamente planejadas, sua curiosidade o levou à descoberta casual de muitos tipos de drogas que ele nunca previu: extrema dilatação do tempo com o 2C-T-4, alucinações táteis com o 2,N,N-TMT, uma fuga dissociativa inesperada com a 4-desoxi-mescalina e os efeitos ainda inclassificáveis da 5-MeO-pyr-T.

Ele fez coisas únicas com um conjunto de habilidades não exclusivo.

Não há dúvida de que Shulgin era um visionário único e um químico extraordinário, mas seria um erro pensar que sua carreira foi o produto de um entendimento inteiramente único da química – e esse era seu grande poder. Há dezenas de milhares de químicos que poderiam ter realizado as proezas sintéticas de Shulgin, mas que não o fizeram. Com recursos financeiros mínimos e um pequeno laboratório de fundo de quintal, Shulgin fez algumas das contribuições mais importantes do século 20 nos campos da psicofarmacologia e química médica, e não porque ele possuía um conhecimento que ninguém mais tinha, mas porque ele era um apaixonado pelo trabalho e estava disposto a arriscar sua liberdade e estabilidade financeira para explorar algo que ele sabia ter uma importância científica vital.

Eu costumava dizer: “Nunca haverá outro Alexander Shulgin”, e isso é verdade, mas a última coisa que Shulgin gostaria era de ser o único cientista do seu tipo. Então vou reescrever a frase: nunca haverá outro Alexander Shulgin, mas ele criou tanto e inspirou tantos que não é preciso.

Tradução: Marina Schnoor